Skip to main content

Full text of "Soror Marianna : a freira portugueza"

See other formats


LIVRARIA 

CASTRO 

E     SILVA 

LISBOA 


-•  '--iifcjsiíwíss^MrijiaisaES^ 


THE  LIBRARY 

OF 

THE  UNIVERSITY 

OF  CALIFÓRNIA 
LOS  ANGELES 


■Y 


SOROR 

MARIANNA 

A  FREIRA  PORTUGUEZA 


^^  ^í:g^^^í^^^/^:?»'^=^^^5?s^'5^ 


LUCIANO  CORDEIRO 


SOROR 

MARIANNA 

A  FREffii  PORTUGUEZA 


. . . « SÓ  escrevo  este  livro  como 
historia  humana.  . .» 

Fr.  A.  d'Almada,  Desp.  (^o 
£«p.— 1694. 


SEGUNDA  EDIÇÃO 

lUustrada,  correcta  e  augmentada 
sobre  novos  documentos 


¥ 


LISBOA 

LIVRARIA    FERIN    ôc    G.» 

70— R.  Nova  do  Almada— 74 


Typographia  da  Academia  Real  das  Sciencias  de  Lisboa 


Ao  coração  e  á  sciencia 


SOUSA    MARTINS 


fâ 


ISII 


Ha  muitos  annos  que  os  registos  da  livraria  portugueza 
não  dão  noticia  de  um  êxito  egual  ao  que  teve  o  livro  do 
sr.  Luciano  Cordeiro.  Publicado  no  meado  de  1888,  a  pri- 
meira edição  podia  considerar-se  esgotada  ao  cabo  de  dois 
mezes,  precisamente  os  conhecidos  como  peores  do  nosso 
mercado  bibliographico. 

Não  foi  somente  um  êxito  litterario^  no  sentido  restricto 
do  termo,  foi  um  verdadeiro  successo  de  curiosidade,  de 
sympathia,  de  applauso  publico,  que  não  esperou  aquelle  e 
que  o  acompanhou  e  sanccionou  inteiramente,  fazendo  di- 
zer a  Júlio  César  Machado,  n^uma  das  suas  formosas  revis- 
tas do  ^epor/^r,  que  1888  ficaria  sendo: — o  anno  da  Frára , 
— na  bibliographia  patria.J 

Antes  que  apparecessem  as  primeiras  apreciações  e  no- 
ticias do  livro,  o  movimento  da  sua  procura  adeantara-se 
rapidamente.  Nem  se  extinguiu  ainda.  Mas  o  êxito  propria- 
mente litterario  foi  também  excepcional.  Tendo  podido  ver 
uma  collecção  de  noticias,  artigos  e  cartas  inéditas,  sobre  a 
Soror  Marianna,  sentimos  naturalmente  um  grande  desejo 
de  reunir  aqui  todos  esses  juizos  críticos,  uns  firmados  pe- 


1  .sr^^5;f;d 


8 


los  primeiros  nomes  da  nossa  vida  intellectual,  outros  ex- 
primindo as  reservadas  e  vivas  impressões  de  espíritos  e  co- 
rações de  eleição.  Seria  uma  homenagem  mais, — e  d'esta 
vez  perfeitamente  portugueza, — á  doce  e  desolada  figura  da 
nossa  Heloisa,  definitivamente  restituida  á  litteratura  pátria, 
como  a  queria  o  Morgado  de  Matheus,  e  como  ella  é, — no 
dizer  do  auctor:  —  o  necessário  «violino,  vibrante,  indisci- 
plinado, que  nos  traz  a  lembrança  consoladora  e  amiga  do 
que  é  espontâneo,  do  que  é  ingénuo  e  necessariamente  ver- 
dadeiro e  eterno,  no  meio  das  pompas  e  dos  refinamentos 
artísticos,  magistraes,  da  grande  orchestra  dos  seiscentis- 
tas.» 

Mas,  além  dos  escrúpulos  de  modéstia  que  nos  recusavam 
a  satisfação  d'este  desejo,  era  impossível  caberem  nas  for- 
çadas dimensões  da  nossa  publicação  todas  aquellas  apre- 
ciações. Independentemente  de  um  grande  numero  de  no- 
ticias avulsas  dos  jornaes,  mais  de  vinte  seriam  os  artigos 
a  transcrever,  de  largo  desenvolvimento  critico,  e  em  que 
escriptores  illustres  como:  —  conde  de  Ficalho,  Theophilo 
Braga,  Joaquim  de  Araújo,  Moniz  Barreto,  Campos  Júnior, 
Borges  de  Avelar,  Sousa  Viterbo,  José  Sampaio,  Victor  Se- 
queira, Gesar  Machado,  Maria  Amália,  Clementino  de  Sousa, 
Rodrigues  de  Freitas,  Mariano  Pina,  Armelim  Júnior,  G. 
Torresão,  Benalcanfor,  Pinheiro  Chagas,  A.  de  Serpa,  e  ou- 
tros, proferiram  o  veredicto  espontâneo  e  eloquente  da  sua 
auctoridade  sobre  o  laborioso  e  encantador  processo  instau- 
rado e  encerrado  pelo  nosso  auctor.  Depois  não  ficaria  satis- 
feito o  nosso  desejo,  nem  completa  a  nossa  homenagem,  não 
nos  sendo  permittido  juntar-lhe, — e  por  muito  favor  nos  foi 
concedido  ver,  —  as  cartas,  o  repositório  particular,  inédito, 
intimo  quasi,  ou,  alguma  vez,  confidencial  das  impressões 
immediatas,  pessoaes : — em  que,  a  par  de  nomes  como  os  de 


9 


Barros  Gomes,  Ouguella,  Hintze  Ribeiro,  Serpa  Pimentel, 
Lopo  Vaz,  Oliveira  Martins,  Eça  de  Queiroz,  ete.,  reluzem 
as  jóias  da  mais  fina  intelligencia  ou  da  mais  encantadora 
sensibilidade  feminina.  Seria  um  novo  livro ...  se  nos  fosse 
permittido  fazel-o.  Duas  phrases  só,  colhidas  ao  acaso,  n'esse 
bello  álbum.  São  de  Oliveira  Martins: — «V.  fez  um  mi- 
lagre. O  livro  das  Carias  que  V.  fez  é  verdadeiramente 
definitivo;  não  ha  mais  nada  a  dizer.  V.  esgotou  a  erudi- 
ção e  a  critica:  não  ha  que  rebuscar  nem  que  observar  mais. 
Está  definido  o  caso  pathologico  (?)  e  determinado  o  con 
curso  de  circumstancias  em  que  se  deu. » 

É  a  synthese  de  todas  as  apreciações. 

Desde  1888,  pois,  se  tem  feito  sentir  a  necessidade  de 
uma  nova  edição.  Afíluem  os  pedidos,  sendo  muitos  do  es- 
trangeiro, e  é  raro  obter-se,  posto  que  por  maior  preço,  um 
exemplar.  Por  suas  múltiplas  occupações,  e  por  querer  au- 
gmentar  e  rever  a  obra  em  vista  de  novas  averiguações  e 
documentos,  o  sr.  Luciano  Cordeiro  não  pôde  conceder-nos 
mais  cedo  uma  segunda  edição  do  seu  livro,  mas  auctor  e 
editores  procurámos  resgatar  estademorae  agradecer  aquelle 
êxito  com  os  consideráveis  melhoramentos  de  varia  natureza 
introduzidos  na  presente  publicação.  Se  a  parte  histórica  e 
bibliographica  foi  em  muito  refeita,  apresentando  factos  e 
indicações  até  agora  inteiramente  inéditos,  pela  nossa  parte 
não  nos  poupámos  a  saerificios  por  oíferecer  ao  publico  uma 
edição  correspondente  ás  exigências  e  progressos  da  arte 
bibliographica  nos  mais  adeantados  mercados. 

Lisboa,  Livraria  Ferin  &  C.',  1  de  novembro  de  1890. 


Os  EDITORES. 


SOROR 

MARIANNA 

A  FREIRA  PORTUGUEZA 


INTRODTJCÇlO 


Nos  primeiros  dias  de  janeiro  de  1669,  Cláudio  Barbin, 
o  celebre  livreiro  parisiense, —  auPalais^surleseconãper- 
ron  de  la  Sainte  Chapelle, — lançava  nos  salões  e  alcovas 
que  continuavam  a  camará  azul  da  senhora  de  Rambouil- 
let  um  pequeno  livro  anonymo,  que  n'aquelle  meio  galante, 
artificioso  e  frívolo  seria  a  mancha  rude  e  sombria  de  um 
monge  de  Zurbaran,  cahindo  inopinadamente  n'uma  pasto- 
ral mimosa  de  Watteau  ou  Boucher. 

Era  a  historia,  em  cinco  cartas,  — traduzidas  n'um  francez 
regularmente  escandaloso  para  os  ouvidos  delicados  das^r^- 
ciosas, —  de  uma  paixão  profunda,  allucinada,  doida,  de  po- 
bre freira  estrangeira,  que  bem  se  via  que  não  fora  educada 
na  escola  do  tendre  gracioso  e  subtil  d'aquellasya«smísía5 
do  amoi-j  no  dizer  da  Ninon,  por  largo  tempo,  apesar  do 
riso  cruel,  e  não  poucas  vezes  canalha,  de  Moliére,  as  dire- 
ctoras espirituaes  da  litteratura  e  da  sentimentalidade  do 
século  xvn. 

Barbin, — ce  chien  de  Barbin,  —  como  havia  de  chamar- 


14 


lhe  a  senhora  de  Sévigné, — obtivera  privilegio  e  licença 
para  esta  publicação  em  28  de  outubro  de  1668,  regista- 
ra-a  em  17  de  novembro,  acabara  de  imprimil-a  em  4  de 
janeiro  de  1669,  e  explicava  discretamente  «:ao  leitor»  que 
se  dera  a  muitos  trabalhos  para  obter  uma  copia  correcta 
d'essa  traducção; — que  julgava,  imprimindo-a,  dar  muito 
gosto  ás  pessoas  entendidas  em  coisas  de  sentimento,  que 
tanto  louvavam  ou  procuravam  conhecer  aquellas  cinco  car- 
tas;— que  ellas  haviam  sido  escriptas  a  um  «^gentil  homem 
de  qualidade  y>  que  servira  em  Portugal,  mas  que  não  sabia 
o  nome  d'esse  gentil  homem,  nem  o  do  traductor,  pareeen- 
do-lhe  eomtudo  que  não  lhes  seria  desagradável,  publican- 
do-as. 

Sem  nos  demorarmos  agora  em  lembrar  o  intenso  e  ab- 
sorvente predominio  que  attingira  na  sociedade  pollida  e 
litterata  do  século  xvn,  —  particularmente  em  França,  mas 
não  só  n'este  paiz,  como  geralmente  se  pensa, — a  moda  e 
a  litteratura  epistolar,  observaremos,  que  era  então,  e  foi 
por  muito  tempo  ainda,  vulgar  e  corrente  o  costume  de  ex- 
trahir  e  fazer  circular  nos  círculos  do  convívio  cortesão  e 
intellectual  copias  de  correspondência  intima  ou  de  produc- 
ções  destinadas  á  publicidade. 

Estabelecia-se  por  esta  forma  uma  espécie  de  censura 
prévia  de  juizes  amigos  antes  que  o  minotauro  do  gosto  e 
do  critério  publico  podesse  saborear,  ou  despedaçar  desres- 
peitosamente,  as  jóias  e  mimos  da  aristocracia  dos  beauxes- 
prits. 

D* aqui,  algumas  vezes,  a  publicação  indiscreta  e  a  apro- 
priação abusiva  d'essas  copias : — todas  hão  lembrar-se  como 
Voltaire,  por  exemplo,  receava  da  indiscrição  dos  amigos 
quando  lhes  confiava  algum  trecho  ou  producto  inédito  da 
sua  penna. 


15 


A  menina  De  Launay,  que  Saint-Beuve  appellida  de  La 
Bruyére  das  mulheres,  que  Eugénio  Crépet  prefere  que  seja 
o  La  Rochefoucauld  feminino,  e  que  nós  suppomos  poder 
lisongear  melhor  não  incommodando  por  sua  causa  nenhum 
d'aquelles  respeitáveis  fabricantes  de  Máximas  e  Caracte- 
res:— a  menina  De  Launay,  pode  dizer-se,  e  diz  ella  pró- 
pria nas  suas  Memorias,  que  deveu  «sahir  inopinadamente 
da  profunda  obscuridade  em  que  vivia»  na  corte  elegante 
da  duqueza  de  Maine  á  pequena  carta  maliciosa  que  eserer 
vera  ao  senhor  de  Fontenelle,  por  este  não  ter  visto  com 
olhos  lassez  phibsophes"  o  prodigio  dos  Espíritos  junto  do 
leito  da  Tenar. 

Fontenelle,  vivamente  gracejado  pelos  amigos,  mostrara 
a  carta. 

—  <íElle  reussit», — todos  a  copiaram,  e  quando  nos  sa- 
lões de  Sceaux  se  soube  quem  a  escrevera,  foi  uma  sur- 
preza  geral,  e  a  reputação  do  fino  talento  da  De  Launay  fi- 
cou para  sempre  feita. 

Como  diz  Vauxcelles,  e  como  toda  a  gente  sabe,  as  car- 
tas da  senhora  de  Sévigné  tornaram-s  e  celebres  dès  son  vi~ 
vant;  muitas  outras  o  foram,  correndo  em  copias  entre  os 
amadores  mais  apurados  e  os  círculos  mais  cultos  do  tempo. 

Antes  de  publicadas,  as  celebres  Máximas  de  La  Roche- 
foucauld foram  em  diversas  copias  submettidas  á  critica  do 
salão  da  senhora  de  Sablé;  por  signal  que  a  esta  circum- 
stancia  e  também  áquelle  costume  devemos  uma  das  mais 
bellas  cartas  da  nobre  esposa  do  nosso  antigo  e  illustre  au- 
xiliar, o  marechal  de  Schomberg,  conde  de  Mertola^  carta 
primorosa  de  bom  senso  e  de  fina  honestidade  feminina,  que 
egualmente  andou  de  mão  em  mão,  em  copias,  posto  que 
truncada  pela  amiga  do  famoso  moralista. 

Mas  não  era  só  isto. 


46 


Como  a  moda, —  esta  absorpção,  tantas  vezes  preversão 
da  elegância  feminina  e  moderna, — cliega  a  escravisar  o 
pudor  das  mulheres  e  a  seriedade  dos  homens,  aquella  os- 
tentação, aquelle  culto  dominante  da  litteratura  epistolar  e 
da  arte  de  bem  dizer,  levava  de  vencida  os  recatos  e  reser- 
vas mais  naturaes  e  legitimas  da  correspondência  intima. 
O  que  hoje  nos  parece,  na  publicação  das  Cartas  da  freira 
portugueza,  uma  inconfidência  brutal  e  cynica,  era  então 
pouco  menos  do  (jue  a  coisa  mais  natural  do  mundo. 

Alguns  annos  depois,  a  menina  Aissé,  aquella  singular 
circassiana  feita  parisiense,  cuja  doce  tradição  inspirou  a 
Prevost,  segundo  Asse,  a  sua  Historia,  de  uma  grega  mo- 
derna, e  cujas  epistolas  este  reuniu  ás  da  Religiosa,  não 
duvidava  oíferecer  á  sua  amiga  e  confidente,  a  senhora  Ca- 
landrini,  copias  das  cartas  do  seu  mais  que  discreto  aman- 
te, e  dizia-lhe :  «...  tão  bem  escriptas  são,  que  se  não  se 
soubesse  a  quem  são  dirigidas,  achal-as-hiam  encantado- 
ras.» 

Nada  mais  natural,  pois, — eBarbinnão  tinha  realmente 
interesse  em  mentir,  n'esta  parte — ,  do  que  correrem  já 
em  copias  nos  últimos  mezes  de  1668  as  cartas  que  elle 
imprimia,  quer  simplesmente  sob  o  influxo  d'aquella  moda 
ou  d' aquella  corrente  litteraria, —  (juer,  e  é  o  que  enten- 
dem geralmente  os  commentadores,  como  trophéo  de  uma 
conquista  galante  de  aventureiro  fidalgo  e  francez, —  quer, 
finalmente,  o  que  longe  de  excluir  pode  comprehender  e 
completar  essas  hypotheses,  como  fructo  exótico  colhido  em 
terra  estranha  e  longínqua  que  estimulasse  vivamente  a 
sentimentalidade  elegante  dos  salões  parisienses. 

—  (íPour  Lishomie?!  mais  cela  est  bien  loinf. . . »  diziam 
dois  annos  depois  á  futura  senhora  de  Maintenon,  quando 
ella  pensava  em  vir  abrigar-se  aqui. 


47 


Apesar  das  estreitas  relações  entre  as  duas  cortes,  e  do 
numero  considerável  de  francezes  que  tinham  vindo  servir 
em  Portugal, — o  nosso  paiz  era  então,  como  não  deixou 
de  ser  ainda,  e,  com  magoa  o  dizemos,  como  não  deixaram 
de  ser  também  os  mais  paizes,  para  uma  grande  parte  da 
sociedade  parisiense,  alguma  coisa  semelhante ...  ao  que 
para  o  romano  de  Roma  eram  os  outros  povos,  ou  para  o 
chinez  de  Pekin  continuam  sendo  todos. . .  os  que  não  são 
chinezes. 

Pelo  menos  um  paiz  longínquo  e  extraordinário  que  a 
lenda,  e  também  o  disparate  de  superficiaes  viajantes,  en- 
volviam em  fievoas  algumas  vezes  maravilhosas,  não  pou- 
cas, picarescas. 

Mas  se  as  Cartas  portuguezas,  que  era  o  nome  que  lhes 
dera  o  editor,  andavam  em  copias, — louvadas  e  procura- 
das— ,  nos  círculos  litterarios,  onde  segundo  as  próprias  in- 
dicações d'ellas  havia  alguns  mezes  apenas  que  poderiam 
ter  apparecido,  —  pode  por  egual  acreditar  se  que  Barbin, 
tão  intimamente  relacionado  com  esses  círculos,  colhendo- as 
e  imprimindo-as,  nenhum  conhecimento  tivesse,  realmente, 
da  sua  procedência,  não  soubesse,  pelo  menos,  o  nome  do 
seu  proprietário  ou  do  seu  apresentante,  a  (juem  tivessem 
sido  dirigidas,  quem  as  tivesse  traduzido,  emfim? 

Pois  nem  o  caracter  intimo  d'aquella  correspondência,  o 
extraordinário  ruido  e  interesse  que  ella  despertava,  os  na- 
turaes  inconvenientes  que  a  sua  publicação  poderia  ter,  não 
diremos  já  para  a  pobre  freira  estrangeira,  facilmente  de- 
nunciada assim  aos  seus  compatriotas,  mas  para  o  próprio 
destinatário  inconfidente, — «um  gentil  homem  de  qualida- 
de» na  sociedade  e  na  milicia  franceza,  —  fariam  hesitar  na 
empreza  o  celebre  editor,  se  ella  não  lhe  tivesse  sido  au- 
ctorizada,  se  elle  não  soubesse  seíjuero  nome  de  quem  re- 

F.  2 


18 


cebendo  ou  de  quem  traduzindo  as  Cartas  poderia  conce 
der-lhe  ou  reeusar-Ihe  o  direito  de  imprimil-as? 

Claramente: — ou  quem  lhe  confiara  e  auctorizara  a  pu- 
blicação lhe  impozera  o  silencio  dos  nomes,  ou  o  livreiro, 
commettendo  por  conta  própria  a  indiscrição  de  publicar 
aquellas  cartas  intimas,  que  apesar  dos  costumes  desabiiea- 
dos  do  tempo  poderiam  não  deixar  em  boa  situação  e  con- 
ceito o  destinatário  illustre,  abstinha-se  prudentemente  de 
aggravar  o  abuso,  trazendo  do  pequeno  circulo  dos  que  co- 
nheciam a  procedência  d'ellas  para  a  grande  publicidade 
menos  complacente  e  fácil  os  nomes  dos  que  se  haviam  tor- 
nado réos  d'aquella  inconfidência  cruel. 

É  certo  que  em  algumas  occasiões,  e  não  tão  frequente- 
mente como,  por  uma  comprehensão  incompleta  dos  costu- 
mes e  dos  perigos  da  epocha,  parece  ter-se  supposto,  circu- 
lavam ou  imprimiam-se,  como  succede  hoje,  composições 
anonymas  ou  apocryphas  que  a  exploração  mercantil  ou  a 
intriga  e  as  indiscrições  das  salas  attribuiam  a  personagens 
contemporâneos,  por  este  facto  muitas  vezes  prejudicados 
na  sua  reputação  e  nas  suas  situações  sociaes. 

Era,  porém,  muito  arriscada  a  aventura,  e  raramente  o 
espectro  da  Bastilha  e  o  risco  de  uma  completa  ruina  dei- 
xariam que  se  abalançassem,  de  coração  leve,  a  taes  em- 
prezas,  livreiros  acreditados  e  conhecidos  como  Barbin. 

Uma  observação  ainda.  Ninguém  viu  até  hoje,  na  inte- 
gra^ e  foi-nos  impossível  tental-o,  o  Privilegio  da  publicação. 
Porventura  n'elle  se  encontraria  alguma  exjilanação  natu- 
ralmente supprimida  no  extracto  publicado  d'esse  diploma. 

Mal  pode  comprehender-se,  porém,  que  Barbin,  impri- 
mindo uma  obra  que  circulava  já  em  copias  e  da  qual  po- 
derá apoderar-se  qualquer,  como  elle  dizia  ter  feito,  obti- 
vesse o  direito  exclusivo  por  cinco  annos  d'essa  impressão 


19 


e  na  forma  da  lei  a  registasse  na  Communauté  des  Mar- 
chants  Libraires  &  Imprimeurs . . .  suiuant  <È  conforme- 
ment  à  VArrest  de  la  Cour  de  Parlement  du  8  Avril  1653, 
se  não  estivesse  seguro  de  que  ninguém  lhe  poderia  dispu- 
tar o  direito,  e  não  podesse  ou  tivesse  provado  a  proprie- 
dade da  versão  original,  pelo  menos. 


II 


Mas  haveria  realmente  o  original  accusado? 

Mas  realmente  seria  uma  versão  o  livro  de  Barbin? 

Ao  cabo  de  dois  séculos  de  tradição  aílirmativa,  de  lei- 
tura, de  critica,  de  enthusiasmo, — ao  cabo  de  oitenta  edi- 
ções, rhapsodias  e  imitações — ,  um  escriptor  deBeaune,  o 
sr.  E.  Beauvois,  piedosa  e  apaixonadamente  empenhado  em 
lavar  da  memoria  de  um  grave  personagem  a  terrível  fra- 
queza de  ter  abrasado  em  profanos  amores  uma  «esposa  do 
Senhor», — caso  que  parece  não  se  vira  ainda  na  mocidade 
de  general  algum  de  exércitos  christãos  — ,  rompe  no  ex- 
cesso pouco  critico,  não  de  suppor,  apenas,  mas  de  resol- 
ver que  essas  Cartas, — sacrílegas,  ainda  depois  das  da  ce- 
lebre abbadessa  do  Paracleto — ,  sejam  simplesmente... 
um  Parfait  Secretaire  des  Amants  ^. 

«...  ne  sont  pas  autre  chosa,  —  observa  elle  de  passa- 
gem, decisivamente,  n'um  pequeno  parenthesis  desdenhoso. 


1  La  jeunesse  du  marechal  de  Chamilly  &.  par  E.  Beauvois. 
{Extr.  des  Mémoires  de  la  Société  d'Histoire,  ele.) — Beaune, 
1885. 


20 


aberto  na  breve  lição  de  como  e  porque  os  auctores  e  edi- 
tores de  ces  sortes  d'écrits  não  se  embaraçam  muito  avec 
des  lecteiirs  peu  exigeants,  qui  ne  seront  pas  offusquées  par 
Vincohérence  des  idées,  ni  par  les  faits  contradictoires ,  ni 
par  la  boursouflure  du  style. 

Logo  apuraremos  todas  estas  coisas,  a  começar  pela  bour- 
souflure du  style  do  auctor  das  Cartas,  que  o  illustre  critico 
de  Beaune,  algumas  paginas  adeante,  mais  generosamente 
suppõe  ter  sido  tquelque  bel  esprit  qui  avait  plus  de  facilite 
de  style  que  de  logique  et  de  memoire ...» 

Mas  é  precisamente  o  que,  por  via  de  regra,  acontece  não 
aos  secretários  mas  aos  amantes!. .  .  Alguém  disse  já,  não 
sabemos  quem,  como  não  o  sabia  Ratisbonne,  que  o  trans- 
mitte: —  «Para  bem  escrever  uma  carta  de  amor  é  neces- 
sário começar  sem  saber  o  que  se  dirá,  e  não  saber  o  que 
se  disse,  quando  se  acabou.» 

Que  o  sr.  Beauvois  nos  perdoe !  Nada  mais  respeitável 
do  que  a  sua  piedosa  tentativa.  Mas  também  nada  mais  na- 
tural do  que  a  sua  gravidade  erudita  não  estar  muito  ao 
corrente  do  que  os  amantes  costumam  dizer,  e  do  que  cos- 
tumam ser. . .  os  Secretários  de  amor. 

Se  assim  não  fosse,  o  illustre  escriptor  teria  facilmente 
reconhecido  a  considerável  distancia,  bem  maior  do  que  o 
seu  parentbesis, — que  separa  uns  dos  outros,  e  as  Cartas 
portuguezaSj  por  exemplo,  do  Secretaire  des  dames  ou  do 
Novveav  secretaire,  que  exactamente  por  aquelle  tempo  o  sr. 
Pikkert, — gentilhomme  ordinaire  de  la  Chambre  du  Roy, 
— dedicava  á  menina  d'Adlersbelm,  e  Estevão  Loyson,  au 
Palais,  etc,  alli  mesmo  a  dois  passos  de  Barbin,  offerecia 
aos  seus  freguezes  peu  exigeants  *. 


1  Novveav  sscretaire,  \  contenant  diverses  |  lettres  |  choisies 


21 


Não  seria,  porém,  o  pequeno  livro  das  Cartas  poríngue- 
zas  uma  simples  ficção  romântica  destinada  a  explorar  si- 
multaneamente, na  forma,  uma  corrente  litteraria  predo- 
minante, e  no  fundo,  as  recordações  e  as  lendas  da  campa- 
nha de  Portugal,  pelos  nossos  estimados  auxiliares  de  então, 
e  mais  ainda  pelos  seus  descendentes  até  hoje,  um  pouco 
caprichosamente  considerada  como  uma  campanha  fran- 
ceza? 

N'esta  hypothese,  a  indicação  de  que  a  obra  fora  tradu- 
zida de  um  original  portuguez,  e  a  terminante  allusão  ao 
destinatário  das  Cartas,  seriam  apenas  um  expediente  ba- 
nal e  grosseiro  de  estimular  a  curiosidade  e  o  appetite  do 
publico. 

Do  que  temos  dito  deduz-se  já  como  nos  parece  insubsis- 
tente e  ociosa  a  questão  de  ser  ou  não  ser  uma  traducção 
a  publicação  de  Barbin,  invariavelmente  affirmada  como  tal 
por  elle  e  por  todas  as  numerosas  edições  subsequentes, 
até  hoje. 

Débil  argumento  era  já  o  duvidoso  interesse  dos  livrei- 
ros em  dar  como  versão  o  que,  sem  risco  para  os  créditos 
da  autbenticidade  da  obra,  poderiam  francamente  offereeer 
aos  leitores  com  os  merecimentos  de  original  directamente 
reproduzido. 

Que  haveria  de  extraordinário, — particularmente  para 
o  grande  publico — ,  que  uma  religiosa  estrangeira  escre- 
vesse ao  amante  na  lingua  d'este,  na  lingua  franceza  já  en 


et  familières,  |  sur  differents  sujeis  les  plus  galands  &  |  en- 
joiiez  de  ce  temps,  ete.  |  par  M.  Pikkert,  gentilhomme  |  ordi- 
naire  de  la  Chambre  du  Roy.  |  A  Paris,  chez  Estienne  Loy- 
son,  au  Falais,  |  à  Tentrée  de  la  Gallerie  des  Prisonniers,  \  au 
Noin  de  lesvs  |  mdclxviii.  |  Avec  Privilege  du  Roy. 


22 


tão,  e  pelas  próprias  circumstancias  da  epocha,  notavel- 
mente generalisada,  quando,  além  de  tudo,  o  francez  d'es- 
sas  Cartas  não  era  positivamente  o  das  «grandes  senhoras» 
e  dos  grandes  escriptores  do  tempo? 

Porque  simular  uma  authenticidade  que  desde  logo  se 
arriscava  a  suspeitas  maiores  pela  declaração  perfeitamente 
inverosimil  de  não  conhecer  o  editor  os  nomes  dos  proprie- 
tários do  escripto  que  imprimia  e  de  que  pedira  e  obtivera 
privilegio  de  publicação? 

Já  agora  que  vamos  em  palestra  que  tem  de  passar  por 
enfadonha  e  prolixa  para  alguns  leitores,  mas  que  se  nos 
impõe  como  necessária,  no  estado  de  deficiente  discussão  e 
investigação  critica  em  que  ainda  viemos  encontrar  a  ques- 
tão no  próprio  meio  litterario  portuguez,  permittam-nos 
uma  pequena  digressão,  que,  não  sendo  inútil  para  o  ponto 
que  estamos  discutindo,  sob  outro  aspecto  se  nos  affigura 
interessante. 

Anda  de  ha  muito  accusada  na  historia  bibliographica,  e 
até  na  historia  das  nossas  primeiras  descobertas,  uma  nar- 
ração relativa  á  da  ilha  da  Madeira,  precisamente  publicada 
por  Barbin,  o  mesmo  editor  das  Cartas,  dois  annos  depois 
d'estas,  como  traducção,  também,  de  um  original  portuguez, 
de  Francisco  Alcoforado,  supposto  companheiro  de  Zarco 
n'aquella  descoberta  *. 


1  Relation  |  historique  \  de  la  decouverte  \  de  1'isle  \  de  Mc- 
dere.  |  Traduit  du  Portngais.  \  Á  Paris,  |  Chez  Lovis  Billaine, 
au  second  i  pilier  de  la  grand'Salle  du  Palais,  à  la  Palme,  & 
au  grand  César,  |  m.dclxxi.  |  Avec  Privilege  dv  Roy. 

— Extrait  dv  Privilege  du  Roy.  Par  grace  &  Privilege  du 
Roy,  donné  à  S.  Germain  en  Laye  le  18  iour  d'Aoust  1671. 
II  est  permi  à  Claude  Barbin  Marchand  Libraire  à  Paris  d'im- 


23 


Não  é  extremamente  curiosa  a  apparição  d'este  nome  de 
Alcoforado  n'uma  publicação  de  Barbin  poucos  annos,  ape- 
nas, depois  da  publicação  das  Cartas  da  freira  Marianna  ?. . . 

A  narração  alludida  é  geralmente  considerada  como  a 
fonte  original  da  lenda  romântica  dos  amantes  Machin  e 
Arfet,  fugidos  de  Bristol  e  arrojados  por  uma  tempestade 
áquella  ilha,  então  ignorada. 

É  claro  que  não  vamos  estudar,  agora,  a  novella. 

A  obra  de  Barbin,  extremamente  rara,  não  é  mais  de 
que  um  extracto  ou  do  que  uma  accommodação,  na  melhor 
boa  fé  confessada,  de  uma  Epanaphora  de  D.  Francisco 
Manuel  de  Mello. 

Pois  sobre  o  editor  parisiense  pesa  ainda  a  suspeita  in- 
justa de  ter  praticado  uma  mystificação,  dando  como  tra- 
dueção  de  original  portuguez,  que  não  existia^  o  romance 
dos  dois  amantes  inglezes. 

Seja  exactamente  esta  publicação  de  Barbin,  feita,  como 
dissemos  já,  dois  annos,  apenas,  depois  da  outra,  que  ve- 
nha depor  em  favor  da  honestidade  profissional  d*elle,  e  de 
certo  modo  reforçar  a  idéa  de  que  elle  dizia  simplesmente 
a  verdade  quando  declarava  que  as  Cartas  que  imprimia 
eram  apenas  uma  traducção. 

Podendo  dar  um  caracter  perfeitamente  original  ou  iné- 
dito á  sua  Relation  historique,  ou  limitar-se  a  dizer  que  era 


primer  un  Livre  intitule,  Relation  de  Viste  de  Madere,  pêdant 
Tespace  de  cinq  années,  ete. 

— Achevé  d'imprimer  pour  la  premiere  fois  le  10  iuillet 
1671. 

— (Verso) — Et  le  dit  Barbin  a  associe  avec  luy  a  son  Pri- 
vilege,  Louys  Billaine,  suivant  Taccord  fait  entre'eux. 

Exemplar  offerecido  pelo  distincto  bibliophilo  sr.  F.  Neves. 


24 


a  traducção  da  supposta  narrativa  portugueza  de  Francisco 
Alcoforado,  declara  discretamente,  no  frontespicio,  que  é 
traduzida  do  portuguez,  e  posto  seja  realmente  um  trabalho 
de  reconstituição  da  narrativa  accusada  por  D.  Francisco 
Manuel,  observa  que  é  a  este  «que  devemos  o  serviço  de  a 
ter  communicado  ao  publico  na  sua  língua,  e  é  sobre  aim 
pressão  portugueza  que  eu  faço  esta  traducção.» 

Não  pára  aqui,  porém: 

—  «Como  cada  lingua», — accreseenta,  —  «tem  asuabel- 
leza  própria,  o  seu  estylo  particular  e  o  seu  génio,  julgo- 
me  obrigado  a  prestar  conta  do  que  posso  ter  supprimido, 
mudado  ou  adoçado  n'esta  traducção.» 

E  explica  como  entendeu  dever  desembaraçar  a  Relação, 
do  estylo, — estrement  eslévé  &  bien  plus  Poélique  gu'ora- 
ioire, — de  D.  Francisco  Manuel  de  Mello,  observando  que 
— i'ce  sttle  est  vniuersellement  pratique  par  la  pluspart  cies 
Portugais.-o 

Não  o  era,  naturalmente,  por  uma  mulher,  toda  entre- 
gue á  sua  paixão  e  á  sua  dor,  e  que  não  pensava,  decerto, 
senão  em  exprimil-as  o  mais  clara  e  persuasivamente  que 
podesse,  ao  amante  pouco  experiente  e  entendido  nas  opu- 
lências lilterarias  da  lingua  que  mal  aprendera  na  campa- 
nha! ... 

Com  bem  diversa  diffieuldade  havia  pois  de  encontrar-se 
o  traductor  das  Cartas,  não  menor  seguramente  do  que  a 
de  desbastar  e  verter  a  linguagem  litteraria  da  moda. 

Era  a  de  comprehender  e  trasladar  o  dizer  familiar  e 
commum. 

Não  seria,  por  isso  mesmo,  a  primeira  garantia  da  vera- 
, cidade  do  editor,  n'esta  parte,  a  própria  linguagem  da  obra^ 
e  não  se  revela  precisamente  n'aquella  o  trabalho,  as  hesi- 
tações, o  torneio  forçado  de  uma  versão  ? 


25 


Não  sei  de  escrlptor  ou  leitor  francez  que  tenlia  seriamente 
duvidado  de  que  seja  uma  traducção  o  livro  de  Barbin. 

É  tão  difficil  esconder  aquelle  caracter  ao  leitor  menos 
experiente  no  génio  e  nos  segredos  da  própria  lingua,  que 
realmente  a  simples  ausência  de  qualquer  contestação  defi- 
nida e  séria,  por  parte  dos  escriptores  e  criticos  francezes, 
—  que  muito  mais  do  que  os  nossos  se  teem  occupado  das 
Cartas, — poderia  imprimir  um  certo  ar  de  impertinência  á 
discussão  detida  do  problema. 

Já  observámos,  porém,  que  temos  de  considerar  a  ques- 
tão nos  termos  em  que  ella  se  encontra  ainda,  não  em  Fran- 
ça, mas  entre  nós,  e  as  duvidas  que  não  se  manifestam  por 
parte  da  critica  franceza  encontramol-as  subscriptas,  de  al- 
gum modo,  por  dois  dos  nossos  maiores  e  mais  respeitáveis 
escriptores  modernos. 

Cremos,  comtudo,  que  se  tem  exaggerado  consideravel- 
mente o  valor  critico  que  elles  proprics  deram  a  essas  du- 
vidas. 

Attribue-se  a  Alexandre  Herculano  a  idéa  de  que  as  Car- 
tas não  sejam  uma  traducção,  mas  essa  idéa  encontramol-a 
apenas,  desacompanhada  de  qualquer  justificação,  em  uma 
pequena  nota  preambular  á  versão  portugueza  de  Lopes  de 
Mendonça,  em  1852. 

— «O  nosso  amigo  Alexandre  Herculano»,  —  diz  elle, — 
«é  de  opinião  que  as  Cartas  são  originalmente  escriptas  em 
francez,  e  parece  dar  pouco  credito  á  tradição  que  as  attri- 
bue  a  uma  religiosa  portugueza.» 

Camillo  Castello  Branco  ^  depois  de  dizer  que  «em  1669 


1  Curso  de  Litleratura  Portugueza  por  Camillo  Castello  Bran- 
co. Continuação  e  complemento  do  Curso  de  Litleratura  Por- 
tugueza por  José  Maria  de  Andrade  Ferreira. — Lisboa,  1876. 


26 


apparecem  em  francez  as  Cartas  da  religiosa  portugueza 
traduzidas  por  Subligny,  a  quem  o  conde  enfatuado  con- 
fiara os  originaes»,  inclina-se  declaradamente  para  aquella 
duvida  de  Herculano,  accrescentando :  «O  torneio,  a  Índole 
e  a  contextura  da  phrase  recende  as  olorosas  meiguices  do 
género  epistolar  francez.» 

Que  nos  perdoe  o  grande  escriptor,  nosso  mestre  e  amigo, 
mas  é  exactamente  a  isso  que  nos  parece,  e  tem  parecido  a 
muitos,  podáramos  dizer  que  a  todos,  que  ellas  nem  longin- 
quamente recendem. 

Precisamente  uma  das  singularidades  mais  notadas  é  o 
contraste  da  sua  linguagem  banal,  arrastada,  incorrecta, 
quer  com  a  forma  preciosa^,  aos  últimos  lampejos  da  qual 
apparecem,  quer  com  o  estylo  castiço,  vivo,  gracioso,  na 
florescência  do  qual  aquella  publicação  se  faz. 

Malherbe,  que  na  sua  grammatica  adoptou  a  versão  das 
Cartas  de  Heloisa,  por  Bussy,  como  um  exemplar  da  boa  e 
elegante  dicção  franceza,  poderia  citar  a  versão  das  Cartas 
portuguezas  como  excellente  exemplar. . .  contrario. 

Dorat,  de  quem  não  poderá  dizer-se  que  não  conhecesse 
perfeitamente  a  sua  lingua,  e  até  as  olorosas  ternuras  a  que 
allude  Camillo,  pois  que  as  praticava  com  particular  dilec- 
ção,  Dorat,  o  apaixonado  imitador  em  verso  das  Cartas  de 
Marianna,  dizia  d'ellas: 

—  «Não  se  encontram  nas  Cartas  de  que  nosoccupamos 
nem  esta  metaphysica  do  amor  que  as  nossas  Mulherinhas 
(Femmelettes)  fizeram  moda,  nem  aquelles  golpes  officiosos 
de  punhal  que  cortam  a  intriga  em  vez  de  a  desatar,  nem 
aquelles  venenos  lentos  que  deixam  ás  heroinas  tagarellas 
o  tempo  de  uma  arrastada  agonia,  nem  aquellas  situações, 
em  summa,  em  que  o  auctor  se  fatiga  por  metter  em  acção 
os  caracteres  que  elle  sonhou  e  dos  quaes  nenhum  modelo 


27 


existe  no  turbilhão  que  nos  cerca;  mas  em  compensação, 
tudo  alli  é  verdadeiro,  natural,  d'esta  simplicidade  commo- 
vedora,  primeiro  encanto  dos  escriptos  que  se  relêem  e  dos 
quaes  a  gente  não  se  cança 

—  «A  dicção  é  arrastada,  diflusa,  incorrecta,  algumas 
vezes  maneirada,  quasi  sempre  commum.  Por  pouco  sen- 
siveis  que  sejamos,  havemos  de  ler  muitas  vezes  as  Cartas 
portuguezas  antes  de  percebermos  que  são  mal  escriptas. 
Que  se  julgue  do  prazer  que  nos  causariam,  se  ao  mereci- 
mento que  teem  já,  juntassem  ainda  o  encanto  do  estylo.» 

Escusado  será  dizer  que  Dorat  as  tinha,  irrecusavel- 
mente, como  traduzidas. 

Mas  se, —  aparte  o  desprimor  litteral, — a  Índole  eo  tor- 
neio do  estylo  as  identificassem  com  as  tendências  e  com  o 
gosto  da  epistolographia  franceza  do  século  xvn,  mal  po- 
derá comprehender-se  que  ellas  tivessem  o  extraordinário 
êxito  de  que  a  nossa  nota  bibliographica  dá  irresistível  tes- 
temunho, e  que  constituíssem  n'essa  litteratura  como  que 
um  género  exótico,  precisamente  pela  sua  feição  sentimen- 
tal e  estyllistica: — o  das  portuguezas . 

Quantas  vezes  se  tem  citado  a  phrase  da  senhora  de  Sé- 
vigné? 

—  «Emfim,  Brancas  escreveu-me  uma  carta  tão  exces- 
sivamente terna,  que  resgata  todo  o  seu  esquecimento  pas- 
sado. Fala-me  do  seu  coração  em  todas  as  linhas.  Se  lhe 
respondesse  no  mesmo  tom  faria  u.msLportugueza.y>  ^ 


1  Lettres  de  Madame  la  Marquise  de  Sévigné,  etc,  a  Madame 
la  comtesse  de  Grignan,  etc.  Rouen,  1780. 

Lettre  73 — Aux  Rochers.  Dimanche  19  juillet  1671. 

Uma  nota  diz-  —  «Allusion  aux  Lettres  de  la  Religieuse 
Portugaise». 


28 


Se  Camillo  Castello  Branco  tivesse  podido  dedicar  ás 
Cartas  toda  a  fina  e  certeira  attenção  do  seu  alto  espirito  e 
da  sua  singular  aptidão  critica,  ninguém,  talvez,  como  elle, 
pudera  ter  apurado  definitivamente  a  questão. 

Mas  no  meio  das  opulências  litterarias  que  inventariava 
no  seu  manual,  poude  dar  apenas,  a  essas  Cartas,  uma  ob- 
servação passageira  e  rápida,  porventura  trahida,  além 
d'isso,  por  uma  certa  prevenção  casual. 

Comludo,  como  teremos  occasião  de  ver,  a  sua  objecção 
não  pára,  pode  dizer-se  até  que  não  se  fundamenta,  prin- 
cipalmente, na  supposta  conformidade  d'ellas  com  a  dicção 
epistolar  franceza. 

N'este  ponto  a  duvida, — apesar  de  toda  a  auctoridade  de 
quem  n'um  simples  traço,  mais  gracioso  do  que  exacto,  a 
exprime,  de  passagem, —  mal  pode  contrariar  e  arredar, 
não  diremos  já  toda  a  tradição  franceza^  mas  as  indicações 
terminantes  dos  commentadores  que  mais  detida  e  particu- 
larmente estudaram  e  verificaram  essa  tradição. 

Sabemos  bem  que  um  ou  outro  escriptor,  e  Sousa  Bo- 
telho cita,  por  exemplo,  o  abbade  Feller,  mas  nenhum  de 
competência,  e  menos  ainda  com  estudo  especial  e  sério  do 
assumpto,  teem  ligeiramente  supposto  uma  simples  «aceom- 
modação»  ou  mystificação  litteraria. 

Em  vez,  porém,  de  um  exame  necessariamente  enfado- 
nho da  forma  grammatical  do  texto  de  Barbin,  offerecere- 
mos  o  resultado  e  o  testemunho  de  dois  homens  que  larga- 
mente estudaram  as  Cartas  e  cuja  auctoridade  e  experiên- 
cia, não  só  litteraria,  mas  linguistica,  não  poderá  ser  re- 
cusada n'esta  questão. 

Poderamos  chamar  a  depor  muitos  outros,  é  claro.  De- 
sejariamos  citar,  por  exemplo,  Francisco  Manuel  do  Nasci- 
mento, o  Filinto  Elysio^  um  mestre  da  lingua  portugueza, 


29 


largamente  conhecedor  também  do  génio  e  do  torneio  litte- 
rario  do  francez.  Francisco  Manuel  foi  o  primeiro  traductor 
portuguez  das  Cartas.  Traduziu-as  em  Paris,  acceitando 
sem  objecção  nem  reserva  a  tradição  de  que  eram  origina- 
riamente portuguezas.  Mas  se  este  facto  vale  por  um  de- 
poimento importante,  é  também  o  único  que  Francisco  Ma- 
nuel nos  deixou. 

De  passagem,  porém,  faremos  uma  observação:  —  a  de 
que  tão  diilicil  é  realmente  esconder  o  caracter  de  traduc- 
ção  de  uma  obra  litteraria  que  apesar  de  toda  a  notável 
sciencia  da  lingua  portugueza  que  caracterisava  Francisco 
Manuel,  do  seu  estylo  obstinadamente  purista,  e  do  torneio 
tão  original  quanto  geralmente  artiíicoso  da  sua  locução,  a 
traducção  d'elle  está  a  denunciar-se  e  impor-se  como  tal, 
quasi  que  em  cada  linba,  ao  leitor  portuguez  regularmente 
conhecedor  e  experiente  da  lingua  nacional. 

É  o  que  tem  acontecido  ou  o  que  acontece  geralmente 
com  a  versão  franceza,  ás  pessoas  a  quem  ó  familiar  esta 
lingua. 

Por  isso,  para  o  abbade  de  St.  Leger,  o  celebre  biblio- 
grapho,  um  dos  dois  commentadores  a  que  nos  referíamos, 
não  havia  duvida  de  que  o  livro  de  Barbin  era  reaUnente 
uma  traducção. 

E  até  uma  péssima  traducção,  que  «não  se  faz  tolerar 
senão  pelo  fundo  das  idéas  que  pertencem  ao  original,  ab- 
strahindo  dos  innumeraveis  defeitos  da  translação.» 

Outro  commentador  a  que  não  podemos  deixar  de  refe- 
rir-nos  é  Sousa  Botelho,  mais  conhecido  entre  nós  por  Mor- 
gado de  Matheus,  e  não  sem  injustiça  também  entre  nos 
quasi  exclusivamente  conhecido  pela  celebre  edição  monu- 
mental dos  Lusíadas.  Estudou  larga  e  apaixonadamente  as 
Cartas,  na  lenda  e  no  texto,  e  fez  d'eUas  uma  edição  pri- 


30 


morosa,  separando-as  das  rhapsodias  com  que  andavam  con- 
fmididas,  e  vertendo-as  n'uma  linguagem  que,  não  sendo 
tão  purista  e  tornejada  como  a  de  Filinto,  é  por  isso  mesmo 
mais  natural  e  viva. 

Todas  as  circumstaneias  concorrem,  qual  d'ellas  mais  fa- 
vorável, para  imprimir  á  noticia  critica  do  benemérito  bi- 
bliographo  e  erudito,  e,  não  diremos  á  sua  opinião,  mas  á 
sua  convicção  profunda  e  intransigente,  uma  singular  au- 
ctoridade: — u  estudo  demorado  e  comparativo  das  Cartas, 
nas  melhores  e  mais  antigas  edições;  os  recursos  de  traba- 
lho e  de  consulta  que  lhe  facultava  a  própria  sitaação  so- 
cial; o  largo  conhecimento  e  diuturna  pratica  das  línguas 
e  litteraturas  franceza  e  portugueza,  que  lhe  eram  por 
egual  familiares;  um  facto,  até,  geralmente  esquecido  en- 
tre nós :  o  de  ser  marido  de  uma  grande  escriptora  fran- 
ceza—  dVesprit  qui  ne  dit  rien  de  vulgaire  et  le  gout  qui  ne 
dit  rien  de  trop»  ■ — na  phrase  de  José  Ghénier;  — a  quinta 
voz,  a  da  «cavallaria  idealista  do  século  xvm»,  d'aquelle 
magnifico  quinteto  imaginado  por  SaintBeuve: — Voltaire, 
João  Jaques,  Diderot,  Crébillon  filho,  e  ella. . .  a  Senhora 
de  Sousa  ^ 


1  «D'autres  ont  peint  le  dix-huitième  sièele  par  des  aspects 
mouqueurs  ou  orageux,  dans  ses  inégalités  ou  ses  désordres. 
Voltaire  Ta  bafoué,  Jean  Jaeques  Ta  exalte  et  deprime  tour  à 
tour;  Diderot,  dans  sa  Correspondance,  nous  le  fait  aimer 
comme  un  galant  et  brillant  méiange;  Crébillon  fils  nous  en 
déroule  les  conversations  alambiquées  et  les  licences.  L'auteur 
ã.'Eugène  de  Rothelin  nous  a  peint  ce  sièele  en  lui  même  dans 
sa  íleur  exquise,  dans  sont  éclat  ideal  et  harmonieux.  Eugène 
de  Rothelin  est  comme  le  roman  de  chevalerie  du  dix-huitième 
sièele,  ce  que  Tristan  de  Léonois  ou  tel  autre  roman  du  trei- 
zième  sièele  était  à  la  chevalerie  d'alors,  ce  que  le  petit  Jehan 


31 


Para  nada  faltar  a  esta  coincidência  de  circumstancias 
felizes  no  mais  dedicado  commentador  das  Cartas  da  pobre 
freira  portugueza,  a  illustre  auctora  da  Adèle  de  Sénange  e 
Exigène  de  Bothelin  passara  parte  da  sua  mocidade  n^um 
convento,  e  diz  Saint-Beuve:  «ea  ousarei  conjecturar  que 
aquella  circumstancia  se  conservou  como  a  maior  questão 
da  sua  vida  e  o  fnndo  mais  inalterável  dos  seus  sonhos.» 

Pois  bem :  o  depoimento  de  Sousa  Botelho  chega  a  pa- 
recer rude  na  sua  forma  terminante  e  convicta. 

— « ...  um  portuguez — diz  elle  — ou  seja  quem  for  que 
conheça  bem  esta  lingua,  não  poderá  duvidar  de  que  as 
cmco  cartas  da  religiosa  tenham  sido  traduzidas  yuasi  lit- 
teralmente  de  im  original  portuguez .  A  construcção  de  mui- 
tas phrases  é  tal  que  retraduzindo-as  palavra  a  palavra  em 
portuguez,  encontrar-se-hão  inteiramente  no  génio  e  no  ca- 
racter doesta  lingua . » 

—  «A  traducção», — accrescenta — afrouxou-as  incontes- 
tavelmente, mas  repito:  para  qualquer  portuguez  é  claro 
que  pela  conformidade  de  certas  phrases  da  traducção,  com 
as  que  se  empregam  na  lingua  portugueza,  o  traductor  se- 
guiu quasi  litteralmente  o  original,  salvo  n'aquillo  que  al- 
gumas vezes  exigia  o  génio  differente  das  duas  línguas.» 

Já  agora  não  encerraremos  estas  citações  sem  lembrar 
que  a  resultado  egual  chegou  um  dos  mais  eruditos  histo- 
riadores da  litteratura  portugueza,  Theophilo  Braga:  —  «Em- 
bora essas  Cartas, —  diz  elle  —  só  existam  hoje  na  traduc- 
ção franceza  de  Cuilleraque,  de  1669^  ainda  revellam  a 


de  Saintré  ou  Galaor  étaient  au  quinzième,  c'est-à-dire,  quel- 
que  chose  de  poétique  et  de  flatté,  mais  d'assez  ressemblant.» 
— Saint-Beuve,  Mad.  de  Sousa,  1834.  {Portraits  de  femmes, 
1862.) 


32 


feição  da  syntaxe  portugueza,  e  são  de  modo  que  por  si 
teem  caracterisado  na  Europa  o  génio  e  o  caracter  porlu- 
suez.»  * 


III 


Se  a  dicção  do  livro  de  Barbin  parece  encarregar-se 
de  demonstrar  a  sinceridade  do  celebre  editor,  quando  aífir- 
mava  que  esse  livro  reproduzia  apenas  a  copia  supposta- 
mente  mais  correcta  de  uma  traducção,  —  o  entrecho  das 
cinco  Cartas  está  longe  de  favorecer  a  idéa  de  que  tanto 
aquella  aíTirmação,  como  a  de  que  ellas  tinham  sido  dirigi- 
das a  um  gentil  homem  francez,  que  servira  em  Portugal, 
fossem  intencionalmente  um  estimulo  á  curiosidade  do  pu- 
blico, ou  o  disfarce  insidioso  de  uma  ficção  romântica. 

Não  ha  nas  Cartas  portuguezas ,  realmente,  revelação  al- 
guma de  costumes,  de  instituições,  de  sentimentos,  sequer, 
por  dizer  assim  originaes,  peculiares,  necessariamente  ex- 
clusivos de  uma  civilisação,  de  um  paiz  ou  de  uma  socie- 
dade mal  conhecida. 

Nenhuma  novidade  histórica,  ethnologica,  social;  ne- 
nhuma excentricidade  ou  maravilha  de  longes  terras  e  de 
povos  desconhecidos;  nenhuma  recreação  mythologicaj, — 
das  que  estavam  um  pouco  no  goso  da  epocha, —  se  conti- 
nha n'aquella  pequena  publicação,  que  precisasse  mais  ou 


1  Manual  da  Historia  da  litteratura  portugueza,  etc,  por 
Theophilo  Braga — Porto,  1875.  Vide  também,  do  mesmo  au- 
ctor:  Estudos  da  edade-média  e  Curso  de  litteratura  portu- 
gueza, 


â3 


menos  grosseiramente  fazer-se  acreditar  e  valer  pelas  de- 
clarações do  editor. 

Fabulado  ou  verdadeiro,  o  episodio,  singelo,  natural, 
quasi  vulgar,  nada  romanceado,  tanto  poderá  succeder  em 
França,  como  em  Portugal. 

Com  bem  pequenas  variantes,  tanto  poderá  encontrar-se 
na  guerra  da  Devolução,,  mais  recente  e  que  mais  vivamente 
interessava  o  publico  francez,  como  nas  campanhas^  para 
elle  pouco  menos  do  que  indifferentes  e  desconhecidas  da 
Restauração  portugueza. 

Precisamente  quando  Barbin  publicava  o  mysterioso  li- 
vro, o  interesse  d'esse  publico  pelas  coisas  e  pelo  nome  do 
nosso  paiz,  deveria  ter  afrouxado  consideravelmente. 

Havia  um  anno  que  fizéramos  a  paz  com  a  Hespanha, 
muito  apesar  dos  esforços  e  dos  desejos  da  politica  franceza, 
e  eram  passados  muitos  mezes  que  haviam  reentrado  em 
França,  os  últimos  officiaes  e  soldados  que  d'ahi  tinham 
vindo  auxiliar-nos. 

Algumas  passagens  das  Cartas  fixam-lhes  data  anterior 
a  essa  retirada,  e  uma  refere-se  expressamente  á  paz  de 
Flandres,  que  estava  feita,  antes  que  se  assignasse,  a  2  de 
maio  de  16t)8,  em  Aix-la-Chapelle,  o  respectivo  tratado. 

A  15  de  julho  d'esse  anno  chegara  á  Rochella  a  esqua- 
dra de  Cabaret  conduzindo  o  marechal  de  Schomberg,  conde 
de  Mertola,  e  o  grosso  das  forças  francezas. 

Esmorecera  um  pouco  o  ruido  do  escândalo  da  deposi- 
ção de  Aflbnso  vi  (1667),  e  do  casamento  da  esposa  d'elle 
com  o  cunhado  (1668). 

E  certo  que  o  capricho  ou  a  imaginação  do  supposto  au- 
ctor  das  Cartas,  poderia  escolher  livremente  o  theatro  do 
seu  episodio. 

Não  fora  comtudo,  parece  evidente,  por  melhor  prender 

F.  3 


34 


e  captivar  a  attenção  do  publico,  que  escolhera  Portugal, 
e  as  nossas  campanhas  do  Alemtejo,  porque  até  na  própria 
obra  nenhum  vestígio  se  manifesta  de  semelhante  preoecu  - 
pação. 

Conventos  e  amores  de  freiras,  haviam-n'os  em  França. 
Nem  lá  faltavam  também  os  escândalos  correlativos. 

Uma  allusão  local,  apenas,  se  encontra  no  livro,  e  por 
curioso  acaso,  essa,  perfeitamente  insignificativa  e  inútil  para 
o  publico  francez,  corrobora  tanto  a  idéa  da  originalidade 
portugueza  das  Cartas  que  ainda  hoje  pode  ser  verificável. 
É  a  da  varanda  conventual  «d'oude  se  vêem  as  portas  de 
Mertola»,  allusão  que  o  primeiro  traductor  comprehendeu 
mal,  e  os  eommentadores^  incluindo  os  nossos,  não  teem 
comprehendido  melhor. 

De  resto,  nenhuma  descripção  do  paiz,  nenhuma  allusão 
mais  ou  menos  explanativa  ás  campanhas  do  Alemtejo,  aos 
successos  ruidosos  do  tempo,  ás  circumstancias  da  vida  lo- 
cal^ ou  da  vida  do  mosteiro. 

Apenas  a  lembrança  de  quando  o  amante  «hia  para  a 
guerra»,  se  arriscava  n'ella  ou  d'ella  tardava  em  voltar. 
Qual  guerra?  Contra  quem?  Não  seria  natural  que,  se  as 
Cartas  fossem  forjadas,  estas  coisas  se  dissessem  por  outra 
forma,  ou  que  uma  ou  outra  vez,  pelo  menos,  a  expressão 
da  saudade  servisse  de  thema  á  descripção,  á  explanação 
mais  ou  menos  ligeira  do  meio  ou  do  facto? 

A  freira  tem  familia:  um  irmão,  pelo  menos.  É  este,  até, 
que  lhe  proporciona  um  ensejo  de  escrever  ao  amante.  Co- 
mo? Fala  d'isso  como  de  coisa  que  elle  sabe  perfeitamente. 
Fala  só  para  elle. 

Como  se  entenderam  os  dois,  como  se  approximaram, 
como  se  introduzia  elle  no  convento?  Que  bellos  lances  es- 
timulantes que  o  novel! ista, — se  fosse  um  novellista  que  ti- 


35 


zesse  estas  cartas, — poderia  ofierecerá  curiosidade  do  lei- 
tor parisiense ! 

Como  se  fazia  a  guerra,  como  se  vivia  no  convento?  As 
Cartas  não  dizem  nada  d'isto.  Não  são  um  quadro  com  dif- 
ferentes  planos,  em  que  a  paixão  profunda  que  retratam  se 
destaque  de  um  fundo  definido,  trabalhado,  característico, 
— imaginoso,  ao  menos. 

Tudo  alli  é  pessoal,  simples,  intimo. 

Um  só  nome  appareee: — o  de  Marianna. 

É  sempre  um  coração  que  fala  em  cada  linha,  como  di- 
ria a  senhora  de  Sévigné;  é  sempre  a  alma  desolada  e  des- 
conhecida,— para  nos  servirmos  da  phrase  fmal  das  desas- 
tradas Respostas,  de  Loyson : — tantôt  de  Mariane  presente, 
tantôt  de  Mariane  absente,  quelquefois  de  Mariane  passion- 
née,  quelquefois  de  Mariane  indifférente,  de  Mariane  douce, 
et  de  Mariane  cruelle,  mais  toujour  de  Mariane. 

O  nome  do  destinatário  não  se  revelia.  Nem  sequer  a 
inicial,  as  reticencias,  o  M***  da  praxe.  É  um  oíEeial  fran- 
cez,  ura  capitão  de  cavallos,  como  se  dizia  então;  pereebe- 
se  incidentalmente.  Tem  em  França  um  irmão  e  uma  cunha- 
da. O  irmão  chama-o.  Parte  para  uma  nova  campanha.  Es- 
creve ainda  á  desolada  amante.  O  que  lhe  diz? 

Nada  d'isto  se  elucida,  se  desenvolve;  nada  d'isto  se  apro- 
veita para  alongar  o  entrecho^  para  tornar  mais  interes- 
sante a  intriga. 

Vé-se  bem  que  não  se  escreve  para  o  publico.  Mais  ain- 
da: que  não  se  traduz  senão  para  dar  a  nota  verdadeira, 
original. 

Onde  está  o  artista,  o  litterato,  o  eseriptor? 

Não  esta,  certo,  na  correcção  e  na  facilidade  do  dizer, 
nem  no  torneio  e  na  moda  dominante  do  estylo,  nem  no 
interesse,  na  habilidade  do  entrecho . . . 

3* 


36 


Onde  se  revelia  a  intenção  e  o  engenho  de  uma  obra  li- 
terária, a  nota  descriptiva,  a  recreação  imaginosa,  a  infor- 
mação precisa,  o  contorno  definido,  o  cunho  indeclinável 
da  invenção  romântica  ? 

Não: — se,  como  dissemos,  as  Cartas  deveriam  fazer,  e 
lizeram,  desde  a  sua  apparição  uma  impressão  profunda, 
não  foi  sob  o  aspecto  particular  de  uma  novidade  estran- 
geira, de  um  fruclo  exótico  trazido  de  longes  terras,  mas 
por  alguma  razão  análoga  á  que  principalmente  fez,  vinte  e 
seis  annos  depois,  o  êxito  da  traducção  do  latim,  pelo  conde 
Bussy  Rabutin,  das  Cartas  de  Heloísa  e  Abeillard: — pela 
verdade  ingénua  e  vibrante  da  paixão  que  se  retratava  n'el- 
las  atravez  de  um  francez  pouco  lilterario  e  de  uma  forma 
em  que  se  estão  adivinhando  as  duvidas  e  as  hesitações  de 
comprehensão  e  de  interpretação  da  nossa  linguagem  cor- 
rente. 

Foi  pela  mesma  força  communieativa,  nada  mysteriosa, 
ou  perfeitamente  humana,  pela  qual  as  Cartas  de  Heloísa  e 
Abeillard,  muito  antes  de  recolhidas  e  apuradas  na  collec- 
ção  monumental  de  Francisco  de  Amboise,  ou  de  popula- 
risadas  na  versão  de  Bussy, — ou  pela  qual,  ainda,  muito 
mais  tarde,  as  da  Menina  Lespinasse, — se  singularisam 
não  só  na  tradição  litteraria,  mas,  se  pode  dízer-se  assim, 
na  solidariedade  sentimental  e  esthetica  das  almas  bem  for- 
madas, sem  differenciação  de  nacionalidades,  de  litteratu- 
ras  e  de  epochas. 

E  no  fim  de  contas,  poderia  ser  este,  sob  mais  de  um 
aspecto,  um  dos  melhores  e  mais  seguros  testemunhos  do 
fundo  original,  authentico,  do  livro  publicado  por  Barbin. 

Nas  escassas  e  débeis  contestações  d'essa  authenticidade 
avulta  sempre  a  idéa  ou  o  argumento,  que  melhor  podera- 
mos  chamar  vanglorioso  preconceito  de  litteratos,  de  que  só 


37 


um  grande  talento  de  eseriptor  experimentado, — Rousseau 
parecia  exigir  até  um  génio, — poderia  ter  produzido  acpiel- 
las  singellas  cinco  cartas. 

Pareceu-nos  sempre  que  o  argumento  poderia  valer  de 
contra-prova. 

O  que  só  o  talento  singular  de  um  grande  eseriptor  po- 
derá simular  e  forjar,  por  ser  tão  natural  ou  por  tão  espon- 
tâneo e  verdadeiro  parecer,  porque  não  havia  de  produzil-o, 
como  o  comprehenderam  os  contemporâneos,  como  o  teem 
comprehendido  umas  poucas  de  gerações  de  eseriptores  e 
leitores, — a  alma  simples  e  ingénua  de  uma  mnlher  apai- 
xonada e  perdida,  em  todo  o  vigor  da  vida^  entre  as  pare- 
des sombrias  de  um  convento,  escrevendo  ao  homem  que 
a  seduzira  e  abandonara, — agarrando-se  desesperadamente 
ao  seu  amor,  como  o  naufrago  a  um  pedaço  de  madeira 
na  solidão  fatal  e  impassível  do  ímmenso? 

Poderia  ella  imaginar,  poderia  ella  comprehender,  se- 
quer, que  as  suas  cartas  fossem  atiradas,  não  ao  fogo,  mas... 
ao  publico? 

E  como  e  porque  havia  de  esconder-se  inteiramente  dos 
seus  contemporâneos  e  da  posteridade,  do  meio  d'aquella 
litteratura,  por  assim  dizer,  arregimentada,  do  século  xvii, 
d'aquella  litteratura  parisiense,  particularmente,  que  a  si 
própria  se  devassava  nos  recessos  mais  obscuros  e  Íntimos, 
pelas  suas  Cartas  e  pelas  suas  Memorias,  tão  opulentas  de 
informação  como  de  espirito, — como  e  porque  havia  de  es- 
conder-se esse  eseriptor  admirável,  cuja  producção  tão  ver- 
dadeira fora  que  se  confundia  com  a  verdade,  e  cujo  talento 
teria  sido  até  excedido  pela  inaudita  modéstia  com  que  as- 
sistira, obstinadamente  callado  e  obscuro,  ao  seu  trium- 
pho. . .  e  á  sua  exploração? 


38 


IV 


Acabámos  de  roçar  por  uma  das  objecções  senão  mais 
ponderosas  e  sérias,  mais  favorecidas  e  vulgarisadas  por 
um  certo  preconceito  meio  social  e  meio  litterario,  de  que 
todos  os  progressos  scientiíicos  da  moderna  critica  não  teem 
conseguido  emancipar  muitos  espirites. 

Esta  objecção,  que  para  nós  é  de  todas  a  mais  inconsis- 
tente, tem  mesmo  uma  espécie  de  historia  erudita. 

Derivou-se  de  uma  phrase  de  Rousseau,  desentranhada 
de  uma  das  suas  cartas  menos  conhecidas,  e  pouco  mais 
tem  feito  do  que  glossar  essa  phrase." 

Escrevendo  a  D'Alembert,  a  propósito  do  artigo  Genève 
da  Encyclopedia,  uma  longa  epistola  dissertativa  sobre  o  pa- 
pel da  mulher  na  sociedade,  e  em  particular  no  theatro, 
atravez  dos  tempos,  João  Jacques  dizia*: 

—  «As  mulheres,  em  geral,  não  amam  arte  alguma,  com 
nenhuma  se  entendem,  e  nenhum  génio  teem.  Podem  ven- 
cer nas  pequenas  obras  que  só  exigem  leveza  de  espirito, 
gosto,  certa  graça,  ás  vezes  até  alguma  philosophia  e  algum 
raciocínio.  Podem  adquirir  sciencia,  erudiíção,  talentos  e 
tudo  que  se  adquire  á  força  de  trabalho.  Mas  este  fogo  ce- 
leste que  abraza  e  enleia  a  alma,  este  génio  que  consome  e 
devora,  esta  eloquência  ardente,  estes  transportes  sublimes 
que  levam  os  seus  enlevos  ao  fundo  dos  corações,  faltarão 


*  Oeuvres  completes  de  J.  J.  Rousseau. —  Nouv.  ed. — Paris, 
Didier,  1837. 


39 


sempre  nos  escriptos  de  mulheres.  São  todos  frios  e  boni- 
tos como  ellas;  terão  o  espirito  que  quizerdes:  alma  é  que 
nunca.  Serão  cem  vezes  mais  razoáveis  do  que  apaixona- 
dos. As  mulheres  não  sabem  nem  descrever  nem  sentir  o 
verdadeiro  amor.  A  Sapho,  apenas,  que  eu  saiba,  e  uma 
outra,  mereceriam  ser  exceptuadas.  Apostaria  quanto  ha 
no  mundo  em  como  as  Cartas  portnguezas  foram  escripías 
por  um  homem.  Ora,  em  toda  a  parte  onde  as  mulheres  do- 
minam, o  seu  gosto  deve  dominar  também,  e  ahi  está  o  que 
determine  o  do  nosso  século.»  ' 

Pareceu-nos  bem  dar  o  trecho  completo,  pois  que  ape- 
nas a  referencia  gryphada  apparece,  de  vez  em  quando, 
triumphantemente  citada,  em  copia  de  copia,  como  séria 
objecção  á  authentidade  das  Cartas.  Particularmente  entre 
nós,  raros  serão  os  que  a  tenham  lido  na  obra  de  Rous- 
seau. 

É  claro  que  o  paradoxo  mysantropico  do  citoyen  de  Ge- 
nève,  como  elle  o  subscreve,  está  julgado  e  abandonado  de 
ha  muito,  ou,  melhor,  desde  a  sua  apparição. 

É  curioso  que  n'essa  mesma  carta,  João  Jacques  dizia: 

—  «O  amor  é  o  reinado  das  mulheres.  São  ellas  que  ne- 
cessariamente dão  n'isto  a  lei,  porque,  segundo  a  ordem 
da  natureza,  a  resistência  pertence-Ihes,  e  os  homens  não 


1  O  director  d'esta  bella  edição  de  1834,  das  Obras  de  J. 
Jacques,  pozera  a  este  trecho  a  seguinte  nota : — 'iOnsaitposi- 
íivement  aujoiírdliui  que  ces  Lettres,  dont  M.  Barbier  a  donné 
en  1806  une  nouvelle  édition,  sont  réellement  d'une  religieuse 
portugaise,  qui  s'appeloit  Marianne  Alcoforada,  et  qu'elles  fu- 
rent  adressées  au  comte  de  Chamilly,  dil  alors  comte  de  Saint 
Leger.  Voyez  la  notice  de  M.  Barbier  en  tête  de  son  édition 
et  le  feuilleton  du  Journal  de  1'Empire  du  5  janvier  1810.» 


40 


podem  vencer  esta  resistência  senão  á  custa  da  sua  liber- 
dade.» 

Geralmente  não  é  lembrada  a  resposta  de  D'Alembert. 

D'Alembert  não  conhecia  naturalmente  as  Cartas  portv- 
guezas. 

—  «Não  podemos  dissimular  —  diz  elle — que  nas  obras 
de  gosto  e  de  agrado,  ellas  (as  mulheres),  attingem  melhor 
êxito  do  que  nós,  sobretudo  n'aquellas  de  que  o  sentimento 
e  a  ternura  devem  ser  a  alma,  porque  para  dizerdes  que  as 
mulheres  não  sabem  descrever  nem  sentir  o  verdadeiro  amor 
é  necessário  que  nunca  lêsseis  as  Cartas  de  Heloisa  ou  que 
as  tenhaes  lido,  apenas,  n'algum  poeta  que  as  estragasse. 
Confesso  que  este  talento  de  pintar  o  amor  ao  natural,  ta- 
lento próprio  de  um  tempo  de  ignorância  em  que  só  a  na- 
tureza dá  lições,  pode  afrouxar  no  nosso  século,  e  as  mu- 
lheres, tornando-se  a  nosso  exemplo,  mais  galantes  e  apai- 
xonadas, saberão  em  breve  amar  tão  pouco  como  nós,  e 
dizel-o  tão  mal,  egualmente;  mas  será  isso  culpa  da  natu- 
reza?. . .  »^ 

Seja-nos  permiltido  citar  a  propósito  d'aquella  opinião  de 
Rousseau  a  observação  de  um  grande  e  delicado  talento  arre- 
batado permaturamente  pela  morte  á  litteratura  portugueza : 

— «É  exactamente  a  inducção  contraria  que  eu  tiraria» 
—  diz  Lopes  de  Mendonça-  —  passando-as  (as  Cartas)  pe- 
los olhos.  O  estylo  epistolar  ninguém  o  possue  mais  flexí- 
vel, mais  aflFecluoso,  mais  pittoresco,  mais  suavemente  aban- 
donado e  espirituoso  do  que  as  mulheres.  As  cartas  de  Mad. 
Sévigné,  as  memorias  de  Mad.  de  Caylus,  e  ainda  mesmo 
no  próprio  tempo  de  Rousseau  as  delirantes  e  apaixonadas 


1  Ed.  cit.  das  Oeuvres  completes  de  J.  J.  Rousseau. 

2  No  jornal  A  Semana. 


4i 


cartas  de  Mad.  Lespinasse,  saltam  iramediatanienie  á  me- 
moria para  protestarem  contra  uma  tão  absurda  proposi- 
ção ...  As  cartas  de  uma  religiosa  portugueza,  seja  qual 
fôr  a  sua  origem  histórica,  extremamente  duvidosa  e  in- 
certa, dão  a  conhecer  a  mão  e  a  alma  de  mulher .  . .  »i 

Uma  observação  ainda: — não  é  extremamente  notável 
que  todas  as  objecções  feitas  á  authenlicidade  original  das 
Cartas  pareçam  conter,  invariavelmente,  em  si,  um  argu- 
mento, a  mais,  em  favor  da  tradição  d'ella?  O  próprio  Rous- 
seau como  que  se  encarregou  de  refutar  praticamente  a  sua 
theoria  paradoxal. . .  escrevendo  a  Nova  Heloísa. 

Que  se  compare  toda  a  sentimentalidade,  toda  a  verdade 
imaginativa,  artística,  por  vezes  artificiosa  d'elle,  com  a 
verdade,  com  o  amor,  com  a  paixão  real  das  Cartas  da  He- 
loísa verdadeira ! . . . 

Mas,  como  dissemos,  não  é  precisamente  a  objecção  es- 
travagante  e  inscientifica, — principalmente  inscientifica, — 
de  João  Jacques,  na  sua  formula  inicial,  rudemente  gené- 
rica, que  se  oppõe  ainda  á  tradição  da  authenticidade  femi- 
nina e  portugueza  das  Cartas. 

É  já  tempo  de  completarmos  o  parecer  de  Camillo  Cas- 
tello  Branco, 2  que  embora  isolado,  o  que  honra  a  corajosa 


1  II  est  inutile . . .  d'nisister,  après  tant  d'autres,  sur  Tapti- 
tude  singulièr  que  les  femmes  opportent  au  genre  épistolaire 
en  vertu  des  qualités  et  des  faiblesses  mêmes  de  leur  nature. 
II  est  leur  domaine  au  même  titre  que  la  vie  privée.  Dans  Tor- 
dre  intellectuel,  c'est  le  seul  qu'elles  aient  agrandi  et  renou- 
velé;  le  seu!  oúelles  aient  falte  preuve  d'une  origlnalité  puis- 
sante,  complexe,  variée;  le  seul,  en  un  mot,  oíi  elles  aient 
creé. — E.  Crépet,  Três.  epist.  Paris  1864. 

2  Loc.  cit. 


42 


e  honrada  franqueza  do  illustre  escriptor,  cresce  em  aucto- 
ridade,  inegavelmente,  na  questão  que  agora  visa. 

—  «J.  Jacques  Rousseau»  —  diz  elle — «apostava  que  as 
cartas  da  religiosa  haviam  sido  escriptas  por  um  homem,  e 
nós  também,  por  diversas  causas  das  do  philosopho  das 
Confissões.  Elle  refuta  que  mulheres  escrevam  de  amor  as- 
sim tão  sentidamente;  nós  impugnamos  que,  em  1663  (aliás 
1668),  no  periodo  de  D.  Bernarda  Ferreira  de  Lacerda  e 
soror  Violante  da  Cruz,  uma  senhora  escrevesse  n'aquelle 
estylo  parco,  natural,  desenfeitado,  desluzido  do  ouropel  do 
tempo.  As  nossas  duvidas  assentam  na  formação,  e  não  tem 
<|ue  ver  com  a  esthetica  das  amorosas  suavidades,  da  en- 
tranhada saudade  que  chora  n'essas  íartas.» 

Mesmo  sem  intenção  insidiosa  poderia  suscitar-se  esta 
duvida:  —  se  o  caso  seria  mais  natural  n'um  homem,  no  pe- 
riodo de  D.  Francisco  Manuel,  e  ainda  do  padre  António 
Vieira;  ou,  quando,  suppondo  francez  esse  homem,  se  é 
aquella  a  linguagem  epistolar,  para  não  falar  de  outra,  que 
evoluciona  de  Guez  de  Balsac  a  Hamilton,  passando  pela 
senhora  de  Sévigné.  ou  do  Palácio  Rambouillet  ao  Palácio 
do  Temple,  passando  pela  corte  de  Sceaux,  ou  dos  esprits 
doiix  aos  roués,  passando  pelas  |3?^ecí05as . .  . 

Certamente  a  linguagem  das  Cartas  não  é  a  de  Bernarda 
Ferreira,  nem  a  paixão  que  n'ellas  chora  veste  «as  delambi- 
das finezas»  dos  poetas  do  tempo,  na  pbrase  de  Camillo.  Mas 
de  que  a  corrente  dos  requintes  estylisticos  não  assoberbava 
todos  os  espiritos,  ou  não  afogava  todas  as  pennas,  dá-nos  o 
grande  escriptor,  precisamente  no  periodo  accusado,  irre- 
cusáveis exemplos.  Não  vale,  porém,  a  pena  discutil-os. 

Para  nós,  n'esta  questão  da  forma,  quer  os  que  crêem 
na  authenticidade  das  Cartas,  quer  os  que  as  teem  por  apo- 
cryphas,  chegaram,  particularmente  em  Portugal,  por  ca- 


43 


minhos  oppostos  a  um  erro  commum: — o  de  confundirem 
o  trabalho  litterario  com  a  obra  inconsciente,  o  resultado 
artístico  com  a  expressão  intima,  o  que  se  escreve  para  o 
publico  com  o  que  se  diz  a  um  amante. 

D'aqui,  as  mais  extraordinárias  conclusões: — a  de  en- 
tenderem uns  que  o  texto  da  versão  francezaé  apenas  uma 
pallida  imagem  da  obra  da  pobre  freira,  não  tanto  por  in- 
comprehensão  litteral  do  traductor,  como  porque  ella  teria 
escripto  na  linguagem  florida  ou  purista  de  Francisco  Ma- 
nuel ou  de  Frei  Luiz  de  Sousa; — a  de  imaginarem  outros 
que  não  entraria  nas  posses  estylisticas  de  uma  religiosa, 
perdida  no  fundo  de  um  convento  e  de  uma  provincia  de 
Portugal,  aquella  expressão  singela,  sentida,  verdadeira,  de 
uma  grande  paixão,  que  elles  teem  por  privilegio  da  expe- 
riência e  do  officio  de  litteratos. 

Pois  não  bastará  considerar  friamente  a  simples  situação 
que  produzia  aquellas  cartas  para  afastar  qualquer  idéa  de 
uma  influencia  ou  de  uma  elaboração  propriamente  littera- 
ria  na  redacção  d'ellas? 

Se  era  realmente  uma  pobre  religiosa  obscura,  perdida 
no  fundo  de  uma  provincia  e  de  um  convento,  que  ao  im- 
pulso de  uma  paixão  profunda  e  absorvente  como  em  todo 
o  texto  se  revelia,  escrevia  a  um  amante  estrangeiro  que 
mal  conhecia  a  lingua,  como  imaginar  n'essas  cartas,  pom- 
pas e  requintes  de  estylo  mundano,  ou  como  de  não  se  pau- 
tarem pelos  primores  e  artifícios  que  se  davam  á  moda  e 
ao  publico,  fazem  suspeita  á  authenticidade  d'ellas? 

Não  se  sente,  não  se  advinha  alli  o  torneio  galante  ou 
artificioso  das  composições  femininas  destinadas  á  leitura 
ou  á  meditação  de  todos,  moldadas  no  gosto  ou  na  educa- 
ção litteraria  do  século? 

Por  certo  que  não,  mas  em  vez  d'isso  parecer  uma  ob- 


44 


jecção  á  originalidade  d*aquella  correspondência  intima  e 
obscura,  devera  antes  valer-lhe  de  contraprova  decisiva. 

Pinheiro  Chagas  •,  com  a  sua  fina  e  larga  experiência 
litteraria,  com  a  sua  notável  percepção  critica,  diz  o  se- 
guinte : —  « . .  .0  traductor,  um  tal  Cuilleraque,  parece  que 
interpretou  com  acerto  as  expressões  apaixonadas  da  nossa 
infeliz  compatriota,  porque  as  Cartas  conservam  no  texto 
francez  a  ardente  simplicidade  que  é  o  signal  evidente  de 
uma  paixão  sincera  que  não  procura  arrebiques  de  estylo, 
mas  que  se  exprime  simplesmente,  com  a  eloquência  expon- 
tânea que  brota  do  coração,  d'onde  vem,  no  entender  de 
Vauvenargues,  os  grandes  pensamentos.» 

Theophilo  Braga  2,  não  hesita  em  affirmar,  e  n*este  ponto 
confessamos  que  não  pedemos  inteiramente  acompanhar  o 
illustre  critico,  que  as  Cartas  são  ^to  único  producto  ver- 
dadeiramente sentido,  verdadeiramente  bello,  que  a  alma 
portugueza  apresenta  no  século  xvn.»  E  com  irrecusável 
verdade  accrescenta: —  «Podem  pôr-se  a  par  das  Cartas  de 
Heloisa  com  a  diflferença  para  melhor  que  Marianna  Alco- 
forado ignorava  as  preoccupações  do  estylo.  As  observações 
intimas  feitas  pelos  maiores  génios  e  artistas,  como  Shaks- 
peare  ou  Goethe,  não  retratam  com  mais  vida  as  paixões 
do  que  a  pobre  Marianna  descrevendo  a  sua  situação  de  mu- 
lher abandonada.  Como  aquelle  que  volteava  por  entre  a 
multidão^  com  a  lanterna  accesa  á  busca  de  um  homem, 
como  elle  podemos  findar  este  exame  do  Seiscentismo,  por- 
que achámos  uma  inconsciente  obra  de  arte  que  é  bella  pela 
sua  verdade.» 


^  Os  dramas  celebres  do  amor.  (Educação  pop.  Ertcyclopedia 
instr.)  Lisboa  1874. 
2  Loc.  eit. 


45 


Como  todas  as  modas, —  e  como  é  até  da  própria  natu- 
reza d'ellas — ,  em  litteratura,  a  de  uma  certa  maneira  de 
dizer,  determinada  ou  influenciada  quer  por  uma  inclina- 
ção de  educação  e  de  gosto,  na  sociedade  polida  e  littera- 
ria,  quer  pela  força  attractiva  ou  assimilladora  de  certos 
modelos  ou  de  certas  originalidades  que  se  sobrelevam  e 
impõem  ao  uso  e  ao  gosto  commum,  não  ha  de  rasoavel- 
mente  suppor-se  por  tal  forma  absorvente,  penetrante,  ni- 
veladora, que  chegue  a  dominar,  por  egual,  não  só  em  todas 
as  camadas  e  situações  sociaes,  mas  em  todas  as  condições, 
em  todos  os  estados,  em  todas  as  manifestações  da  senti- 
mentalidade e  do  pensamento  individual. 

Será  muitas  vezes  diíTicil,  mas  é  indispensável,  distinguir 
na  linguagem,  na  expressão,  por  dizer  assim,  plástica  da 
alma  humana,  dois  estados,  duas  condições,  podemos  dizer 
embora  pouco  rigorosamente,  duas  formas  inicial  e  neces- 
sariamente difTerentes, — quantas  vezes  até  oppostas? — uma, 
immediata,  passiva,  inconsciente,  simples  ainda  quando, 
como  acontece  em  certas  linguas,  como  certas  naturezas, 
em  dadas  raças, —  entre  nós  por  exemplo — ,  frequente- 
mente colorida  por  uma  espécie  de  materialismo  imagi- 
noso;— a  outra:  a  condição,  o  estado,  a  forma  que  chama- 
remos reflexa,  meditada,  consciente  sem  que  por  isso  tenha 
necessariamente  de  deixar  de  ser  espontânea,  sobre  a  qual 
operam  e  actuam  as  correntes  e  influencias  propriamente 


46 


iitterarias,  ou  como  se  tem  convencionado  chamar: — eru- 
ditas, que  bem  pouco  o  são,  muitas  vezes. 

Não  estamos  nós  todos  os  dias  applicando  despreoecupada- 
mente  esta  distincção  tão  natural  e  justa,  na  investigação  e 
no  estudo  da  poesia  e  do  romance  popular? 

Não  se  nos  impõe  ella  precisamente  na  critica  de  muitas 
obras  e  de  muitas  individualidades  litterarias? 

Lembramo-nos  d'um  exemplo  que  não  parecerá  deslo- 
cado. O  dos  dois  textos  das  Reflexões  sobre  a  Misericórdia 
de  Deus,  o  primeiro,  o  original,  o  da  Mademoiselle,  ou  como 
lhe  chamam,  não  sem  razão,  Saint  Simon  e  Romain  Cornut, 
o  da  Madame  de  La  Valliere: — o  texto  incorrecto,  intimo, 
que  era  só  para  quem  o  escrevia; — o  segundo,  o  texto 
revisto,  emendado,  pensado  pela  senhora  de  Genlis  ou  por 
Bossuet,  na  idéa  apenas  de  tornar  mais  grammatical^  mais 
litteraria,  mais  á  moda  a  linguagem. 

Com  bem  melhor  razão  do  que  das  Cartas  da  pobre  freira 
portugueza,  poderá  o  illustre  irapugnador  d'eslas  objectar 
que  em  pleno  período  das  «Grandes  Senhoras»,  e  á  beira 
da  corte  do  «Grande  Rei»,  uma  senhora  franceza^  e  demais 
sendo  a  senhora  de  La  Valliere,  ou  como  quizeram  outros, 
a  senhora  de  Longueville  ou  a  senhora  de  Montespan,  não 
escreveria  «n'aquelle  estylo  parco,  natural,  desenfeitado, 
desluzido  do  ouropel» ...  e  até  de  grammatiea. 

Que  não  se  pense,  porém,  que  não  temos  exemplos  de 
casa, — exemplos  portuguezes, — que  contrariem  e  corrijam 
a  confusão  alludida. 

A  epistolographia  portugueza  está  poueo  menos  que 
por  explorar  e  reconstruir,  posto  existam  d' ella  exempla- 
res e  coUecções  notáveis,  particularmente  em  relação  aos 
dois  últimos  séculos,  e  sem  exclusão  da  procedência  feme- 
nina. 


47 


Do  mesmo  período  das  Cartas  da  freira,  existem  muitas 
outras  que  por  egual  contrariam  os  moldes  litterarios  das 
Lencastres  e  das  Violantas. 

Aqui  temos  nós  algumas  dezenas  de  cartas  da  Marqueza 
de  Cascaes  a  seu  filho,  que  esperamos  publicar  um  dia,  e 
que  apesar  de  escriptas  n'uma  intensão  educativa,  sob  as 
influencias  do  gosto  e  da  litteratura  da  corte,  estão  longe 
de  perder  n'aquelles  moldes,  a  expontânea  originalidade  do 
pensamento  e  da  forma. 

Mas  citaremos  apenas  um  exemplo  perfeitamente  com- 
temporaneo  das  Cartas  da  religiosa,  fornecido  exactamente 
por  uma  religiosa  também,  que  a  dois  passos  e  na  mesma 
cidade  de  Marianna,  descreve  ao  confessor  as  intimas  mo- 
ções do  seu  amor  mystico,  ao  mesmo  tempo  talvez  que  a 
outra  descreve  ao  amante  as  saudades  e  os  arrobamentos 
do  seu  amor  naturalista. 

E  está  impresso  e  publicado  o  exemplo,  n'um  livro  sin- 
gularmente notável  para  o  estudo  da  bysteria  mystica  dos 
conventos,  livro  e  estudo  deploravelmente  esquecidos  pelos 
nossos  escriptores. 

Nos  Fragmentos  da  vida  da  Madre  Marianna  da  Purifi- 
cação, ctdiscipula  de  Santa  Thereza  de  Jesus»,  no  cons^ento 
da  Esperança,  de  Beja  (166i-169o),  encontram-se  nume- 
rosos trechos  das  cartas  e  narrativas  intimas  em  que  ella 
descrevia  «no  estylo  parco,  natural,  desenfeitado»  da  sua 
ingénua  e  piedosa  intimidade,  os  extraordinários,  podera- 
mos  dizer,  os  realistas  «Ímpetos»,  como  ella  lhes  chama,  do 
seu  absorvente  e  extravagante  sensualismo  mystico. 

Exactamente,  como  que  a  confirmar  a  nossa  observação 
e  a  corrigir  rudemente  a  errada  noção  litteraria  que  com- 
batemos, essas  confissões,  essas  notas  intimas  destaeam-se 
da  moldura  pomposa  do  estylo  alambicado  e  erudito  do  Fr. 


48 


Caetano  do  Vencimento,  seu  colleecionador,  um  digno  col- 
lega  das  Lencastres  e  das  Violantas. ' 

Ha  até  uma  coincidência  notável :  —  é  a  de  certa  maneira 
de  dizer,  a  de  certas  fórmulas  da  linguagem  corrente  e  vul- 
gar, communs  aos  fragmentos  de  Marianna  da  Purificação 
e  ás  Cartas. .  .  da  outra. 

A  isto  teremos  occasião  de  nos  referir. 

Mas  para  que  alongar  mais  estas  reflexões? 

Se  nem  podemos  suppor  que  as  próprias  escriptoras  mais 
affeitas  e  cuidadosas  em  manejar  perante  o  publico  a  lin- 
guagem litteraria  do  tempo, —  de  D.  Bernarda  Ferreira, 
ou  do  nosso, — conservassem  a  preoccupação  d'ella  nas  si- 
tuações e  relações  da  sua  vida  intima,  como  poderamos 
exigir  á  correspondência  d'uma  pobre  senhora  que  escreve 
apenas  pela  necessidade  e  ao  impulso  de  uma  expansão  de 
dor, — qne  escreve  somente,  desolada  e  afflicta.  ao  homem 
a  quem  «toda  se  entregou»  e  que  mal  conhece  a  lingua  em 
que  ella  lhe  escreve, —  como  poderamos  exigir  a  essas  car- 
tas o  luxo,  o  artificio,  o  enfeite,  o  ouropel  litterario? 

0  que  é  natural,  o  que  deve  corroborar  a  authenticidade 
d'ellas,  é  aquella  mesma  linguagem  passiva^  desenfeitada, 
immediata,  aquellas  idéas  ou  aquelles  sentimentos  qui  n'ont 
fait  qu'un  saut  du  ca^nr  sur  le  papier,  na  phrase  felicíssima 
do  auctor  de  Mademoiselle  Justine  de  Liron. 

Estudando  a  obra  de  Delécluze,  em  1832,  um  dos  críti- 
cos mais  finos  e  experimentados  que  conhecemos,  Sainte 
Beuve,  depois  de  analysar  n'um  delicioso  artigo  as  varias 

1  Fragmentos  da  prodigiosa  vida  da  muito  (avorecida,  e  ama- 
da Esposa  de  Jesus  Christo  a  venerável  Madre  Marianna  da 
Purificação  &  pelo  M.  R.  M.  Fr.  Caetano  do  Vencimento,  & — 
Lisboa,  1747. 


4d 


formas  litterarias  sob  as  quaes  «se  traduzem  estes  senti- 
mentos delicados  de  algumas  almas»  produzindo  «o  romance 
intimo»,  observa: 

fO  melhor,  quanto  a  nós  é  circumscrevermo-nos  estri- 
ctamente  ao  verdadeiro  e  visar  o  romance  o  menos  possí- 
vel, omittindo  algumas  vezes  com  gosto,  mas  escrupulisando 
em  ajuntar  qualquer  coisa.  Assim  as  cartas  escriptas  no  mo- 
mento da  paixão,  e  que  reflectem,  sem  esforço  de  memo- 
ria, os  momentos  successivos  d'ella,  são  inestimáveis  e  de 
um  encanto  particular  na  sua  desordem.  Conhecem-se  as 
de  uma  Portugueza,  muito  curtas,  infelizmente,  e  trunca- 
das. As  da  menina  de  Lespinasse,  longas  e  desenvolvidas 
e  sempre  renascentes  como  a  paixão,  teriam  maior  encanto 
se  o  homem  a  quem  são  dirigidas  não  impacientasse  e  não 
ferisse  constantemente  pelo  ar  pedante  que  se  lhe  attribue 
e  pelo  seu  egoismo  demasiadamente  pronunciado.  As  car- 
tas da  menina  Aissé,  as  menos  conhecidas  de  todas  estas 
cartas  de  mulheres,  ^  etc. 

E  Eugénio  Crépet,  o  intelligente  e  dedicado  coUecciona- 
dor  do  Trésor  Épistolair-e  de  la  France^,  adoptando  o  pa- 
recer do  sceptico  Stendhal,  diz  o  seguinte :  — « . . .  as  ficções 
dos  poetas  heaux-esprits  do  século  xvii  são  simplesmente  ri- 
dículas; um  bom  juiz  em  tal  matéria,  Beyle,  teve  muita 
razão  em  dizer  no  seu  livro  do  Amor:  «As  elegias  de  Parny 
e  as  Cartas  de  Heloísa  a  Abeilard  de  Colardeau,  são  pin- 
turas bem  imperfeitas  e  bem  vagas  quando  as  comparamos 
com  algumas  cartas, . . .  com  as  de  uma  religiosa  portu- 
gueza, com  as  da  menina  de  Lespinasse»,  etc. 

1  Du  Roman  intime  ou  Mademoiselíe  de  Liron — 1832  {Port. 
de  femmes  par  C.  A.  Saint  Beuve.  Paris  1862. 

'^  Le  Trésor  êpistolaire  de  la  France  etc,  par  Eugène  Crépet. 
—  Paris  186Í-1865. 

F.  4 


50 


O  leitor  não  nos  leva  a  mal,  com  certeza,  estas  citações. 
Para  que  havíamos  nós  dizer,  muito  peior,  o  que  está  tão 
exeellentemente  pensado  e  escripto  não  só  pelas  melhores, 
como  pelas  mais  insuspeitas  auctoridades  ?  Até  Beyle,  o 
grande  sceptico,  n'aquelle  mesmo  livro  onde  elle  confes- 
sava que  fazia  todo  esforço  em  impor  silencio  ao  coração ; 
em  ser  secamente  sceptico  I . . . 


VI 


Mas  Íamos  esquecendo  o  sr.  Beauvois,  o  piedoso  impu- 
gnador  de  que  um  «gentil  homem» ,  um  marechal  da  França 
christianissima  do  Rei  Sol,  possa  carregar  na  sua  devota 
memoria  com  a  fraqueza  de  ter  na  mocidade  endoidecido 
de  amor  uma  religiosa. 

Ha  uma  objecção  do  illustre  escriptor  que  embora  não 
vise  nem  o  sexo  nem  a  forma  litteraria  do  auctor  das  Car- 
tas, pode  perfeitamente  entrar  n'esta  altura  da  nossa  já  bas- 
tante alongada  palestra. 

É  a  da  «incoherencia  das  idéas»  e  a  «dos  factos  contra- 
ditórios i»  que  se  contém  nas  Cartas. 

Boa  parte  d'este  senão,  pertence,  e  o  sr.  Beauvois,  mes- 
mo, teve  occasião  de  verifieal-o,  á  confusão  que  diversos 
editores  fizeram  das  cinco  cartas  da  freira  com  outras  pos- 
teriormente publicadas  sob  a  declaração  terminante  de  que 
não  eram  d'ella. 

Feito  este  desconto,  que  é  larguíssimo,  o  que  fica? 

O  auctor,  observa  o  sr.  Beau'>^ois  «escreve  com  tanta 


54 


leviandade  qae  nem  se  lembra  no  fim  da  carta  do  que  es» 
creveu  no  principio». 

Grave  reparo,  na  verdade,  o  mesmo  e  até  quasi  nos 
mesmos  termos  do  d'aquelle  critico  a  que  já  nos  referimos, 
que  precisamente  considerava  como  qualidade  caracteristica 
das  verdadeiras  cartas  de  amor  começarem  a  escrever -se 
sem  se  saber  o  que  se  diria  e  çtfterminarem-se  sem  se  saber 
o  que  se  dissera. 

Na  carta  considerada  como  a  4.*,  a  religiosa  pergunta  ao 
amante  porque  não  lhe  tem  escripto,  e  declara-se  muito 
infeliz  se  elle  não  teve  oecasiãc  de  escrever-lhe  depois  da 
sua  partida,  «o  que  está  em  contradição  absoluta»  observa 
solemnemente  o  sr.  Beauvois  «com  outra  passagem  da  mes- 
ma carta»  em  que  ella  accusa  o  destinatário  de  conservar- 
se  n'uma  profunda  indifferença,  sem  lhe  escrever  senão 
cartas  frias,  cheias  de  repetições,  «a  metade  do  papel  em 
branco»,  etc. 

Pode  não  haver  uma  contradição  tão  absoluta  como  pa- 
rece. Do  que  a  pobre  senhora  se  queixa  é  de  que  elle  lhe 
não  escrevesse  como  ella  imaginava,  como  ella  queria,  com/) 
elle  lhe promettera,  naturalmente :  —  longas  cartas  apaixona- 
das, saudosas, —  das  terras  que  fosse  atravesando. 

E  depois,  como  esperamos  mostrar,  esta  carta  não  é 
realmente  a  4.',  é  mais  próxima  da  partida  do  amante,  e  a 
partida  a  que  allude  pode  não  ser  a  do  Alemtejo,  mas  a  de 
Portugal.  Entre  as  duas  poderão  estar  os  pequenos  bilhetes, 
as  taes  cartas  frias  e  lacónicas ! 

Para  que  nos  demoramos  porém  n' estas  hypotheses? 

•  Pois  será  mais  natural  que  um  escriptor,  que  um  hei 

esprit,  forjando  uma  correspondência  a  que  pretende  dar 

todo  o  caracter  de  authenticidade  original,  commetta  taes 

contradições  a  poucas  linhas  de  distancia,  do  que  uma  pobre 

4# 


52 


mulher  escrevendo  afflicta,  n'Qma  expresão  irreflectida  de 
magoa^  de  desconfiança  e  de  saudade? 

É  o  caso  de  dizer,  como  a  menina  De  Launay  a  propósito 
de  uma  bem  maior  contradição  apparente, —  ^o  verdadeiro 
é  como  pode  ser  e  não  tem  outro  merecimento  senão  o  de 
ser  o  que  é.  As  suas  irregularidades  são  muitas  vezes  mais 
agradáveis  do  que  a  perpetua  symetria  que  se  encontra  em 
todas  as  obras  de  arte.» 

Mas  o  sr.  Beauvois  continua  «o  exame  d'estas  incohe- 
rencias».  Heróico  trabalho,  na  verdade,  o  de  destrinçar  e 
discutir  gravemente  as  incoherencias  de  que  é  capaz ...  o 
amor. 

Segundo  a  primeira  carta, — observa  o  estimável  sábio, — 
o  official  francez  escrevera  já  algumas  outras  cheias  de  coi- 
sas inúteis, —  o  que,  de  passagem,  digamos  que  parece  con- 
firmar a  observação  que  fizemos  acerca  d'aquellas  a  que  se 
refere  a  supposta  4."  das  da  religiosa.  Escrevera  «uma  ul- 
tima entre  outras,  «ce  quien  suppose  plusieiírs » ^  nota  pers- 
picazmente o  sr.  Beauvois. 

E  accrescenta: — «Como  pode  ella^  então,  ter  esquecido 
que  elle  lhe  escrevera  muitas  vezes  depois  da  sua  partida  ?» 

Meu  Deus  I  como  tão  \Ti1garmente  se  esquecem  os  aman- 
tes, de  tudo  o  que  não  é  actual,  o  que  não  lhes  satisfaz  im- 
mediatamente  os  Ímpetos,  os  desejos,  os  impaciências  da  sua 
paixão. . .  Além  de  que  o  illustre  critico  parece-nos  enga- 
nar-se  um  pouco. 

A  primeira  carta  não  fala  precisamente  de  varias  cartas, 
ou  de  uma  ultima  carta  escripta  depois  d'aquella  partida. 

Eása  primeira  é  que  o  foi  suppondo  já  o  destinatário  em 
França  ou  que  o  encontraria  alli. 

Ma-s  é  certo  que  a  segunda  o  accusa  de  não  ter  escripto 
durante  seis  mezes,  e  então,  diz  o  sr.  Beauvois,  «como  a  re- 


53 


ligiosa  deveria  ter  escripto  a  quarta  pouco  tempo  depois,  não 
se  explica  como  elle  tivesse  podido  fazer-lhe  uma  confi- 
dencia molesta  cinco  ou  seis  mezes  antes», —  segundo  esta 
ultima  carta  accusa —  «tendo  deixado  Portugal  e  cessado, 
havia  muito  tempo,  de  eommunicar-se  com  ella  de  viva 
voz». 

Bem  mais  difíicil  fora,  realmente,  de  explicar  o  caso  se 
as  Cartas  fossem  um  romance,  um  trabalho  forjado  e  pen- 
sado por  um  escriptor,  por  um  bel  esprit,  como  imagina  o 
critico.  Não  sendo,  e  não  estando  datadas  as  Cartas,  é  fácil 
suppor,  —  e  logo  veremos  como  esta  supposição  se  converte 
em  certeza — ,  que  a  ordem  em  que  ellas  se  suceedem  na 
publicação,  não  seja  a  ordem  em  que  realmente  se  succe- 
deram. 

Explica-se  então,  o  que,  do  contrario,  se  não  podesse, — 
que  poderia, —  explicar-se,  sendo  as  Cartas  authenticas, 
menos  explicável  fora  sendo  ellas  forjadas. 

Fácil  fora  ensaiar  outras  explicações,  mas  não  estamos 
fazendo  um  jogo  de  dialéctica:  —  damos  apenas  a  que  nos 
deu  o  estudo  sincero  dos  textos. 

De  certo,  se  a  incoherencia  apontada  provasse  contra  a 
authen  ti  cidade  das  Cartas,  como  e  porque  não  provaria  tam- 
bém, e  melhor,  contra  a  hypothese  de  serem  tranquilla  e  in- 
tencionalmente forjadas  para  passarem  como  authenticas? 

Poderamos  observar  simplesmente  que  mais  natural  do 
que  cahir  n'essa  incoherencia  o  escriptor  que  procurava 
dar-lhes  todo  o  caracter  de  verdadeiras,  fora  calcular  mal 
um  ou  outro  praso  decorrido,  uma  pobre  senhora,  escre- 
vendo attribuladamente  ao  amante  que  a  abandonara. 

Estamos,  porém,  realmente  convencidos  e  esperamos 
mostrar,  que  a  4."  carta  da  publicação  é  anterior  á  outra  ou 
deve  ser  contada  quando  muito  por  3. 


54 


Mas,  toda  a  impugnação  do  sr.  Beauvois  tem  por  obje- 
ctiva arredar  da  memoria  de  um  personagem  illustre  a  tra- 
dicção  de  que  foi  este  o  destinatário^  e  consequentemente 
o  inconfidente,  das  Cartas  da  freira  portugueza. 

É,  pois  tempo  de  irmos  ao  encontro  d'esta  tradição. 


VII 


Como  dissemos,  Barbin  publicou  as  cinco  cartas  sob  o 
simples  titulo  de  Lettres  portugaises,  no  começo  de  janeiro 
de  1669. 

Foi  certamente  extraordinário, —  singular, —  o  acolhi- 
mento que  teve  o  pequeno  livro. 

Antes,  muito  provavelmente,  de  que  esse  êxito  sugge- 
risse,  com.o  logo  no  primeiro  anno  suggeriu,  o  additamento 
de  uma  segunda  parte  ou  de  novas  cartas  portuguezas,  á 
publicação  inicial,  Pedro  du  Marteau,  o  celebre  livreiro  de 
Colónia,  lançava  duas  edições  das  cinco  cartas,  somente: 
—  uma,  a  encontrada  e  descripta  por  Sousa  Botalho  (mor- 
gado de  Matheus),  sem  data; —  outra,  até  agora  absoluta- 
mente desconhecida, —  datada  d'esse  anno,  e  que  só  depois 
da  nossa  primeira  edição  da  Soror  podemos  examinar. 

Como  as  que  deviam  seguir-se,  essas  edições  reproduzem 
o  aviso  ^ao  leitor, y  de  Barbin,  com  uma  diíTerença,  porém, 
de  singular  importância: —  a  primeira,  reproduz  esse  aviso 
sem  alteração  alguma;  a  segunda,  a  datada,  corrige  com 
os  nomes  do  destinatário  e  do  traductor,  a  discreta  omissão 
d'esses  nomes.  Outra  differença  ainda,  é  a  dos  títulos.  Nas 


55 


edições  de  Pedro  du  Marteau,  o  de  uma,  a  descripta  e  pos- 
suída por  Botelho,  é  este: — Lettres  d'une  rehgieuse portu- 
gaise;  o  da  outra,  diz  assim :  —  Lettres  d'ainour  d'une  re- 
Itgieuse  escrites  au  Chevalier  de  C.  Ofjicier  François  en  Por- 
tugal. 

Com  estas  edições  primeiras  de  Barbin  e  de  Marteau 
concorreu  logo  uma  outra  assignada  de  Amsterdam  pelo 
livreiro  Isaac  van  Dyck,  que  costuma  reunir-se, —  como 
tem  direito  egual,  a  datadn  de  Marteau, —  ás  collecções 
elzeverianas  e  que  Brunet  suppõe  ter  sido  impressa,  não  em 
Amsterdam,  mas  em  Bruxellas. 

Não  se  encerra,  porém,  o  anno  de  1669,  sobre  estas 
quatro  edições  apenas,  o  que  já  seria  notável. 

Barbin  reimprime  a  sua  e  acrescenta-lhe  uma  segunda 
parte, —  uma  collecção  nova  à^Q  portuguesas, —  que  acaba 
de  imprimir  em  20  de  agosto. 

Em  sete  mezes,  pois,  não  só  haviam  cinco  edições,  mas 
sob  o  estimulo  do  acolhimento  feito  pelo  publico  ás  cartas 
da  freira  portugueza  publicava-se,—  porque  digamol-o  já, 
hesitamos  em  dizer  com  a  opinião  geral,  que  se  forjava, — 
uma  collecção  nova  de  cartas  portuguezas,  ás  quaes  Barbin 
ou  o  seu  collaborador  lilterario,  embora  servindo-se  do 
mesmo  privilegio  obtido  para  a  publicação  das  primeiras, 
nunca  pensou  em  attribuir  a  mesma  procedência  e  o  mesmo 
destinatário  d'estas. 

A  segunda  parte  compõe-se  de  sete  cartas  que  um  novo 
aviso  «ao  leitor»,  diz  serem  de  une  femme  du  monde,  ex- 
plicando francamente  ^que  o  ruido  feito  pela  traducção  das 
cinco  cartas  poiiuguezasT  incitara  nalgumas  pessoas  de  qua- 
lidade a  tradusir  outras  que  lhes  cahiram  nas  mãosy,  e  o 
editor  a  publical-as  na  idéa  de  que  sendo  escriptas  «n^m 
estylo  differcnte  do  de  uma  religiosat  poderia  agradar  a  dif- 


S6 


ferença  ou  não  ser  tão  desagradável  a  nova  collecção  — 
9.qu'on  ne  me  sache  guelque  gré  de  le  donner  au  public» . . . 

Na  forma  e  nas  indicações  de  nomes  e  de  costumes,  pa- 
rece revelar-se,  como  geralmente  se  tem  acreditado,  que 
são  apocryphas  e  forjadas  estas  cartas  de  «uma  senhora  da 
sociedade  portugueza».  Não  temos,  porém^  de  nos  occupar 
d'ellas. 

O  que  é  muito  curioso,  é  que,  como  melhor  poderá  ver- 
se da  nossa  nota  bibliographica,  os  livreiros  e  alguns  críti- 
cos,—  e,  o  que  é  espantoso,  até  o  primeiro  traductor  por- 
tuguez,  o  celebre  Filinto  Elysio,  já  em  1810!  —  viessem  a 
confundir  e  a  misturar  as  sete  e  as  cinco  cartas  como  se 
fossem  todas  da  religiosa. 

Ainda  em  1669  Pedro  du  Marteau  reproduz  a  segunda 
parte  com  o  mesmo  prefacio  que  a  explica  e  distingue  na  edi- 
ção de  Barbin, —  mas,  e  d'aqui  data  realmente  amystiíica- 
ção, —  com  o  mesmo  titulo  da  primeira  parte  e  das  primei- 
ras edições  de  Colónia:  Lettres  d'une  réligieuse  etc. 

Outro  facto  extremamente  notável, —  e  para  nós  mais  si- 
gnificativo do  que  se  tem  supposto, —  e  o  da  apparição, 
n'este  mesmo  anno,  de  uma  collecção  de  respostas  ás  cinco 
cartas  da  freira  portugueza,  editada,  não  por  Barhin,  mas 
por  J.  Baptista  Loyson, —  outro  livreiro  parisiense  bastante 
conhecido. 

Precede-a  também  um  aviso  «ao leitor»,  em  que  Loyson 
começa  por  dizer  que  a  curiosidade  despertada  pelas  cinco 
cartas  da  religiosa,—  «escriptas  a  um  gentil  homem  de  volta 
de  Portugal  a  França»,  é  que  o  persuade  de  que  o  leitor 
não  terá  menor  curiosidade  em  ver  as  respectivas  respos- 
tas. Foram-lhe  estas  fornecidas  por  um  dos  amigos, —  que 
lhe  é  desconhecido^ — d'aquelle  gentil  homem. 

Este  amigo  desconhecido  do  editor,  e  de  quem  elle  re- 


57 


cebe,  sem  mais  ceremonias,  as  respostas  que  se  apressa  em 
publicar  como  aulhenticas,  «assegura-lhe  que  estando  em 
Portugal  obteve  as  copias,  aescriptas  em  linguagem  dopaiz, 
das  mãos  da  abbadessa  de  um  mosteiro,  que  recebia  as  car- 
tas e  as  guardava,  em  vez  de  as  entregar  á  freira  a  quem 
eram  dirigidas,  p 

Depois  d'esta  grosseira  historieta,  em  que  parece  revelar- 
se  já  a  intenção  de  justificar  o  destinatário  das  cinco  cartas 
da  religiosa,  o  aviso  «ao  leitor»  plagia  um  largo  trecho  do 
da  edição  inicial  de  Barbin,  a  começar  pelas  palavras: — 
«Não  sei  o  nome  de  quem  as  escreveu,  nem  de  quem  fez  a 
traducção» , —  e  termina  por  esta  curiosa  declaração :  —  «As- 
seguram-me  que  o  gentil  homem  que  as  escreveu  voltou 
para  Portugal.  y> 

Apesar  da  declaração  terminante  do  editor,  de  que  não 
conhece  o  amigo  do  gentil  homem  que  lhe  fornece  as  res- 
postas d'este  e  de  que  não  sabe  os  nomes  de  quem  as  es- 
creveu e  de  quem  as  traduziu ^  o  privilegio  da  publicação 
indica  que  ellas  foram  traduzidas  pelo  Sieur  D.  F.  D.  M. 
e,  segundo  Asse,  acompanha-o  uma  cessão  do  auctor,  da- 
tada de  3  de  fevereiro  de  1669,  isto  é,  de  um  mez  apenas 
depois  da  publicação  das  cinco  cartas  iniciaes  por  Barbin. 

Se  a  primeira  idéa  que  naturalmente  occorre,  e  que  o 
exame  das  Respostas  não  faz  mais  do  que  inteiramente  con- 
firmar, é  a  de  que  ellas  são  um  embuste  grosseiro  que  nem 
por  algum  merecimento  litterario  se  faz  desculpar,  devemos 
confessar  que  uma  suspeita  nos  tem  obstinadamente  acom- 
panhado essa  idéa. 

É  a  de  que  a  par  da  exploração  do  ruido  e  do  interesse 
que  as  cinco  cartas  da  freira  portugueza  despertavam,  houve 
também  a  intenção  de  attenuar  a  antipathia,  a  censura,  que 
porventura  se  manifestaria  em  relação  ao  destinatário  in- 


58 


grato  e  inconfidente,  ao  mesmo  tempo  que  se  procuraria 
desnortear  a  opinião  acerca  de  quem  elle  realmente  fosse. 

Não  podemos  resistar  a  observar,  aqui,  que  exactamente 
por  este  tempo  reentrava  em  França,  de  uma  nova  cam- 
panha, o  indigitado  destinatário  e  revelador  das  cartas. 

A  idéa  capital  das  Respostas  é  mostrar-nos  o  seductor  da 
pobre  freira  portugueza  sob  um  aspecto  perfeitamente  di- 
verso d'aquelle  que  as  Cartas  naturalmente  haviam  de  at- 
tribuir-lhe  no  conceito  dos  corações  sensíveis. 

Longe  de  abandonal-a  brutalmente,  e  de  não  ter  com- 
prehendido  nem  merecido  aquella  paixão  profunda  e  inge- 
nua^  o  illustre  aventureiro  seria,  segundo  as  Respostas,  o 
mais  fiel,  o  mais  dedicado,  o  mais  correcto  e  cavalleiroso 
amante. 

Cheio  de  saudades  e  de  boas  intenções,  não  pensaria  se- 
não em  abandonar  prazeres  da  corte,  aífectos  de  familia, 
seducções  de  futuro  pela  sua  querida  religiosa  desolada  e 
perdida  n'  aquelle  paiz  longínquo  e  simi-barbaro  onde  o  sr. 
de  Saint-Romain  dizia,  em  1665,  para  obter  certos  adian- 
tamentos fi  nanceiros,  que  não  encontraria  sequer  uma  ba- 
teria de  cozinha  regularmente  digna  de  um  representante 
da  França ! . . . 

Se  outra  coisa  poderia  ter-se  imaginado,  fora  porque  as 
cartas  do  apaixonado  gentil-homem  eram  cruelmente  se- 
questradas por  uma  severa  abbadessa,  que  logo  depois  não 
hesitava  em  offerecel-as  por  copia  a  um  amigo  d'elle,  natu 
ralmente  tão  desconhecido  d'esta  austera  senhora  como  do 
editor  que  se  apressava  em  revelai  as  ao  publico. 

De  resto  assegurava-se  que  o  malaventurado  amante  vol- 
tara para  Portugal,  e  as  suppostas  Respostas  esforçavam-se 
por  accentuar  esta  idéa,  que  o  não  abandonava,  de  volver 
aos  braços  da  saudosa  Marianna. 


59 


Muito  discreto,  o  amigo,  que  exactamente  n'esta  occasião 
offerecia  a  um  editor  a  exploração  do  encantador  roman- 
ce I .. . 

E  como  tudo  isto  se  passara  rápido  I . . . 

E  como  deveriam  ficar  desconcertados  os  que  julgavam 
poder  sobrescriptar  a  paixão  ardente  e  as  cartas  amantissi- 
mas  da  freira  portugueza  a  um  certo  nome  conhecido  e  bri- 
lhante que  estava  bem  longe  de  vir  esconder  e  continuar  o 
amoroso  idyllio  na  duvidosa  tranquillidade  das  charnecas 
do  Alemtejo,  á  beira  da  inquisição  de  Évora. . . 

Como  veremos,  o  nome  do  illustre  conquistador  da  po- 
bre religiosa  era  segredado  e  apontado,  naturalmente  com 
uma  discripção  correspondente  á  que  elle  e  os  seus  amigos 
haviam  mostrado  na  exhibição  dos  trophéos  d'aquell a  con- 
quista. 

Esse  nome,  já  sobejamente  illuminado  por  uma  tradição 
brilhante  na  corte  e  na  milicia  de  Luiz  xiv,  ia  entrado  no 
caminho  das  mais  elevadas  distincções  que  havia  de  condu- 
zil-o  ao  quadro  glorioso  dos  marechaes  de  França. 

A  pequena  aventura  das  campanhas  de  Portugal  não  lhe 
tolheria  o  passo,  certamente,  mas  o  ruido  d'ella,  a  impres- 
são extraordinária  produzida  pelas  Cartas,  aquella  figura 
sombria  e  desolada  da  pobre  religiosa  que  pela  profunda 
eloquência  da  sua  paixão  fatidicamente  se  prendera  ao  nome 
e  á  vida  do  seductor,  poderiam  tornar-se-lhe  mais  de  uma 
vez  incommodas  e  oppressivas  no  futuro. 

Seria  a  publicação  das  Respostas  intencionalmente  desti- 
nada a  arredar,  a  dissolver,  a  desarmar,  pelo  menos_,  a  ver- 
são corrente? 

É  difficil  deixar  de  suspeitar  que  o  fosse,  mas  o  que  é 
certo  é  que  o  não  conseguiu,  nem  logrou  evitar  sequer  que 
em  breve  se  definisse,  em  novas  edições,  a  attribuição  que 


60 


o  livro  de  Loyson  parecera  dever  ou  pretendera  realmente 
desmentir. 

Á  invenção  capciosa  das  primeiras  Respostas  seguiu-se 
outra  que  lealmente  se  revelava  como  simples  ensaio  litte- 
rario. 

Foi  uma  nova  coUecção  de  Repouses  aux  lettres  porlu- 
gaises,  impressa  em  Grenoble,  ainda  no  mesmo  anno  de 
1669,  pelo  livreiro  Robert  Philippes,  e  composta  de  seis 
cartas.  O  auctor  declarava  tentar  apenas  trabalho  análogo 
ao  que  Aulus  Sabinus  fizera  em  relação  a  algumas  das  he- 
roidas  de  Ovidio,  «com  tão  pouco  êxito  que  as  respostas 
d'aquelle  não  fizeram  mais  do  que  realçar  o  esplendor  das 
cartas  d' este,  posto  não  fossem  mais  do  que  uma  diversão 
de  espirito  em  que  a  paixão  e  o  coração  nenhuma  parte  ti- 
nham.» 

Começa  comtudo,  por  dizer  que  «não  pretende  esclarecer 
o  leitor  sobre  se  as  cinco  cartas  portuguezas  são  verdadeiras 
ou  suppostas,  nem  se  ellas  se  dirigem,  como  se  diz  a  um  dos 
as signalados  senhores  do  reino . . .  «direi  somente,»  —  acres- 
centa,—  que  a  ingenuidade  e  a  paixão  das  cinco  cartas,  a 
poucas  pessoas  permitirão  duvidar  de  que  tenham  sido  ver- 
dadeiramente escriptas.» 

Assim,  como  era  natural,  e  como  já  dissemos:  desde  a 
apparição  d'ellas  não  só  a  sua  authenticidade  não  inspirava 
grandes  duvidas  e  até  nenhuma  encontramos  definida  em 
escripto  contemporâneo,  como  se  divulgara  o  nome  do  des- 
tinatário sem  que  nenhuma  contestação  positiva  se  revele 
também,  embora  este  se  achasse  em  França  quando  exa- 
ctamente as  primeiras  edições  e  as  primeiras  rhapsodias  se 
suecediam  rapidamente,  e  elle  oecupasse^  pelas  tradições  e 
relações  de  familia,  pela  sua  própria  situação,  um  logar 
distinctissimo  na  curte  e  no  exercito  franeez. 


61 


Esse  nome  não  tardara  em  denunciar-se,  umas  vezes,  e 
especialmente  nas  edições  feitas  sob  a  immediata  acção  da 
auctoridade  franceza,  por  uma  discreta  inicial,  apenas, — 
outras  declaradamente  e  acompanhado  do  nome  do  tradu- 
ctor,  do  destinatário,  do  primeiro  editor  ainda  em  vida  d'el- 
les,  sem  que  se  revelia  o  simples  ensaio  de  uma  rectifica- 
ção ou  de  um  desmentido. 

Assim,  logo  nas  primeiras  edições,  ao  passo  que  Barbin 
cala  no  frontespicio  da  sua,  qualquer  allusão  ao  destinata 
rio  das  cartas  e  no  prefacio  diz  modestamente  —  «não  sei  o 
nome  d'aquelle  a  quem  foram  escriptas  nem  o  de  quem  fez 
a  traducção  d'ellasi>j — Pedro  du  Marteau,  no  mesmo  anno 
de  1669,  semanas  ou  mezes  depois,  na  formosa  edição  até 
agora  desconhecida  e  a  que  atraz  alludimos,  não  somente 
põe  logo  na  primeira  pagina  a  observação  de  terem  sido  es- 
criptas as  Cartas  que  publica — «aw  Chevallier  de  C.  ojficier 
François  em  Portugal», —  mas  reproduzindo  o  prefacio  do 
collega  de  Paris,  substitue  o  periodo  citado  por  este: — «O 
nome  d'aquelle  a  quem  foram  escriptas  é  Monsieur  le  Che- 
VALiER  DE  Chamilly  e  0  nome  de  quem  fez  a  tradvcqão  É 

CuiLLERAQUE.í 

Note-se, — pois  que  até  agora  parece  ter  passado  desaper- 
cebida—  esta  forma  familiar,  ou  como  de  quem  de  si  pró- 
prio fala,  de  aflirmar  o  nome  do  traductor: — é  Cuillera- 
que  (aliás  Guilleraque). 

Já  na  primeira  edição  do  nosso  trabalho  prováramos  que 
não  era  somente  em  1699,  como  se  afíirmava,  mas  muito 
antes,  em  1690^,  pelo  menos,  que  os  nomes  do  destinatário 
e  do  traductor,  expressamente  se  exhibiam. 

Mas  então  não  conhecíamos  a  edição  de  Marteau,  e  ape- 
sar da  nossa  perfeita  e  fácil  convicção  de  que  os  nomes  do 
destinatário  e  do  traductor  das  Cartas  não  eram  um  mys- 


62 


terio  para  os  primeiros  editores  como  o  não  era  para  grande 
parte  do  publico^,  e  que  elles  mesmos,  até,  não  haviam  posto 
um  grande  empenho  em  occultar-se: — mal  cuidávamos 
que  exactamente  um  d'esses  editores  se  teria  encarregado 
de  revelar  esses  nomes,  logo  em  1669,  poucos  mezes  de- 
pois de  terem  entrado  em  França  os  officiaes  em  serviço 
de  Portugal,  um  dos  quaes  era  exactamente  Chamilly,  sem 
que  este,  ou  alguém  por  elle,  ou  qualquer  d'aquelles,  ou, 
em  summa,  o  traductor,  personagem  bem  conhecido  na 
corte  e  nos  sallões,  ensaiassem  a  menor  objecção  no  meio 
do  êxito  enorme  do  livrinho. 

Este  facto  absolutamente  inédito, '  na  historia  e  na  cri- 
tica da  questão,  não  só  arreda, — melhor  ainda:  não  só 
aHiquilla,  todas  as  hypotheses  engenhadas  sobre  a  falsa  idéa 
de  que  só  muito  mais  tarde  e  por  adaptação  interpretativa 
a  uma  simples  inicial,  appareceu  o  nome  de  Chamilly  como 
o  destinatário  das  Cartas,—  mas  é  um  novo  subsidio  de  sin- 
gular valia  para  a  authenticação  e  comprovação  d'ellas. 

E  quando  se  approxima  este  facto,  do  pensamento  reve- 
lado nas  primeiras  Respostas ^  de  attenuar  a  má  situação 
moral  do  inconfidente  destinatário  das  Cartas, —  ou  se  con- 
sidera que  o  próprio  êxito  d'ellas  o  collocaria  imprevista- 
mente n'uma  situação  incommoda  não  só  perante  a  senti- 
mentalidade publica,  mas  perante  as  conveniências  hypo- 
critas  e  intriguistas  da  Corte,  nos  últimos  tempos  do  Rei- 
Sol:  assumem  um  caracter  de  novo  testemunho  corrobo- 
rativo  a  omissão  da  declaração  de  Pedro  du  Marteau  em 
edições  posteriores,  —  nas  d'elle  próprio,  até;  —  a  substi- 
tuição do  nome  por  uma  vaga  inicial;  —  a  própria  desappa- 


1  Na  nova  Bibliographia  das  Cartas,  contaremos  como  po- 
demos verifical-o. 


63 


rição  d'aquella  edição  de  1669  de  que  só  casualmente  se 
encontra  agora  um  exemplar  em  Portugal. 

Não  occultaremos  mesmo  que  a  edição  de  Marteau  nos 
suggeriu  a  idéa  de  que  fosse  ella  a  primeira,  a  original,  e 
que  Barbin  simplesmente  a  aproveitasse,  apropriando-se 
d'ella,  e  substituindo,  para  não  se  comprometter, —  pois  que 
vivia  á  beira  da  Corte  e  da  Bastilha, —  ou  para  obter  o  pri- 
vilegio, a  franca  e  despreoccupada  indicação  do  seu  col- 
lega  de  Colónia. 

O  que,  porém,  principalmente  importa  que  fique  assente 
é  que  não  foi  em  1699,  nem  em  1690,  nem  sequer  em  1678 
que  se  começou  a  insinuar  ou  determinar  os  nomes  do  des- 
tinatário e  do  traductor  das  Cartas : —  foi  logo  nos.primeiros 
meses  de  1669,  en'uma  das  primeiras  edições  d'ellas,  que 
esses  nomes  se  revelaram  declaradamente. 

Sem  data,  mas  provavelmente  em  1669,  ainda, —  o  mes- 
mo Pedro  du  Marteau  faz  uma  edição  da  segunda  parte  ou. 
das  Cartas  d'uma  «dama  da  sociedade,»  conservando-lhe 
})orém  o  titulo  de  Lettres  d'une  religieuse  portiigaise, — 
apesar  da  declaração  do  prefacio,  que  é  também  o  de  Bar- 
bin, de  que  taes  cartas  são  muito  diíferentes  das  primeiras. 
Assim  começa  a  extraordinária  confusão  a  que  nos  refe- 
rimos já. 

Continuam  no  anno  seguinte  (1670)  as  reedições  das 
Cartas  e  das  Respostas,  por  Barbin  e  Loyson,  e  em  1671 
começa  Pedro  du  Marteau  a  exploração  simultânea  das  ul- 
timas, attribuindo-as  ao  tChevalier  de  C...,  officier  en 
Portugal.n 

Em  1678,  publicam-se  em  Londres,  traduzidas  em  inglez, 
as  cinco  cartas  da  religiosa  portugueza  tão  perfeitamente 
consideradas  como  authenticas  que  o  traductor,  —  o  celebre 
Roger  L'Etrange,  um  dos  litteratos  e  dos  críticos  mais  dou- 


64 


tos  da  Inglaterra,  no  século  xvii, —  oíTerece-as  não  só  como 
«uma  viva  imagem  d'uma  estranha  e  desgraçada  paixão,» 
mas  como  lição  de  que  «uma  mulher  é  tanto  de  carne  e 
sangue  n'um  convento  como  n'um  palácio».  A  traducção 
ingleza  reproduz-se,  pelo  menos,  em  1693,  1694  e  1701. 
A  primeira  versão  allemã  de  que  temos  noticia,  e  que  como 
a  anterior,  não  tem  sido  citada  pelos  commentadores  e  hi- 
bliographos  é  já  do  século  xviii. 

Marteau  que  faz  n'aquelle  anno  de  1678  uma  nova  edição, 
põe-lhe  a  mesma  indicação  da  de  1671. 

Na  edição  de  Haya,  em  que  as  cinco  cartas  se  encontram 
já  confundidas  ou  misturadas  com  as  7  d'uma  femme  du 
monde,  diz-se  que  ellas  foram  escriptas  por  uma  religiosa 
portugueza  ao  —  « Chevalier  de  G* » 

Repete-se  a  indicação,  mais  desenvolvida,  n'outra  edição 
de  Haya,  de  1688,  por  Abraham  de  Hont  e  Jacob  van  El- 
linkhuysen,  com  a  circumstancia  de  que  o  periodo  do  aviso 
inicial  da  edição  de  Barbin,  a  que  temos  alludido  é  substi- 
tuído por  este : —  «o  nome  d'aquelle  a  quem  as  cartas  foram 
escriptas  é  M.  le  C.  de  C.  e  o  nome  d'aquelle  que  fez  a 
traducção  é  C.» 

Na  edição  de  1689,  dos  mesmos  livreiros,  a  indicação  do 
destinatário  é—  a  Chevalier  de  C*.  officier  en  PortugaU . 

Finalmente,  n'uma  edição  de  Corneille  de  Graef,  em 
1690,  o  periodo  respectivo  do  aviso  inicial  de  Barbin  é 
emendado  por  outro  em  que  expressamente  se  diz  que  o 
nome  do  destinatário  é  Monsieiír  le  Chevalier  de  Chamilly  e 
o  do  traductor  Cuilleraque. 

Em  1699  publica  Francisco  Roger,  uma  collecçao  de 
Cartas  galantes  e  amorosas  em  que  reproduz  as  da  freira 
portugueza  precedidas  ainda  do  prefacio  de  Barbin. 

N'este,  porém,  o  periodo  capital  cede  o  logar  a  esta  rcs- 


65 


tituição  correcta  da  declaração  de  Marteau: — Le  nom  de 
celui  auquel  on  les  a  écrites,  est  Monsieur  le  Chevalier  de 
Chamilly  &  le  nom  de  celui  qiii  en  fait  la  Tradudion,  est 
Guilleraque. » 

Terminemos  estas  citações  com  uma  que  tem  uma  par- 
ticular importância. 

Em  1698  publica  Miguel  Brunet,  a  primeira  edição  da 
apreciada  coUecção  de  Richelet:  —  «Les  plus  belles  lettres 
françoiseSj  tirées  des  mcilleurs  AuteurSj*  etc.  —  muito  elo- 
giada pelo  Journal  des  Savants  (Paris),  d'aquelle  anno. 

Não  podemos  ver  esta  edição  nem  as  duas  que  rapida- 
mente se  lhe  seguiram.  Não  podemos  pois  aííirmar  j)ositi- 
vamente  que  venham  lá  as  Cartas  portuguezas. 

Cremos  que  vem.  Mas  vimos  a  quarta  edição  publicada 
em  1708  por  Luiz  e  Henrique  van  Dole,  em  Haya. 

No  primeiro  volume,  encontram-se  as  cinco  cartas  da  re- 
ligiosa portugueza,  com  o  endereço,  cada  uma,  a  Monsieur 
le  C*,  ou  C.  de  6,'***. 

Note-se  que  se  trata  de  uma  espécie  de  edição  critica  de 
cartas  authenticas,  que  é,  até,  precedida  de  uma  nota  bio- 
graphica  dos  auctores. 

É  claro  que  o  auctor  das  nossas  Cartas  não  figura  n'essa 
nota,  mas  a  redacção  d'estas  foi  revista  no  pensamento  de 
as  tornar  mais  francezas,  sendo,  na  ultima,  o  nome  portu- 
guezissimo  de  Dona  Brites  substituído  pelo  de  Emile. 

De  resto,  as  cinco  Cartas  da  pobre  freira  portugueza  con- 
tinuaram a  ser  reunidas  e  confundidas  pela  grosseira  ex- 
ploração dos  livreiros  com  as  outras  sete  de  uma  «dama  da 
Sociedade»  e  com  as  Respostas,  nas  varias  collecções,  al- 
gumas muito  ineptas  e  insípidas,  de  amorosas,  onde  brilha- 
vam, como  diamantes  de  fina  agua  entre  falsa  joalhería,  ou 
então  rivalisando  com  alguns  do  singular  quilate  como  os 

F.  O 


66 


da  Heloísa,  e  offuscando  inteiramente  os  de  Boursault  e  os 
da  Presidente  Ferrant. 


YIII 


Será,  porém,  este  nome  de  Chamilly,  como  o  do  desti- 
natário das  Cartas  e  como  o  do  ingrato  objecto  dos  apaixo- 
nados enlevos  de  uma  freira  portugiieza,  uma  tradição  ou 
invenção  bibliographica,  simplesmente? 

Não  é. 

Saint-Simon,  ^  que  começa  a  escrever  as  suas  celebres 
Memorias,  em  1691,  Saint-Simon,  que  como  muito  bem 
diz  um  dos  seiís  editores, — inous  a  fait  voir  le  dessous  des 
cartes  du  grand  règnev — ,  falando  da  nomeação  de  dez  ma- 
recbaes  de  França,  em  li  de  janeiro  de  1703,  e  dando  a 
noticia  biographica  d'elles,  diz  do  primeiro,  o  tenente  ge- 
neral Chamilly: 

—  «Servira  com  reputação  era  Portugal  e  em  Cândia. 
Vendo-o,  e  ouvindo-o,  ninguém  poderia  persuadir-se  de  que 
tivesse  inspirado  um  amor  tão  desconforme  como  o  que  é 
a  alma  d'essas  famosas  Cartas  portuguezas ,  nem  que  ti- 
vesse eseripto  as  respostas  que  n'ellas  se  encontram,  áquella 
religiosa.» 

E  mais  tarde,  registando  a  morte  do  marechal  de  Cha- 
milly, em  6  de  janeiro  de  171o,  escreve: 


1  Mémoires  complets  et  authentiques  du  duc  de  Saint-Simon, 
Âi  publiées  sur  le  manuseript  original  &. — Nouv.  ed. — Paris, 
1842. 


67 


— cServira,  moço,  em  Portugal  e  a  elle  é  qm  foram  es- 
criptas  essas  famosas  Cartas  portuguezas  por  uma  religiosa 
que  lá  conhecera  e  que  elle  enlouquecera  de  amor. » 

Vê-se  que  não  é  uma  versão,  uma  opinião  duvidosa,  he- 
sitante, que  Saint-Simon  emitte. 

É  a  affirmação  segura  de  um  facto  que  na  sua  situação 
e  com  as  suas  relações  e  influencias  na  corte  e  na  aristo- 
cracia militar  franceza  elle  teria  excellentes  occasiões  de 
colher  e  verificar,  até  por  narrativa  do  próprio  Chamilly, 
tendo  tido  a  confiança  d'este  e  tendo  intimamente  convivido 
com  elle  e  com  a  marqueza  sua  esposa. 

Outro  contemporâneo  que  egualmente  poderia  ter  veri- 
íicado  com  toda  a  segurança  a  tradição,  Duelos,  que,  como 
observa  um  critico  teve  á  sua  disposição  os  melhores  ar- 
chivos  e  informações,  escreve : — «O  marechal  de  Chamilly, 
celebre  pela  sua  bella  defeza  de  Grave,  morreu  também 
n'este  anno  (1715).  Era  formoso  e  bem  feito,  e  servira  na 
mocidade  em  Portuga Vonde  fora  vivamente  amado  por  uma 
freira.  É  a  elle  que  são  dirigidas  as  Cartas  portuguezas.^ 

— aToujours  des  assertions,  jamais  de  preuvesi — excla- 
ma o  sr.  Beauvois. 

Mas  que  melhores  provas  podem  exigir-se  do  que  as  as- 
serções positivas,  claras,  terminantes,  perfeitamente  des- 
preoccupadas  de  qualquer  interesse  ou  de  quaesquer  du- 
vidas, por  parte  dos  contemporâneos,  sem  nenhuma  con- 
tradicção_,  sem  objecção  alguma,  de  egual  natureza  e  au- 
ctoridade? 

Mas  porque,  ou  como^  ou  para  que  haviam  esses  con- 
temporâneos dizer  «5?tr  quoi  était  fondée  cette  attrihution,y> 


1  Mémoires  secrets  {Nouv.  Collect.  de  mém.  pour  servir  á  le 
Hist.  de  France,  &— Paris.  1839). 

5* 


68 


eíles  que  simplesmente  registavam  um  facto  sabido,  que  o 
próprio  interessado  nunca  contestou,  do  qual  talvez,  até,  o 
soubessem,  e  não  expunham  apenas  uma  opinião,  uma  sus- 
peita, uma  presumpção  própria? 

Quaes  são  então  as  provas  que  nos  ofterecem, —  que  va- 
lham aquellas  ou  que  as  tornem  duvidosas, —  os  qu3  recu- 
sam o  testemunho  dos  contemporâneos  e  da  tradição? 

Ah,  se  o  interessado  se  calla  e  não  contesta, — observa 
sempre  um  pouco  á  cavalleira  o  sr.  Beauvois, — é  porque 
vendo  que  as  Cartas  se  attribuem  a  um  chevalier  de  Cha- 
milly^  o  marquez  não  tendo  usado  este  titulo,  podia  perfei 
tamente  acreditar  que  não  se  tratava  d'elle,  ou  antes  não 
se  dignou  refutar  este  erro  «como  os  sábios  não  protestam 
hoje  contra  o  emprego  dos  seus  nomes  em  ficções  litterarias 
ou  dramáticas.» 

Farão  isto  alguns  sábios  que  o  sr.  Beauvois  conheça,  mas 
além  de  que  Ghamilly  não  se  parecia  nada  com  um  sábio, 
no  dizer  dos  contemporâneos,  que  sempre  o  conheceriam 
melhor,  as  coisas  passavam-se  n'outro  tempo  um  pouco 
differentemente  do  que  parece  que  se  passam  agora  em 
Beaune,  segundo  a  sentença  do  illustre  escriptor. 

O  sujeito  a  quem  se  attribuia  uma  obra  que  poderia  com- 
prometter  um  pouco  os  seus  créditos  litterarios  e  moraes, 
protestava,  geralmente,  e  protestava  até  algumas  vezes.  .  . 
sendo  verdadeira  a  attribuição. 

Foi  o  que  aconteceu  com  aquelle  lord  Bolinghroke,  de 
quem  fala  a  menina  Aissé,  que  negava  fortemente  que  fos- 
sem suas  três  philippicas  contra  Walpole,  realmente  escri- 
ptas  e  publicadas  por  elle. 

Voltaire  não  se  cança  de  protestar  perante  os  amigos,  o 
publico  e  o  sr.  de  Sartine,  contra  a  exploração  mercantil, 
cavilosa,  ou  apenas  indiscreta  do  seu  nome. 


69 


Mas  não  vale  realmente  a  pena  discutir  a  prudente  ou  a 
philosophica  indifferença  de  Ghamilly. 

É  certo  que  elle  não  tinha  a  zelar  grandes  créditos  litte- 
rarios,  e  pode  facilmente  suppor-se  que  o  ruido  da  sua  aven- 
tura amorosa  não  o  importunasse  tanto  como  aos  seus  piedo- 
sos biographos  e  admiradores  de  dois  séculos  mais  tarde. 

Hão  de  convir,  porém,  que  quem  desdenha  o  testemunho 
e  a  aííirmação  contemporânea  de  que  Ghamilly  fora  o  des- 
tinatário e  o  heroe  das  Cartas,  tinha  obrigação  de  nos  offe- 
recer  argumento  melhor  para  explicar  o  silencio  acquies- 
cente  d'elle,  do  que  a  hypothese  de  que  não  quizera  dignar- 
se  contradizer  a  versão,  ou  de  que  podia  acreditar  que  se 
não  tratava  d'elle  porque  não  usara  o  titulo  de  «chevalier 
de  Ghamilly» .  E  o  de  «marquez»,  usava-o  em  1669? 

O  que  tem  uma  certa  graça  é  que  este  ultimo  argumento 
chega  a  transformar-se  em  questão  capital. 

Ghamdly  «usava  um  titulo  superior  ao  de  chevaliery>  ob- 
serva triuraphanlemente  o  sr.  Beauvois;  não  é  elle,  pois, 
que'o  editor  de  1678  designa  por  «chevalier  de  C.y>,  e  o 
editor  de  1690,  «qui  a  rendu  cette  initialle  par  Chamilly,  a 
fait  preme  d'une  crasse  ignorance.y 

Pobre  Gorneille  de  Graef! 

Elle  poderia  ter  optado  pela  edição  dos  seus  collegas 
Abrabam  de  Hont  e  Jacob  van  Ellinkhuysen,  de  1688,  tra- 
duzindo respeitosamente  a  indicação  d'estas:  —  M.  le  C.  de 
C. — por  Monsieur  le  Comte  de  Chamilly,  porque,  emfim, 
a  inicial  primeira  tanto  poderá  dizer  Comte  como  Chevalier. 

Ainda  assim  o  illustre  critico  não  se  daria  por  vencido. 

Entende  que  o  titulo  de  Gonde  de  Ghamilly,  também  não 
é  uma  designação  correcta. 

É  a  que  empregam,  em  1638  e  1664,  dois  diplomas  fir- 
mados pelo  próprio  Luiz  xiv,  que  emfim  tinha  um  tal  on 


70 


qual  direito  de  determinar  estas  coisas,  mas  o  sr.  Beauvois 
oberva  que  é  «muito  abusivamente»  que  chamaram  assim 
a  Noel  Bouton. 

Parece  que  Schomberg,  apesar  de  distanciado  da  curte  e 
dos  praxistas  d*estas  coisas,  procedeu  com  maior  exacção 
chamando-lhe,  em  Estremoz,  conde  de  Chamilly-Saint-Le- 
ger. 

Em  todo  o  caso  chamar-lhe  simplesmente  chevalier  é  que 
foi  um  escândalo.  «O  ignaro  traductor, —  insiste  o  sr.  Beau- 
voiSj —  não  escreveu  correctamente  o  titulo  de  Noel  Bou- 
ton; chama-o  chevalier  de  Chamilly,  et  il  est  le  seul  à  le 
qiialifier  ainsi.i> 

É  certo  que  n'alguns  documentos  o  titulo  de  chevalier 
apparece  qualificando  Noel  Bouton,  mais  é. . .  seguindo-lhe 
o  nome, —  ISoel  Bouton,  chevalier, —  e  não  antecedendo-o! 

Francamente,  apesar  de  todo  o  respeito  que  nos  merece 
o  illustre  commentador,  tudo  isto  nos  parece  perfeitamente 
insignificante,  quasi  pueril. 

Em  primeiro  logar  vimos  já  que  não  é  só  o  editor  de 
1690  que  emprega  a  designação  de  chevalier  de  Chamilly, 
nem  são  somente  os  editores  que  não  se  lembram,  quando 
se  referem  ao  conhecido  personagem,  de  o  designar  res- 
peitosamente pelos  seus  titulos  nobiliarchicos. 

Chevalier  de  Chamilly  não  é  um  titulo: — é  uma  designa- 
ção usual,  corrente,  simplificado,—  tanto  mais  naturalmente 
empregada  quanto  é  certo  que  o  individuo  designado  por 
ella  é  realmente  Chamilly,  e  se  torna  o  principal  Chamilly, 
o  mais  conhecido  por  este  nome,  atravez  da  successão  de 
diversos  titulos  e  de  diversas  situações. 

Simplesmente  Chamilly,  e  cremos  que  uma  vez  apenas 
conde  de  Chamilly,  é  como  lhe  chama  Saint-Simon,  e  era 
como  lhe  chamava  o  povo : 


71 

Pour  faire  enrager  Chamilly 
On  a  fait  choix  d'Huxelles,  etc. 

M.  de  Chamilly,  apenas,  chama  Turenne  em  difterentes 
cartas  ao  pae  ou  ao  irmão  mais  velho  de  Noel: — os  ve- 
lhos condes  de  Chamilly.  E  Turenne  sabia  bem  o  que  elles 
eram. 

É  também  como  appellida  o  futuro  marechal, —  o  nosso 
Chamilly, —  em  1675,  uma  das  Cartas  históricas  de  Pel- 
lisson,  e  a  narrativa  da  campanha  da  Hollanda  (1672),  edi- 
tada em  1759  por  P.  Hondt,  em  Haya,  documentos  citados 
pelo  próprio  sr.  Beauvois  I . . . 

Na  errada  idéa,  porém,  de  que  o  nome  de  Chamilly  fosse 
uma  simples  interpretação  da  inicial  empregada  por  alguns 
editores, —  quando  exactamente  foi  essa  inicial  que  pro- 
curou discretamente  velar  ou  disfarçar  o  nome  terminante- 
mente denunciado  logo  n'uma  das  primeiras  edições, — o 
sr.  Beauvois  exphca  que  essa  interpretação  se  dera  porque 
Chamilly  se  tornara  celebre  e  de  todos  os  officiaes  que  ha- 
viam servido  em  Portugal  era  o  mais  conhecido  cujo  nome 
começasse  por  C. 

Suppunhamos  que  assim  era. 

Mas  como  explicar  que  propondo-se  apenas  a  explorar 
a  celebridade  real  ou  supposta  de  Chamilly,  os  editores  não 
pozessem  principalmente  em  relevo  o  nome  d'elle,  por  ma- 
neira a  não  suggerir  qualquer  duvida,  e  se  limitassem  a 
designar  o  destinatário  das  cartas  por  chevalier  de  Chamilly, 
officier  français  en  Portugal,  sem  a  menor  allusão  aos  seus 
feitos  e  á  sua  situação  recente? 

Que  espécie  de  correlação  poderia  estabelecer-se  entre 
a  celebridade  adquirida  por  Chamilly  na  defeza  de  Grave 
(1675)  e  as  cartas  da  freira  portugueza? 


72 


Quem  se  lembrara  então  de  qae  elle  tivesse,  como  tan- 
tos outros,  servido  em  Portugal,  para  lhe  attribuir  aquellas 
cartas,  que  não  seriam  de  certo  o  seu  melhor  elogio,  se  a 
attribuição  não  andasse  já  na  versão  publica? 

Não  confessa  o  auctor  da  collecção  Philíppes,  em  IGtíf, 
no  mesmo  anno  em  que  ellas  apparecem,  que  o  destinatá- 
rio d'ellas  se  diz  ser  um  nome  illustre? 

Para  que  precisariam,  tantos  annos  depois,  do  sobrescri- 
pto  de  Chamilly? 

Mas  além  de  que  elle  estava  longe  de  ser  ainda  um  ho- 
mem celebre,  quando  Pierre  du  Marteau  em  1669  lhe  põe 
o  nome  na  sua  edição  das  Cartas,  engana-se  redondamente 
o  sr.  Beauvois,  como  se  teem  enganado  todos,  suppondo 
que  aquelle  gentilhomem  e  official  adquirira  uma  singular 
celebridade  entre  os  officiaes  francezes  que  serviram  em 
Portugal. 

Como  logo  mostraremos,  o  seu  nome  conservou  se  na 
mais  completa  obscuridade  durante  as  campanhas  da  Res- 
tauração. 

Era  bravo,  ousado,  intrépido? 

Cremol-o  facilmente,  até  na  fé  das  cartas  da  pobre  freira. 

Mas  essas  qualidades  eram  vulgarissimas  nas  fileiras  por- 
tuguezas  e  estrangeiras,  que  sustentaram  na  fronteira  todo 
o  peso  e  Ímpeto  do  velho  império  hespanhol,  desmentindo 
as  desastradas  illusões  de  Mazarin  e  dos  deploráveis  diplo- 
matas da  sua  politica  peninsular. 

Precisamente  entre  os  auxiliares  francezes  que  serviram 
com  Chamilly  em  Portugal  haviam  outros  cujos  nomes  «co- 
meçando por  aquella  inicial»  brilhantemente  se  distinguiram 
ao  lado  d'elle,  como  foram  Chevry,  coronel  de  um  regi- 
mento francez,  e  Chavet,  que  ambos  se  tornaram  muito  dis- 
tinctos  na  batalha  de  Montes-Claros,  Claran,  a  quem  em 


73 


1603  foi  confiado  o  commando  de  um  regimento  de  alle- 
mães  e  italianos,  desertores  do  exercito  iiespanhoi,  e  que 
chegou  do  decurso  da  canipanlia  do  Alemtejo  a  mestre  de 
campo  general.  Havia,  finalmente,  um  chevalier  de  Cler- 
mont,  da  Casa  Clermont  Lodcve,  que  ha  pouco  um  escriptor 
francez,  suppondo  também  que  o  nome  de  Chamilly  fosse 
apenas  uma  interpretação  de  iniciaes  pelo  editor  de  1690, 
observava  que  ellas  melhor  poderiam  talvez  designar.^ 

Feito  que  distinguisse  Chamilly,  n'essa  campanha,  não 
chegou  até  nós,  não  ficou  nos  archivos,  não  passou  á  his- 
toria. 

Só  um  : — o  da  conquista  da  pobre  freira  portugueza. 

Esse,  porém,  continuou  a  ser-lhe  attribuido  sem  contes- 
tação, nem  protestos,  pelos  seus  contemporâneos,  e  até  hoje, 
atravez  do  êxito  ruidoso  e  constante  das  Cartas. 

O  estudo  d'estas,  longe  de  contrariar,  conforma-se  per- 
feitamente com  a  tradição,  como  teremos  occasião  de  ver. 


IX 


No  fim  do  século  passado,  em  1796,  o  editor  parisiense 
Delance,  por  suggestão  de  Aubin,  publicou  uma  nova  edi- 
ção das  Cartas  Portuguezas,  precedendo-as,  pela  primeira 
vez,  de  um  estudo  critico  do  notável  bibliographo  o  abbade 
Mercier  de  Saint-Léger. 

Sem  a  menor  hesitação,  e  fundando-se  nas  investigações 
que  poderá  faze,  Saint-Í^éger,  aflirmando  a  authenticidade 


*  Maur.  Paleologrue. —  Revue  de  deux  mondes,  lo  oet.  1889. 


74 


das  Cartas,  dá  como  seu  destinatário  e  como  o  protogonista 
d'ellas,  Chamilly, — Noel  Bouton  de  Cliamilly. 

Começa  por  determinar  a  data  exacta  da  vinda  d'elle  para 
Portugal,  data  que  continua,  comtudo,  a  ser  erradamente 
fixada  por  alguns  escriptores  francezes  e  portuguezes,  que 
o  suppõem  vindo  com  o  conde  de  Schomberg, — mas  afas- 
tando-se,  não  sabemos  porque,  da  indicação  das  edições 
anteriores,  substituo  o  nome  do  traductor  indicado  termi- 
nantemente por  algumas  d'ellas. 

—  «Chamilly,  de  volta  a  França, —  diz  Saint-Léger, — 
teve  a  tola  vaidade  de  communicar  estas  Cartas,  sendo  exa- 
ctamente a  esta  tolice  que  devemos  possuil-as.  Confiou  o 
original  ao  advogado  Suhligny,  para  as  traduzir  e  publi- 
cal-as».  D'ahi  a  primeira  edição  de  Barbin. . . 

Ora  todas  as  edições  que  designam  o  traductor,  e  não 
pode  dizer-se  que  todas  se  copiem  umas  ás  outras,  coinci- 
dem em  chamar-lhe  Guilleragues,  ou,  as  primeiras,  Cuille- 
raques,  certamente  por  lapso.  O  nome  de  Subligny  em  ne- 
nhuma apparece,  e  este  simples  facto,  naturalmente,  nos 
inclina  em  favor  da  attribuição  corrente. 

O  próprio  Saint-Léger  parece  hesitar  quando  diz : 

—  «Seria  que  Guilleragues  fizesse  as  respostas  de  Cha- 
milly, e  Subligny  a  traducção  das  Cartas  da  religiosa  por- 
tugueza?  É  o  que  ignoramos  e  o  que  julgamos  muito  inu- 
tir  discutir.» 

Quem  era  Subligny? 

Advogado  segundo  uns,  actor  segundo  outros,  pae  da 
menina  Subligny,  famosa  dançarina  da  Opera;  escreveu 
em  1668  uma  comedia  critica  contra  a  celebre  tragedia 
Andromaca,  de  Racine.  Foi  a  Folie  quérelle,  que  Racine  e  ou- 
tros chegaram  a  attribuir  a  Molière,  e  que  se  considera  como 
tendo  iniciado,  em  França,  a  parodia.  Subligny  fez  ainda  a 


75 


falsa  Clelia,  romance  que  parece  ter  tido  uma  certa  accei- 
tação,  e  attribuem-se-Ihe  o  Desespoir  extravagant  (1670)  e 
outras  peças  de  theatro.  Tendo  feito  as  pazes  com  Racine, 
escreveu  em  defeza  de  algumas  obras  d'elle,  em  1671  e 
1677,  e  accrescenta  Saint-Léger  que  elle  «dirigia  ao  mes- 
mo tempo,  com  Montplasir,  a  musa  da  famosa  condessa  de 
Suze.» 

Quem  era  Guilleragues? 

Lavergne  de  Guilleragues,  ou  o  conde  Lavergne  de  Guil- 
leragues, como  outros  lhe  chamam,  era  um  gentil  homem 
gascão,  secretario  da  camará  e  do  gabinete  do  rei,  relacio- 
nado com  Racine,  Boileau,  a  senhora  de  Sévigné,  etc,  e, 
segundo  Saint-Simon, —  «glotão,  agradável,  com  muito  es- 
pirito, fazendo  excellente  companhia,  tendo  muitos  amigos, 
e  vivendo  á  custa  d'elles,  porque  tudo  esbanjara. . . » 

O  retrato  de  Boileau,  seu  amigo,  é  mais  lisonjeiro : 

Esprit  né  pour  la  cour  et  maitre  en  l'art  de plaire 
Guilleragues  qui  sais  et  parler  et  se  taire. 

Dirigiu  algum  tempo  a  Gazette  deFrance,  onde  fez  o  ne- 
crológio de  Turene.  Fora  intimo  da  senhora  de  Maintenon 
quando  ella  era  ainda  a  senhora  Scarron,  e  a  este  respeito 
é  costume  citar  a  seguinte  phrase  da  senhora  de  Caylus: 

«Pela  constância  do  seu  amor,  seu  espirito  e  seus  encan- 
tos, deve  também  ter  logar  no  catalogo  dos  admiradores 
da  senhora  de  Maintenon.» 

Segundo  Saint-Simon,  foi  esta  circumstancia  que  lhe  va- 
leu, em  1677,  a  embaixada  de  Constantinopla,  <ípourserem- 
plumer.  > 

Só  partiu  para  este  posto  em  1679,  e  morreu  n'elle  pouco 
depois. 


76 


Sousa  Botelho  não  acha  provável  que,  dada  a  sua  posi- 
ção e  estado,  o  sr.  de  Ghamilly  lhe  desse  as  cartas  a  tra- 
duzir. 

N'este  ponto  divergimos  inteiramente. 

Entre  os  dois  suppostos  traductores,  e  consideradas  exa- 
ctamente as  situações  e  as  tendências  de  cada  um,  cremos 
mais  provável  que  fosse  por  intermédio  de  Guilleragues  que 
as  Cartas  fizessem  a  sua  primeira  apparição  em  publico, 
ou  que  fosse  a  elle  que  Ghamilly  as  revelasse  e  desse. 

Além  de  tudo  é  esta  a  indicação  única  e  constante,  como 
já  vimos,  das  diversas  edições  ainda  em  vida  de  Guillera- 
gues e  de  Subhgny,  sem  que  o  nome  do  ultimo  appareça 
em  alguma. 

E  no  fim  de  tudo  pode  bem  ser  que  o  verdadeiro  tradu- 
ctor  fosse  simplesmente  o  próprio  Ghamilly,  e  que  o  papel 
do  outro  se  limitasse  ao  de  monitor  litterario  ou  concessio- 
nário amigo  da  versão  litteral, — tão  pronunciadamente  ac- 
cusada, — que  elle  lhe  communicasse,  das  Gartas 

Esta  idéa  da  inconfidência  de  Ghamilly,  e  de  elle  ter  lan- 
çado ou  deixado  lançar  á  publicidade  as  cartas  da  desolada 
amante,  até  sem  occultar-lhe  o  nome,  quando  escondia  o 
seu,  tem  sido  naturalmente  othema  obrigado  á  indignação 
e  á  censura  dos  commentadores  e  do  publico. 

Vimos  já  o  (jue  diz  Saint-Léger. 

Sousa  Botelho,  citando-o,  accrescenta  esta  observação 
irrespondivel :  —  «A  vaidade  de  Ghamilly  é  tanto  mais  in- 
desculpável que,  se  aquella  publicação  fosse  conhecida  em 
Portugal,  prejudicaria  gravemente  a  reputação  e  o  repouso 
da  pobre  religiosa  que  elle  tão  cruelmente  abandonara.» 

O  sr.  Eugène  Asse,  depois  de  observar  que  sobre  este 
ponto  a  posteridade,  sobretudo  a  feminina,  condemnou  ir- 
remissivelmente  Ghamilly,  ensaia  uma  attenuação.  que, 


77 


aparte  o  sentimento  generoso  que  a  inspira^  está  longe  de 
ser  acceitavel  e  exacta. 

Diz  elle: — «A  sua  nobreza  de  alma  e  á  sua  generosidade 
misturava-se  um  grão  de  fatuidade,  de  que  a  publicação 
das  cartas  de  Marianna  é  a  prova  evidente.  Que  não  foi 
elle  próprio  o  auctor  da  publicação  parece  quasi  certo.  É 
inteiramente  inverosimil  que  entre  a  sua  volta  de  Portugal 
em  1768  (aliás  1608)  e  a  sua  partida  para  a  expedição  de 
Cândia  tivesse  o  tempo  necessário  para  uma  indiscrição  tão 
prolongada.  E  mais  ainda  porque  nunca  fez  trabalho  de  tra- 
ductor  ou  de  publicador,  além  de  que  temos  sobre  este  ponto 
testemunhos  decisivos  (?).  Mas  é  certo  que  a  sua  indiscri- 
ção só  parou  n'este  limite  extremo,  e  que  elle  deixou  fazer 
o  que  não  fez  elle  próprio ...» 

«Evidentemente  as  cartas  da  pobre  Marianna  foram  mos- 
tradas pelo  seu  possuidor  como  um  d'estes  trophéos,  ou  pelo 
menos  como  uma  d'estas  lembranças  trazidas  de  paiz  estran- 
geiro. Comtudo,  o  incógnito  foi  completo,  e  nenhum  nome, 
nem  o  do  destinatário  nem  o  do  traductor,  foi  inscripto  na 
primeira  edição.  Quanto  ao  de  Marianna  Alcoforada  nunca 
appareceu  n"ella. . . » 

Lopes  de  Mendonça  dissera  já:  —  «o  homem  que  soube 
merecer  tamanho  affecto,  cedendo  á  vaidade  de  publicar  as 
cartas  que  recebera,  callou  o  nome  da  pessoa  que  as  assi- 
gnava. . . » 

Ora  não  ha  nada  mais  inexacto. 

O  que  se  calou  foi  simplesmente  «o  nome  da  pessoa  a 
quem  eram  escriptas  e  o  do  traductor»,  e  isto  na  edição 
de  Barbin,  que  na  de  Marteau,  do  mesmo  anno  (1668),  não 
succedeu  assim. 

O  de  quem  as  escrevera,  e  que  fora  tão  natural  e  sim- 
ples esconder  ou  substituir  por  outro  até  mais  vulgarmente 


78 


Irancez,  como  um  editor  substituiu  mais  tarde  o  de  D.  Brites 
pelo  de  Emile,  conservou-se  na  publicação  como  se  encon- 
traria certamente  nas  cartas  originaes,  apenas  sem  o  appel- 
lido  de  familia,  que  seria. . .  um  pleonasmo,  em  cartas  de 
amor. 

Não  comprehendemos  também  como  seja  inverosimil  que 
Chamilly,  que  estava  já  em  França  no  começo  de  1668, 
que  só  partiu  para  Cândia  no  fim  de  setembro  d'esse  anno, 
não  tivesse  tempo,  recebendo  as  cinco  cartas,  muito  prova- 
velmente até  junho  ou  julho,  quando  muito,  para  as  ler  e 
communicar  a  um  ou  outro  amigo. 

Taes  attenuações  nem  teem,  com  razão,  o  merecimento 
de  satisfazer  os  piedosos  escrúpulos  do  sr.  Beauvois  e  dos 
que  se  esforçam  por  afastar  da  memoria  de  Chamilly  a  nó- 
doa supposta  ou  real  d'aquella  inconfidência. 

Pela  nossa  parte  consideramos  toda  esta  questão  alheia 
aos  principies  e  ao  caracter  da  verdadeira  critica. 

Parece-nos  tão  perfeitamente  natural  e  tão  perfeitamente 
humano  a  seducção  e  o  abandono  da  pobre  freira,  como  a 
inconfidência,  a  revelação  das  suas  cartas,  por  parte  de  um 
homem  novo,  estróina,  pouco  intelligente,  sahreur  de  pro- 
fissão e  educação,  creado  nos  costumes  e  na  moral  desabu- 
sada da  aventura  e  da  vida  guerreira. 

Episódios  como  o  que  deu  causa  ás  Cartas,  não  deixaram 
ainda  de  ser  frequentes  em  tempos  de  guerra,  e  n'ellas  mes- 
mas se  encontra  um  traço  bem  mais  naturalista  do  que  Io- 
das as  subtilezas  dos  commentadores,  quando  a  pobre  re- 
ligiosa alludindo  á  pressa  com  que  deseja  partir  o  ciliciai 
francez  que  será  portador  d'uma  das  suas  cartas,  diz  que 
talvez  elle  deixe  também  «n'este  paiz,  alguma  mnlher  que 
o  amasse.» 

Censura  asperamente  o  sr.  Beauvois,  um  membro  da 


79 


Academia  das  Inscripções  e  Lettras,  o  sr.  Monmarqué,  por 
este  ter  imaginado  que  o  próprio  Chamilly  publicara  as 
cartas. 

Pois  até  certo  ponto,  e  sem  dar-mos  ao  facto  uma  grande 
importância,  o  que  parece  realmente  mais  natural  é  que 
essa  publicação  se  não  fizesse,  e  que  as  cartas  não  circu- 
lassem em  copias,  e  depois  impressas,  sem  auctorisação, 
sem  conhecimento  de  Chamilly,  que  voltava  de  Cândia  pre- 
cisamente alguns  dias  depois  de  se  ter  coneluido  a  impres- 
são da  primeira  edição,  á  qual  seguia  de  perto  a  publica- 
ção das  primeiras  Respostas . . . 

Voltemos  porém  á  edição  de  Delance,  no  fim  do  século 
passado. 

Esgotada  rapidamente,  como  succedera  ás  anteriores, 
Delance  reproduzia-a  em  1805  e  1807,  ampliando  o  estudo 
critico  de  Saint-Léger,  com  algumas  notas  de  Barbier,  o 
investigador  bibliothecario  do  conselho  de  estado. 

Manifestamente  o  êxito  das  Cartas  pòrtuguezas  não  es- 
friara. 

A  edição  de  1806,  analysada  pelo  Journal  de  VEmpire, 
e  da  qual  se  fizera  uma  tiragem  especial  de  luxo,  esgotou- 
se  mais  rapidamente  ainda  do  que  a  anterior. 

Embora  a  epocha  parecesse  pouco  asada  a  recreações 
litterarias,  e  particularmente  a  este  género  de  leitura,  Por 
tugal  e  a  Hespanha  voltavam  novamente  a  occupar  as  alten- 
ções  geraes,  e  este  facto  favorecia  naturalmente  aquelle 
êxito. 

Deu-se  então  um  pequeno  incidente  que  deveria  estimu- 
lar a  historia  critica  das  Cartas  á  resolução  de  um  problema 
novo,  e  que  naturalmente  nos  conduz  á  questão  do  nome  de 
quem  as  escreveu. 

— «Num  cataloa;o  de  livros  de  M.  D.  L.  M.  1808»  — 


80 


diz  A.  Barbier,  na  sua  magnifica  obra,  verdadeiro  monu 
mento  de  investigação  erudita  ^, —  «o  auctor  das  Cartas por- 
twjuezas  é  designado  sob  o  nome  de  M.""  de  Pédégache. 
Este  nome  será  o  do  auctor  das  sete  cartas  dadas  como  se- 
gunda parte  desde  1669?» 

A  indicação  não  parece  ter  sido  devidamente  verificada; 
não  se  ficou  sabendo  quaes  as  Cartas  a  que  ella  se  referia, 
mas  ninguém  a  applicou,  também,  ás  cinco  cartas  da  reli- 
giosa, nem  levantou  a  menor  suspeita  relativamente  a  es- 
tas, cuja  tradição  corrente  ia  dentro  em  pouco  receber  uma 
confirmação  nova 

Pédégache  não  é  um  nome  inteiramente  desconbecido 
em  Portugal. 

Parece  ter  sido  o  de  uma  familia  de  origem  suissa  que 
veiu  estabelecer-se  aqui. 

D^essa  familia  o  único  membro  conhecido  é  Miguel  Ti- 
bério Pédégache  Brandão  Ivo,  que  se  julga  ter  nascido  em 
\  730,  e  era  coronel  da  2/  linha  de  infanteria  de  Elvas,  em 
1791,  morrendo  em  Setúbal  em  1793  ou  1794. 

Publicou  em  1756,  sob  as  iniciaes  M.  T.  P.,  uma  ^Nova 
e  fiel  relação  do  terremoto  de  Lisboa^,  e  em  1791  a  (íArte 
de  guerra  de  Frederico  II  o  grande  j>,  em  verso  portuguez. 

Associado  com  um  francez,  o  seu  nome  appareee-nos 
também  n''uma  obra  publicada  em  Paris  e  bastante  conhe- 
cida. É  no  Recueil  des  plus  belles  ruines  causées  par  le  feu 
du  {"  novembre  de  1755.  Dessiné  siir  les  lieuxpar  MM.  Pa- 
ris et  Pédégache,  et  grave  à  Paris  par  Jac.  Ph.  leBas,pré- 
mier  graveur  du  cabinet  du  roy,  en  1757. 


'  Dictionaire  des  ouvrages  anonymes  par  Ant.  Alex.  BarJjier. 
3.»  ed.  &  Paris,  1874. 


81 


Prefaciou,  além  d'isso,  a  obra  de  Quita. 

Seria  a  mãe,  ou  alguma  parenta  d'elle,  aquella  M.""  de 
Pédégache  ? 

Lembrar- se-ha  o  leitor  de  que  dissemos  que  hesitávamos 
em  considerar  como  inteiramente  apocryphas  as  sete  car- 
tas de  uma  femme  du  monde  de  Lisboa,  reunidas  ás  da  re- 
ligiosa portugueza  em  varias  edições. 

Não  nos  surprehendera  que  a  i/.""  Pédégache  do  catalogo 
de  1808  nos  apparecesse  um  dia  como  sendo  realmente 
aquella  femme  du  monde  da  2.'  parte  das  Cartas portiigiie- 
zas  de  Barbin. 


X 


Quem  era,  ou  como  se  chamava,  porém,  a  religiosa  do 
Alemtejo  que  escrevera  as  cinco  primeiras  cartas? 

Marianna,  era  o  único  nome  que  essas  cartas  deimn- 
ciavam,  nome  muito  usado  em  Portugal,  e  que  seria  fácil 
encontrar,  repetidíssimo,  na  população  conventual  da  epo- 
cha. 

Certamente  as  Cartas  foram  na  successão  das  suas  pri- 
meiras edições  e  do  seu  ruidoso  êxito  conhecidas  em  Por- 
tugal ou  por  muitos  portuguezes. 

Sem  querermos  antecipar  certas  indicações,  observare- 
mos que,  além  de  outras  e  fáceis  provas  da  considerável 
leitura  de  livros  francezes  em  Portugal,  n'aquelle  tempo, 
quem  tiver  tido  occasião  de  conhecer  as  nossas  mais  anti- 
gas bihliothecas.  publicas  e  particulares  terá  verificado  que 

F.  6 


82 


já  então  nos  interessava  vivamente  o  movimento  litterario 
d'aquelle  paiz. 

Era  considerável  o  numero  de  compatriotas  nossos  que 
viviam  em  França  relacionados  com  os  melhores  círculos 
da  sociedade  polida  e  litterata  d'aquelle  paiz,  e  postoque  o 
episodio  dos  amores  de  uma  freira  não  fosse,  aqui,  como 
em  parte  alguma,  um  facto  tão  extraordinário  e  excepcio- 
nal,—  em  que  pese  ao  sr.  Beauvois — ,  que  despertasse  sin- 
gular interesse,  mormente  em  epocha  tão  agitada  por  gran- 
des e  tempestuosos  movimentos,  —  fácil  teria  sido,  real- 
mente, que  o  ruido  das  Cartas  movesse  á  curiosidade  os 
conterrâneos  da  auctora  d'ellas. 

Seria  pois  natural  que  se  quizesse  deduzir  contra  a  sua 
authenticidade  um  poderoso  argumento  do  silencio  dos  es- 
criptos  portuguezes  do  século  xvn,  e  ainda  do  século  xvui, 
a  tal  respeito,  e  alguma  vez  se  tem  ensaiado  realmente  esse 
argumento. 

Tem-se  notado,  por  exemplo,  que  Barbosa  Machado  não 
cite,  sequer,  as  Cartas,  na  sua  grande  Bibliotheca. 

Mas  em  primeiro  logar  ha  uma  infinidade  de  publicações 
e  de  auctores  que  Machado  não  conheceu  e  não  cita,  e  de- 
pois, admittindo  que  elle  conhecesse  as  Cartas,  e,  o  que  é  já 
bem  diílieil  de  admittir^  que,  conhecendo-as,  se  permittisse 
cital-as,  quando  a  Inquisição  e  a  Censura  não  eram  positi- 
vamente uma  lenda, — deve  considerar-se  que  o  livro  de 
Barbin  não  era  uma  publicação  portugueza  e  não  entrava 
no  molde  da  Bibliotheca  Luzitana. 

Estamos  persuadidos  que  Machado  conheceu  as  Cartas 
por  alguma  das  suas  numerosas  edições. 

Se  as  citasse,  teria  sido  para  refusar  a  authenticidade 
d'ellas,  para  contestar  que  tivesse  havido  uma  Soror  Ma- 
rianna^  portugueza,  que  as  tivesse  escripto. 


83 


Poderia  fazel-o? 

A  sua  discrição  parece-nos  bem  diversamente  significa- 
tiva, e  temos  d'ella,  no  nosso  tempo,  prevenção  e  exemplo... 

Como  nos  parece  por  egual  contraproducente  o  argu- 
mento que  se  pretenda  tirar  contra  as  Cartas,  do  prolon- 
gado silencio  dos  escriptores  portuguezes  dos  dois  últimos 
séculos. 

Se  a  tradição  ou  se  a  attribuição  do  livro  de  Barbin  fosse 
falsa,  os  próprios  sentimentos  dominantes,  então,  na  socie- 
dade portugueza,  e  o  prestigio  e  o  interesse  das  instituições 
religiosas  em  Portugal,  se  insurgiriam  protestando  contra 
a  mystificação  odiosa  que  se  lançava  sobre  uma  religiosa 
d'este  paiz. 

Teria  sido  tão  fácil  desmascarar  a  calumnia ! . . . 

Echoara  tão  alto  e  tão  longe  o  escândalo ! 

O  silencio,  por  assim  dizer,  systematico,  parece  antes  re- 
velar, por  um  lado,  a  impossibilidade  ou  o  receio  da  contro- 
vérsia e  da  investigação,  e,  por  outro,  o  empenho  em  calar 
esse  escândalo,  que  deveria  mortificar  profundamente  uma 
familia  poderosa  e  estimada. 

Os  próprios  chronistas  religiosos  que  se  referem  ao  ce- 
lebre convento  da  pobre  freira  das  Cartas  e  que  se  espraiam 
em  narrativas  miúdas  e  pueris  acerca  de  muitas  compa- 
nheiras d'ella,  calaram-lhe  o  nome,  apesar  da  expiação  a 
(jue  ella  se  entregou  e  da  fama  de  predestinada  em  que 
ella  morreu,  segundo  os  documentos  que  podemos  desco- 
brir n'esse  mesmo  convento. 

Mas  .existira  ella,  realmente?  Quem  era?  Como  se  cha- 
mava ? 

Era  esta  a  interrogação  que  subsistia  na  tradição  e  na 
critica  do  livro  de  Barbin,  quando  Brunet  publicou  o  seu 
monumental  Diccionario^  registando  n'elle  as  Cartas,  sem 

6# 


84 


poder  accrescentar  informação  ou  esclarecimento  novo  a 
respeito  d'ellas. 

Em  5  de  janeiro  de  1810  apparecia  no  Journal  de  VEm- 
pire  um  folhetim,  intitulado  Variétés,  e  firmado  por  um 
omega,  dando  a  noticia  critica  da  obra  de  Brunet. 

Alludindo  ás  Cartas,  o  critico  dizia  o  seguinte : 

«A  primeira  edição  das  Cartas  Portugiiezas  é  de  1669, 
como  diz  o  sr.  Brunet.  Mas  elle  indica  dois  volumes  e  a 
obra  é  só  em  um.  Toda  a  gente  sabe  hoje  que  estas  Cartas 
cheias  de  natural  e  de  paixão  foram  escriptas  ao  Sr.  de  Cha- 
milly  por  uma  religiosa  portugueza  e  que  a  traducção  é  de 
Guilleragues  ou  de  Subligny.  Mas  os  bibliographos  não  des- 
cobriram ainda  o  nome  da  religiosa.  Posso  dizer-lhes:  no 
meu  exemplar  da  edição  de  1669  ha  esta  nota  n'umalettra 
que  me  é  desconhecida:  —  «A  religiosa  que  escreveu  estas 
cartas  chamava-se  Marianna  Alcof orada,  religiosa  em  Beja, 
entre  a  Extremadura  e  a  Andaluzia.  O  cavalleiro  a  quem 
estas  cartas  foram  escriptas  era  o  conde  de  Chamilly,  cha- 
mado então  conde  de  Saint-Léger  .y)  Recentemente  uma  edi- 
ção prematura  revelou-nos  as  fraquezas  de  uma  mulher 
que  muitos,  de  entre  nós,  poderam  ver,  conhecer,  estimar. 
Ninguém  mais  do  que  eu  censurou  este  esquecimento  de 
todas  as  conveniências.  Mas  140  annos  passados  desde  que 
as  Cartas  Portuguezas  foram  escriptas,  tornam  a  minha 
indiscrição  muito  desculpável.  Uma  historia  tão  velha  já 
não  offerece  pasto  á  maledicência  nem  á  malicia.» 

Diversos  commentadores  teem  copiado,  uns  dos  outros, 
incompletamente,  este  trecho,  attribuindo-o  alguns  jio  Jour- 
nal des  Savants,  cuja  publicação,  aliás,  parece  estar  inter- 
rompida entre  1792  e  1816 1. 


Como  em  Portugal  não  encontrei  o  Jcurnal  de  VEmpire, 


8o 


É  de  Boissonade,  e  no  catalogo  dos  seus  livros  foi  repro- 
duzida a  nota  manuscripta  a  que  elle  se  refere. 

Boissonade  conhecia,  ou  veiu  a  conhecer,  o  portuguez, 
pois  que  publicou  em  1828  a  traducção  do  Hyssope^  de  An- 
tónio Diniz,  traducção  reproduzida  em  1867  sob  a  revisão 
de  Ferdinand  Dénis. 

A  indicação  encontrada  e  revelada  por  elle  era  clara  e 
precisa. 

Parecera  que  devera  ser  fácil  a  verificação  na  parte  em 
que  se  referia  á  existência  ou  ao  nome  da  freira  portugueza, 

Gomprehende-se  que  os  acontecimentos  políticos  de  que 
então  foi,  e  por  largo  tempo  continuou  a  ser  theatro  o  nosso 
paiz,  fizessem  addiar  as  investigações  necessárias,  além  de 
que  é  fácil  perceber  qne  a  observação  de  Boissonade  rela- 
tivamente ao  caracter  inoffensivo  e  por  assim  dizer  archeo- 
logico  da  sua  indiscrição,  não  era  rigorosamente  applicavel 
na  pátria  da  religiosa,  onde  existia  ainda  a  familia  d'esta. 

Sousa  Botelho,  apesar  de  toda  a  sua  paixão  pelas  Cartas 
e  de  censurar  justamente  os  escriptores  portuguezes  pela 
ingrata  indifferença  que  mostravam  por  ellas,  não  pôde  le- 
var as  suas  investigações  até  authenticar  positivamente  a 
nota  do  exemplar  de  Boissonade.  As  suas  investigações  li- 
mitaram-se  á  grande  obra  de  Caetano  de  Sousa,  a  Historia 
Genealógica  da  Casa  Real,  onde  lhe  foi  fácil,  um  pouco  hy- 
potheticamente,  ainda  assim,  encontrar  uma  familia  Alco- 


d'aquelle  anno,  e  não  me  contentava  com  a  copia  de  copia  do 
trecho  de  Boissonade,  solicitei-o,  e  obtive-o  directamente  tran- 
scripto,  do  distincto  escriptor  e  meu  amigo,  o  sr.  Marianno 
Pina,  que  reside  em  Paris,  a  cuja  obsequiosa  amabilidade  devo 
lambem  a  copia  exacta  do  prefacio  da  t dição  inicial  de  Bar- 
bin  e  o  exame  directo  d'essa  edição. 


86 


forado,  estabelecida  do  lado  do  Alemtejo,  pela  correlação 
d'ella  com  o  trágico  episodio  de  Villa  Viçosa,  em  1512: — 
o  assassínio  da  duqueza  de  Bragança  e  do  pagem  Alcofo- 
rado^ pelo  duque  D.  Jayme*' 

«Supponho  pois, — diz  elle, — muito  provável  que  esta 
familia  existisse  em  1663,  no  Alemtejo,  e  que  uma  filha 
d*esta  casa  fosse  religiosa  n'um  dos  conventos  de  Beja.  s 

De  restOj  n'outros  pontos  do  paiz  appareciam  famílias  do 
mesmo  nome,  e  elle  cita  uma  entre  Douro  e  Minho,  que 
erradamente  suppõe  ser  um  ramo  dos  seus  Alcoforados  do 
Alemtejo.  E  n'isto  se  ficou  por  largo  tempo. 


XI 


Deficientes,  insignificantes,  como  eram  estas  indicações, 
a  critica  e  o  publico  acceitaram-n'as,  á  mingua  de  outras, 
como  prova  da  verdade  da  nota  encontrada  por  Boissonade, 
tão  fortemente  concorriam  todas  as  circumstancias  para  fa- 
zer acreditar  na  authenticidade  original  das  Cartas. 

Mal  poderá  realmente  suppor-se  que  fosse  uma  mystifica- 
ção  apparecer  sobre  um  exemplar  bibliographico  de  1669, 
em  francez  e  em  Paris,  tão  precisamente  determinado  o  nome 
e  a  terra  da  freira,  nome  que  até  na  concordância  feminina, 
tão  portugueza  e  antigamente  tão  vulgar,  do  elemento  pa- 
tronímico, parecia  attestar  a  verdade  da  indicação. 

Que  interesse  poderia  haver  em  inventar  esta,  além  de 


1  A  Senhora  Duqueza,  por  L.  C. — Lisboa,  1889. 


87 


tudo,  não  a  destinando  ao  publico,  ou  quando  fora  tão  fácil 
contraproval-a,  averiguando  se  existira  realmente  na  pe- 
quena cidade  de  Beja  uma  freira  d'aquelle  nome  nos  pou- 
cos annos  que  Chamilly  passara  em  Portugal? 

Cumpria^  comtudo,  á  critica  portugueza  completar  n'este 
sentido,  ao  menos,  o  trabalho  dos  escriptores  e  dos  editores 
estrangeiros  que  durante  dois  séculos  fizeram  o  renome  e  a 
consagração  litteraria  das  Cartas,  mantendo-lhes  honrada- 
mente a  attribuição  da  sua  origem  portugueza. 

Não  era  uma  questão  de  patriotismo,  e  que  o  fosse,  con- 
stituiria já  uma  questão  de  dever  e  de  bonra  para  a  littera- 
tura  da  nação. 

Francamente,  umas  certas  tendências  petulantes  para 
apoucar  ou  para  desdenhar  a  inspiração  e  o  sentimenio  da 
solidariedade  e  da  prosápia  nacional,  no  estudo  e  no  traba- 
lho litterario,  achamol-as  não  apenas  inscientificas,  mas  es- 
túpidas. 

Basofiando  de  emancipar  a  critica,  mutilaram-n'a. 

Vangloriando-se  de  desempoeirar  os  espíritos,  desnor- 
team-n'os. 

D  ando -se  ares  de  refazer  a  humanidade  e  a  historia,  fal- 
seara ambas. 

Podemos  não  concordar^  e  dissemos  já  que  não  concor- 
dávamos, inteiramente,  com  a  opinião  demasiado  exclusi- 
vista do  sr.  Theophilo  Braga,  quando  diz  que  as  Cartas  são 
o  único  producto  litterario  verdadeiramente  bello  e  sentido 
do  nosso  século  xvii. 

Mas  sem  ellas,  esse  século  fica  realmente  truncado  na 
historia  litteraria  portugueza. 

Falta  aquelle  nolino,  vibrante,  indisciplinado,  que  nos 
traz  como  que  uma  lembrança  consoladora  e  amiga  do  (jue 
é  natural,  do  que  é  espontâneo,  do  que  é  ingénua  e  neces- 


88 


sariamente  verdadeiro  e  eterno,  ao  meio  das  pompas  e  dos 
refinamentos  artisticos,  magistraes,  da  grande  orchestra 
dos  seiscentistas. 

A  parte  tudo  isto,  accusada  e  aílirmada  a  origem  portu- 
gueza  das  Cartas^  dada  a  consagração  geral  do  seu  valor 
esthetico  e  litterario,  relacionada  a  sua  origem  com  um  pe- 
ríodo interessantíssimo  da  nossa  historia,  apontado  até  o 
nome  portuguez  da  sua  auctora,  nome  que  inconsciente- 
mente conquistara  assim  um  logar  verdadeiramente  glo- 
rioso na  historia  das  grandes  manifestações  e  das  grandes 
obras  da  alma  humana,  é  claro  que  a  critica  tinha  o  direito 
de  esperar  de  nós  uma  cooperação  mais  efficaz  ou  menos 
indolente  e  tarda,  do  que  realmente  encontrou  nos  nossos 
litteratos  e  investigadores. 

,  Razão  tinha  Sousa  Botelho  em  estranhar  que  tantos  an- 
nos  depois  da  publicação  das  Cartas,  traduzidas  em  fran- 
cez,  nenhum  escriptor  portuguez  tivesse  tentado  restituil-as 
á  lingua  nativa  e  revindical-as,  assim,  «como  propriedade 
nacional.» 

Quando  elle  o  tentou,  com  êxito,  que  ainda  não  foi  ex- 
cedido, e  com  uma  dedicação  que  infelizmente  não  logrou 
sequer  ser  imitada,  já  Francisco  Manuel  as  traduzira. 

Por  desgraça,  nem  um  nem  outro  poderam  lançar-se 
nas  investigações,  que  então  poderiam  ser  bem  mais  effi- 
cazes  do  que  hoje,  porque  o  vandalismo  que  deixou  des- 
truir e  dispersar  em  todo  este  paiz  tantos  documentos  e 
tantas  memorias  preciosas  do  passado,  pode  dizer-se  que 
não  começara  ainda  a  sua  obra  brutal. 

Muitos  annos  depois,  Lopes  de  Mendonça  começa  a  tra- 
ducção  das  Cartas. 

A  fina  sensibilidade  do  seu  grande  talento  de  artista  dá-lhe 
a  convicção  da  originalidade  feminina  e  espontânea  da  obra. 


89 


Mas  Lopes  de  Mendonça  não  era,  e  não  poude  ser,  um 
investigador,  um  estudioso. 

A  seguinte  observação  d'elle, — mais  sentimental  do  que 
critica, —  mostra  claramente  que  para  o  seu  temperamento 
e  para  a  sua  educação  litteraria  a  questão  de  saber  quem 
escrevera  as  Cartas,  era,  mais  do  que  indifferente,  impor- 
tuna. 

Bem  se  importava  elle  com  isso ! 

Comoviam-n'o,  encantavam-n'o  aquellas  paginas  em  que 
chorava  uma  paixão  profunda  e  ardente.  Por  isso  as  ama- 
va, por  isso  somente  as  vertia. 

—  líSeja  como  fôr,»  —  diz  elle  ingenuamente,  —  seria 
quasi  impossível  verificar  a  authenticidade  d'estas  conje- 
cturas: o  homem  que  soube  merecer  tamanho  aíTecto,  ce- 
dendo á  vaidade  de  publicar  as  cartas  que  recebera,  calou 
o  nome  da  pessoa  que  as  assignava.  Assim  deviam  fazer  os 
hihliomanos  e  eruditos:  a  curiosidade  litteraria  tem  limites; 
a  mulher,  mesmo  depois  de  morta,  deve  ser  sagrada  para 
o  homem.  As  fraquezas  que  possa  haver  commettido,  repa- 
ra-as  ás  vezes  com  longos  dias  de  amargura  e  soffrimento ; 
as  lagrimas  do  arrependimento  lavam  as  culpas  e  debilida- 
des do  coração;  resta-lhe,  apenas,  depois,  essa  sensibilidade 
que  a  engrandece,  esses  aflfectos  que  a  tornam  sublime, 
essa  doçura  celeste  com  que  nos  sabe  consolar  nos  transes 
tormentosos  da  vida.» 

Quanta  indolência  e  quanta  incapacidade  scientifica  não 
teem  julgado  auctorisar-se  com  esta  sentimentalidade  ro- 
mântica, doentia,  que  em  Lopes  de  Mendonça  era,  por  di- 
zer assim,  ingenita! .  .  . 

Ultimamente,  porém,  alguns  escriplores  portuguezes  ten- 
taram resgatar  a  longa  iiicrcia  da  critica  nacional  e  colher 
directa  ou  indirectamente  em  Beja,  no  berço  d'aquella  pe- 


90 


quena  historia  que  continuava  a  echoar  no  mundo,  infor- 
mações ou  documentos  que  inteiramente  a  corroborassem 
ou,  de  vez,  a  desmentissem. 

Quando  muiio  encontravam-se  com  o  reflexo  da  tradição 
litteraria,  devido,  em  grande  parte,  naturalmente,  á  vul- 
garisação  das  indicações  francezas. 

Havia,  porém,  devemos  dizel-o,  n'este  mesmo  reflexo 
um  elemento,  um  raio  de  luz,  lenue,  vacilante,  que  tem 
passado  geralmente  desapercebido,  e  que  não  deriva  posi- 
tivamente da  tradição  litteraria,  ainda  depois  da  revelação 
de  Boissonade. 

Esta,  como  vimos,  indica,  apenas,  o  nome  da  cidade  em 
que  vivia  a  religiosa. 

Ora  em  Beja  houve,  até  ha  pouco,  três  conventos  de  frei- 
ras, dois  dos  quaes,  de  freiras  franciscanas. 

Em  todos  elles  existiram  religiosas  com  o  nome  de  Ma- 
rianna,  nome  vulgarissimo  em  Portugal,  como  é  sabido. 
De  uma  Alcoforado, — D.  Leonor  Alcoforado, — freira  no 
convento  da  Esperança,  no  século  xvn,  existia  vestígios  na 
bibliotheca  de  Evora^  não  falando  já  que  em  qualquer  no- 
biliário, se  encontrariam  até,  em  titulo  de  Alcoforados,  frei- 
ras Marianas. 

D'onde  se  deriva^  pois,  indicar-se  na  tradição  oral  o  con- 
vento da  Conceição,  e  não  outro,  como  aquelle  a  que  per- 
tencera a  religiosa  das  Cartas,  quando  exactamente  da  exis- 
tência de  Alcoforadas,  n'este,  é  que  parecia  perdida  toda  a 
tradição? 

E  nem  assim,  nem  com  esta  espécie  de  indicação  restri- 
ctiva,  persistente,  se  conseguiu  adiantar  a  investigação. 

Mais  ainda. 

Em  Beja  existia  um  morgado  dos  Alcoforados,  um  solar 
d'estes,  e  uma  propriedade  rural  conhecida  por  este  nome. 


91 


O  ultimo  representante  d'essa  casa  importante  e  antiga 
do  Alemtejo,— Alexandre  Lobo  Alcoforado, — era  um  es- 
criptor  que  morreu  lia  pouco,  na  pobreza  e  no  hospital,  re- 
gressando de  Paris  onde  fora,  e  d'onde  sahiu,  cremos,  no 
tempo  da  guerra  franco-allemã. 

Estão  vivos  muitos  homens  distinctos  que  foram  seus 
amigos  e  que  o  descrevem  como  um  homem  de  talento,  il- 
lustrado,  um  pouco  excêntrico  e  triste. 

Ah,  se  Sousa  Botelho  podesse  ter  sabido  tudo  isto,  o  nosso 
trabalho  não  teria  hoje  razão  de  ser. 

Gomtudo,  a  existência  de  uma  Marianna  Alcoforado  en- 
tre 1663  e  1667,  n'um  convento  de  Beja,  continuou  a  ser 
apenas  uma  indicação  vaga  e  anonyma,  lançada  n'um  exem- 
plar do  livro  de  Barbin,  de  1669,  que  felizmente  viera  pa 
rar  ás  mãos  de  um  académico  francez. 

Os  que  procuravam  colher,  das  auctoridades  e  dos  raros 
estudiosos  de  Beja,  informações,  documentos,  quaesquer 
esclarecimentos  precisos,  obtinham  apenas  esta  resposta 
persistente,  implacável :  —  «Nada  existe,  nada  se  encontra ! » 

—  e  contentavam-se  com  isto,  ao  que  parece! 

Foi  o  que  conseguiram  Felner  e  Jorumenha,  dois  expe- 
mentados  investigadores. 

Em  relação  a  Jorumenha,  temos  hoje  razão  para  suppor, 

—  para  acreditar  mesmo, —  que  se  coisa  alguma  colheu  o 
publico  das  suas  investigaçães,  fura  porque  estas,  feitas 
n'um  piedoso  intento, — egual  ao  do  sr.  Beauvois, —  de  des 
truir  e  calar,  de  vez,  a  lenda,  o  levaram  muito  próximo  da 
irrecusável  verdade  d'ella. 

Quem  SC  lembrar  das  idéas  do  dedicado  biographo  de  Ca- 
mões, pode  bem  imaginar  como  elle,  costumado  a  arrostar 
com  as  investigações  mais  laboriosas  e  diííiceis,  não  teria 
recuado  no  devoto  empenho  de  provar  que  nunca  existira 


92 


a  pobre  Marianna  do  exemplar  de  Boissonade,  se  a  não  ti- 
vesse encontrado ...  no  próprio  archivo  de  familia ! 

O  sr.  Pinheiro  Chagas,  apesar  de  secundado  por  um  es- 
clarecido ecclesiastico,  altamente  coUocado  n'aquella  dio- 
cese, que  também  não  poude  esclarecemos  melhor,  o  dr. 
Boavida,  escrevia  em  1874 : 

— «O  auctor  d'este  livro  esteve  ha  pouco  tempo  em  Beja 
e  procurou  obter  alguns  esclarecimentos  a  respeito  d'esta 
apaixonada  religiosa.  Nada  poude  alcançar.  Nám  no  livro 
das  profissões,  nem  no  dos  óbitos  se  encontra  este  nome,  o 
que  não  admira  porque  elies  sobem  apenas  ao  fim  do  sé- 
culo XVII.  Mariana  Alcoforado  não  nos  legou  de  si  senão  a 
revelação  do  seu  apaixonado  talento  e  do  seu  dilacerante 
amor.  Tendo  visitado  o  convento  da  Conceição  fui  condu- 
zido pela  digna  e  respeitada  abbadessa  d'esse  mosteiro  á 
janella  conhecida  pelo  nome  de  janella  de  Mertola,  único 
vestigio  que  subsiste  ainda  d'essa  tradição  apaixonada. 
D'essa  janella,  diz-se,  contemplava  a  triste  religiosa  a  es- 
trada por  onde  o  amante  partira  para  nunca  mais  voltar. » 

O  illustre  escriptor,  nosso  amigo,  foi  manifestamente  il- 
ludido,  não  por  má  fé,  é  claro,  mas  por  deficiência  de  in- 
vestigação das  pessoas  que  o  informaram,  deficiência,  além 
de  tudo,  explicável  por  certas  prevenções  e  por  certas  pre- 
occupaçães  perfeitamente  naturaes,  nas  quaes  também  nós 
fomos  topar,  e  que  por  egual  nos  illudiriam  se  não  tivésse- 
mos teimado  em  vencei -as. 

O  livro  em  que  devia  estar  a  profissão  da  religiosa  des- 
appareceu.  Como?  Quando?  Onde  pára?  ^ 


1  Houve  em  Beja,  ha  alguns  annos,  um  padre  Mira,  collee- 
cionador  curioso  de  coisas  e  memorias  da  terra.  Todos  me  in- 
dicavam a  sua  bibliotheca,  ou  o  seu  esnobo  litterario,  como 


93 


Mas  n'um  livro  de  óbitos  do  convento  existe  o  termo  do 
d'ella,  e  o  seu  nome  encontra-se  ainda  n'outros  documen- 
tos, como  veremos. 

Uma  d*aquellas  preoccupações  a  que  alludimos  era  ma- 
nifestamente a  de  que  a  pobre  freira  não  teria  vivido  muito 
além  da  sua  paixão. 

Uma  preoccupação  um  tanto  romântica,  muito  vulgar 
aliás,  apesar  do  quasi  constante  desmentido  da  historia,  em 
casos  semelhantes! .... 

Publicando,  em  1876,  o  Curso  de  Litteratura  Portugue- 
za,  em  continuação  ao  de  Andrade  Ferreira,  o  sr.  Camillo 
Castello  BrancO;,  annotando  a  sua  duvida,  já  discutida,  so- 
bre a  aulhenticidade  das  Cartas,  escrevia: 

—  «Não  duvidamos,  todavia,  nem  dos  amores,  nem  da 
existência  da  religiosa  Marinna  Alcoforado  no  convento  da 
Conceição  de  Beja,  pelas  noticias  que  temos  d'ella  e  de  sua 
familia,  conforme  ás  genealogias  ordenadas  por  D.  António 
de  Aguilar  e  José  Freire  de  Montarroio  Mascarenhas,  no 
artigo :  Alço  for  ados  de  Beja. » 

E  dava  resumidamente  essas  noticias,  que,  embora  em 
mais  de  um  ponto  perfeitamente  inexactas,  citavam  com- 
ludo  duasfdhas  de  Francisco  da  Costa  Alcoforado, —  «D.  Pe- 
regrina e  D.  Marianna,  freiras  na  Conceição  de  Beja.'^ 

A  suspeita  do  grande  escriptor  reduz-se  então,  depois 
d'esta  descoberta,  a  que  «tal  freira,  amando  talvez  muito  o 


reposituiio  que  muito  convinha  consultar.  Mas  esse  repositó- 
rio conserva-se  avaramente  vedado  ás  curiosidades  indiscre- 
tas dos  estudiosos.  Como  diz  o  povo :  ha  gente  que  não  faz  e 
que  não  deixa  fazer.  Na  cavalheirosa  e  intelligente  amabilidade 
que  em  Beja  patrocinou  a  minha  investigação,  houve  esta  ex- 
cepção apenas. 


94 


conde,  não  escreveu  taes  cartas,  e  apenas  lhe  deu  o  amor 
e  o  nome  para  a  vaidosa  ficção.» 

Gomo?  Porque? 

Dêmos  já  as  razões  d'essa  suspeita  e  as  que  se  nos  afi- 
gura que  inteiramente  a  contradizem.  Comtudo  a  desco- 
berta de  Camillo  era  tanto  mais  importante  quanto  na  mul- 
tidão de  manuscriptos  genealógicos,  existentes  e  conheci- 
dos em  Portugal,  que  podemos  compulsar,  como  que  sys- 
tematicamenle  brilham  pela  ausência  os  Alcoforados  de 
Beja,  do  manuscripto  citado,  e  n'este  mesmo  se  torna  sus- 
peita a  brevidade  desdenhosa  da  referencia  aos  únicos  Al- 
coforados que  sustentaram  o  nome  como  singular  affirma- 
ção  de  nobreza. 

De  certo  modo  é  aquella  indicação  o  primeiro  passo  para 
a  confirmação  da  nota  de  Boissonade  e  da  velha  tradição 
da  origem  das  Cartas. 

Mas  nenhum  passo  novo  se  avançou  desde  1876. 


XII 


Temos  exposto  e  estudado  o  que  podemos  chamar  o  es- 
tado da  questão  das  Cartas  portuguezas,  ou  mais  propria- 
mente das  Cartas  da  religiosa  portugueza,  com  um  desen- 
volvimento prolixo  e  miúdo  que  somos  os  primeiros  a  reco- 
nhecer como  mais  de  uma  vez  impertinente. 

Observámos  já  que  para  isto  tinha  de  concorrer  necessa- 
riamente a  situação  em  que  o  problema  se  encontrava,  ain- 
da, na  historia  e  na  critica  litteraria  nacional,  as  mais  na- 
turalmente interessadas  em  resolvel-o. 


Não  declinamos,  porém,  a  parte  que  deva  averbar-se  á 
profunda  sympathia  que  nos  inspiram  as  Cartas,  e  ao  irre- 
sistível e  persistente  encanto  que  sempre  tem  exercido  so- 
bre nós  aquella  catastrophe  de  uma  alma  ingénua  e  ardente 
que  se  afunda  na  fria  obscuridade  das  coisas  sem  nome, 
deixando  na  historia  da  expressão  humana  o  rasto  fulgu- 
rante das  coisas  immortaes. 

Justamente  colloeada  a  par  de  Heloísa,  e  superior  a  Les- 
pinasse,  na  expressão  vibrante,  verdadeira,  genial,  da  pai- 
xão e  da  desgraça,  em  que  as  excede  a  ambas, — porque 
não  teve  as  consolações  intelleetuaes  da  primeira,  nem 
poude,  como  a  segunda,  refugiar-se  nas  gratas  recordações 
de  um  amor  que  só  a  morte  extinguira,  —  a  religiosa  por- 
tugueza,  glorificada  por  dois  séculos  de  admiração,  atra  vez 
de  tantas  evoluções  do  gosto  e  do  sentimento  artistico,  pa- 
receu-nos  sempre  accusar,  no  seu  prolongado  anonymo, 
um  desamor  injusto  ou  uma  vergonhosa  incúria  da  nossa 
critica  e  da  nossa  solidariedade  litteraria 

Mais  uma  vez  citaremos  o  sr.  Beauvois,  e  d'esta  ha  de 
ser,  apenas,  para  lhe  agradecer  o  seu  exemplo  ou  o  seu  es- 
timulo, rude  e  injusto  como  foi. 

Levou-o  longe,  mais  longe,  cremos,  do  que  deveria  es- 
perar-se  do  caracter  e  da  missão  de  historiador  e  de  critico, 
a  preoccupação  de  illibar  a  memoria  do  seu  heroe,  de  um 
incidente  que  exaggeradamente  suppo?  ser  uma  nódoa  que 
lhe  empanasse  o  nome  de  bravo  e  leal  soldado. 

Mas,  repetimol-o:  —  no  fundo  d'essa  tentativa  ha  um  sen- 
timento de  generosidade  e  de  justiça,  que  não  somente  nunca 
íica  mal,  mas  é  sempre  a  melhor  força  e  a  melhor  aucto- 
ridade  do  eseriptor  e  do  homem  de  sciencia. 

Pois  bem. 

Foi  exactamente  um  sentimento  egual  que  nos  moveu  ;i 


96 


rever  e  a  tentar  recompor  a  historia  das  Cartas,  lastimando 
que  outros  compatriotas  nossos  o  não  tenham  podido  fazer, 
(jue  bem  melhor  o  fariam,  de  certo. 

Foi  esse  sentimento  que  reagiu  em  nós,  irresistivelmente, 
quando,  parecendo  abandonar  o  illustre  critico  de  Beaune, 
se  achou  em  face  d' esta  apostrophe  odiosa  e  injusta,  com 
que  elle,  como  os  que  apedrejavam  a  Samaritana,  fere, 
cego  e  implacável,  a  doce  e  desolada  imagem  da  pobre  freira 
portugueza : 

—  «É  um  verdadeiro  allivio  para  os  seus  admiradores 
(de  Ghamilly)  o  constatar  que  elle  nada  teve  com  uma  fú- 
ria, uma  louca,  como  ella  justamente  se  appellida;  com  uma 
religiosa  que  tivesse  vivido  na  impenitencia,  sem  nunca  se 
emendar,  sem  luz  de  remorso,  mas  encarniçada  na  sua  pai- 
xão sacrílega;  com  uma  mulher,  emfim,  cujas  cartas  res- 
piram o  mais  perfeito  egoismo,  e  são  quasi  inteiramente 
cheias  de  censuras,  de  injurias,  de  ameaças,  de  sentimen- 
tos de  desespero,  de  transportes  de  ciúme:  Se  elle  as  leu, 
julgou-se  de  certo  feliz  de  não  ter  sido  o  objecto  de  um  amor 
tão  desmedido.  Graças  a  Deus,  elle  não  teve  de  subtrahir- 
se  ás  obsessões  de  tal  ménada,  nem  de  trahil-a,  elle,  a  quem 
não  pode  accusar-se  uma  perfídia,  uma  defecção,  uma  de- 
serção. Elle  não  entregou  á  publicidade  as  cartas  que  não 
lhe  foram  tal  dirigidas.  Não  teve  de  corar  de  uma  indelica- 
deza que  teria  maculado  a  sua  reputação  de  homem  o  mais 
bravo  e  o  mais  cheio  de  honra. .  . » 

Não,  sr.  Beauvois  I 

Esses  tristes  amores,  esse  banal  episodio  da  mocidade  do 
seu  heroe,  não  podem  ser  já  relegados  para  a  fabula;  hão 
de  continuar  na  liistoria,  e  o  nome  d'esse  heroe  continuará 
a  viver  n'ella,  mais  pela  paixão  da  pobre  senhora  seduzida 
e  abandonada,  do  que  pelo  morticínio  de  Grave,  ou  pelas 


97 


esquecidas  glorias  da  «arte  de  matar  methodicamente  os 
homens»,  na  phrase  de  Voltaire. 

Quem  se  lembrara  d'elle,  se  não  fossem  as  Cartas!. .. 

E  que  a  piedade  intransigente  e  feroz,  que  não  é  de  certo 
a  de  Christo  perdoando  á  «que  muito  amou»,  se  tranquil- 
lise  e  aplaque. 

Trinta  annos  rojou  a  alma  e  rasgou  as  carnes,  no  mys- 
tico  idiotismo  da  penitencia  claustral,  a  fúria,  a  ménada,  a 
louca  de  amor,  a  desventurada  seduzida  de  Beja,  emquanto 
o  seu  illustre  seductor  percorria  gloriosamente  a  vida,  co- 
berto de  honras  e  de  gordura. 

Duas  palavras  ainda. 

A  leitura  das  Cartas  e  o  estudo  da  tradição  que  as  acom- 
panha tinham-nos  dado  a  convicção  profunda,  a  ceiteza  mo- 
ral, da  sua  authenticidade,  muito  antes  que  podessemos  ten- 
tar a  verificação  directa. 

Na  tentativa  d'essa  verificação  não  fomos,  a  principio, 
mais  felizes  do  que  os  que  nos  haviam  precedido  em  egual 
empenho. 

Fomos  apenas  mais  teimosos,  talvez. 

Não  nos  desalentou  a  costumada  negativa  de  quaestjuer 
documentos  ou  de  quaesquer  subsidies  que  authenticassem 
a  indicação  do  exemplar  de  1669  encontrado  por  Boisso- 
nade. 

Gomprehendendo  a  necessidade  de  uma  investigação  di- 
recta, e  traçado  o  pequeno  plano  d'e]la,  por  maneira  que, 
tendo  de  ser  rápida,  podesse  ser  segura  e  decisiva,  acudiu- 
nos  a  dedicação  intelligente  e  activa  de  um  amigo,  o  nosso 
antigo  coUega  no  parlamento,  o  sr.  general  A.  da  Fonseca. 

A  cooperação  d'elle  e  á  de  um  velho  amigo  de  infância  e 
de  escola,  o  intelligentissimo  professor  padre  Júlio  Pereira 
da  Silva,  bem  como  á  inexcedivel  amabilidade  do  vigário 

F.  7 


98 


capitular,  sr.  Matta  Veiga,  da  respeitável  e  estimabilissima 
abbadessa  do  convento  da  Conceição,  madre  D.  Maria  Fe- 
lisarda  Mendes  Góes,  do  zeloso  secretario  da  camará,  sr. 
Palma,  e  de  outras  estimáveis  pessoas  de  Beja,  é  que  cer- 
tamente devemos  ter  podido  ser  mais  productiva  do  que  a 
de  outros  a  investigação  complementar  do  nosso  estudo, 
feita  em  três  dias,  apenas,  de  permanência  n'aquella  for- 
mosa e  histórica  povoação  ^ 

Em  relação  a  archivos,  a  documentos  históricos,  a  me- 
morias do  passado,  Beja  tem  soffrido  a  devastação  e  o  aban- 
dono desolador  em  que,  entre  nós,  a  cada  passo,  tropeça  o 
estudioso. 

O  que  a  guerra  e  as  discórdias  civis  esqueceram  ou  pou- 
param, encarregou-se  o  desleixo  e  a  inépcia  administrativa 
de  deixar  perder,  apodrecer,  dispersar. 

Apesar  d'isto,  existem  ainda  em  Beja  documentos  e  mo- 
numentos preciosos,  e  é  justo  dizer-se  que  a  dedicação  per- 
feitamente offieiosa  de  alguns  funccionarios  guarda  e  salva 
de  uma  completa  ruina  o  pouco  que  existe  já  no  género. 

Uma  provisão  régia  de  15  de  março  de  1815,  dirigida  á 
respectiva  Provedoria,  diz  «que  entre  as  crueldades  prati- 
cadas pello  Corpo  Francez  entrado  nessa  cidade  em  G  de 
junho  de  1808  fora  a  de  insendiarem  differentes  edifícios  e 
entre  elles  o  Cartório  dessa  Provedoria,  ficando  reduzidos 
a  Cinzas  os  Livros  do  Begisto  das  Ordens  e  de  outros  ob- 
jectos importantes  como  os  Livros  de  Arrecadação  da  Beal 


1  Convém  lembrar  que  dizíamos  isto  quando  fazíamos  a 
primeira  edição  (1888).  Depois,  não  somente  obtivemos, — e 
adeante  o  dizemos, — outras  indicações  preciosas,  mas  voltá- 
mos a  Beja  a  ampliar  e  rectificar  as  obtidas. 


99 


Fazenda,  os  dos  Bens  da  Coroa,  os  Tombos  e  todos  os  mais 
documentos  cora  que  o  decurso  de  muitos  séculos  enrique- 
cera o  mencionado  Cartório»,  etc. 

Relativamente  á  historia  do  magnifico  mosteiro  da  Con- 
ceição e  á  pobre  freira  das  Cartas,  com  difficuldade  se  en- 
contram ainda  alguns  vestígios  truncados  e  dispersos. 

O  caracter  da  epocha  em  que  succedeu  o  amoroso  episo- 
dio, e  em  que  elle  não  seria,  muito  provavelmente,  único, 
bem  como  a  situação  importante  e  influente  da  familia  a 
que  a  religiosa  pertencia,  bastaram,  naturalmente,  para 
que  o  escândalo  não  deixasse  rasto  fundo  e  nitido  em  do- 
cumentos que  ficassem  archivados. 

Ficou  e  morreu  no  pequeno  soalheiro  provinciano. 

Observámos  já  que  até  em  relação  ao  nome  da  religiosa 
os  documentos  impressos  que  se  referem  ao  convento  são 
inteiramente  mudos,  e  mais  de  uma  vez,  na  nossa  investi- 
gação, nos  pareceu  sentir  mão  desconhecida  que  tivesse  an- 
dado a  apagar  a  memoria  da  desgraçada.  Melhor  diremos 
que  positivamente  o  sentimos. 

Não  o  conseguiu  inteiramente,  como  vamos  ver. 

Para  nós,  ainda  que  a  simples  tradição  litteraria  das  Car- 
tas não  offerecesse  suiíicientes  provas  e  garantias  da  sua 
própria  veracidade,  a  nota  manuscripta  encontrada  em  1808 
em  Paris,  por  Boissonade,  e  a  contra-prova  d'ella,  agora, 
pela  authenticação  da  existência  da  religiosa,  que  essa  nota 
indicava,  completam  e  encerram  definitivamente  a  questão, 
aparte  mesmo  o  estudo  comparativo  dos  mais  documentos. 

Fiado  apenas  n'uma  indicação  genealógica  dos  Alcofora- 
dos  de  Beja, — que  cremos  ser  a  mesma  revelada  por  Ca- 
millo, — aventou  Theophilo  Braga  a  idéa,  que  chegou  a  con- 
verter em  tentativa  critica,  de  reconstruir  a  verdade  histó- 
rica das  Cartas  pelas  referencias  d'ellas. 

7* 


100 


A  idéa  era  prematura,  considerada  a  deficiência  e  até  a 
incorrecção  d'aquella  indicação  genealógica,  a  inanidade 
das  investigações  ensaiadas  e  abandonadas,  e  o  estudo  in- 
completo das  Cartas  nas  suas  relações  com  os  acontecimen- 
tos do  tempo  e  com  a  própria  biographia  do  destinatário  que 
a  tradição  accusava. 

Não  falando  já  na  raridade  e  no  caracter  extremamente 
vago  das  referencias  com  que,  n'esta  situação,  se  poderia 
contar. 

Mas  por  bem  pagos  nos  déramos  do  nosso  trabalho  ainda 
quando  não  tivéssemos  conseguido  mais  do  que  tornar  per- 
feitamente viável  e  segura  aquella  idéa. 

Não  podemos,  hoje,  porém,  encerrar  esta  parte  do  nosso 
trabalho  sem  acerescentar  á  larga  conta  do  nosso  reconhe- 
cimento a  amável  generosidade  com  que  um  illustre  cava- 
lheiro de  Portalegre  nos  facultou  interessantes  documentos 
que  nos  permittiram  refazer  e  melhorar  muitas  paginas, 
n'esta  nova  edição. 

Foi  o  sr.  Martinho  da  França  de  Azevedo  Coutinho,  cujo 
archivo,  abundante  já  em  diplomas  de  muita  nobreza,  veia, 
a  herdar  os  da  familia  da  gloriosa  Freira  portugueza. 


ALCOFORADO  E  GHAMILLY 


. .  todo  o  possuidor  deste  Mor- 
gado terá  obrigação  de  vin- 
cular a  elle,  por  sua  morte, 
a  terça  da  sua  terça  para  com 
isso  hir  em  augmento  e  terá 
por  apellido  Alcamforado  .  . . 

Test.  de  F.  da  Costa  Alco' 
furado,  1660. 


Marianna  Alcoforado, — ou  Marianna  Alcoforada^, 
como  se  dizia  no  tempo, — nasceu  em  Beja  e  foi  ba- 
btisada  na  egreja  matriz  de  Santa  Maria  da  Feira, 
d'aquella  cidade,  aos  22  de  abril  de  1640,  sendo 
seu  padrinho  D.  Francisco  da  Gama,  conde  da  Vi- 
digueira. 


1  Esta  extensão  syntaxica  do  sexo  ao  nome  patronymico 
era,  então,  geral,  e  na  locução  popular  não  pode  dizer-se  rara, 
ainda.  Marianna  devia  assignar-se  também  assim,  pois  que  a 
assignatura  da  irmã,  como  escrivã  do  convento,  é  sempre: 
D.  peregrina  M."  Alcoforado,  e  a  mesma  forma  subsiste  no 
termo  de  óbito  de  Marianna.  Convém  lembrar  que  a  nota  en- 
contrada por  Boissonade,  em  Paris,  no  começo  do  século,  in- 
dica precisamente  por  Marianna  Alcoforada  a  religiosa  das 
Cartas,  o  que  seria,  por  si,  quando  não  houvesse  outras,  uma 
prova  sufliciente  da  exactidão  e  da  contemporaneidade  do  au- 
ctor  d'essa  nota. 


\0l 


Era  filha  legitima  de  Francisco  da  Costa  Alcofo- 
rado 6  de  D.  Leonor  Mendes. 

Quem  era  Francisco  da  Costa  Alcoforado? 

Os  Alcoforados  constituem  na  tradição  nobliarchica 
portugueza  uma  velha  arvore  genealógica  extrema- 
mente ramosa  e  frondente,  que  mergulha  as  raizes 
em  tempos  anteriores  á  formação  do  reino,  apon- 
tando á  superfície  da  historia  com  o  nome  do  rico- 
homem  D.  Gueda  o  Velho.  É  porém  com  um  des- 
cendente d'este,  Pedro  Martins,  que  a  fidalga  espé- 
cie ccmeça  a  bracejar  nas  genealogias  e  nas  chro- 
nicas  portuguezas. 

Pedro  Martins,  que  viveu  no  reinado  de  Âffonso  n, 
era  filho  de  Martins  Pires  de  Aguiar  e  de  D.  Elvira 
Gonçalves  de  Sousa,  homem  nobre  aquelle,  e  filha, 
esta,  dos  livres  amores  de  um  par  de  não  menores 
prosapias,  segundo  algumas  genealogias: — D.  Gon- 
çalo Mendes  de  Sousa  e  D.  Goldora  Goldares  de  Re- 
feiteira,  piedosa  padroeira  do  famoso  mosteiro  de 
Bustello,  no  Douro. 

Parece  averiguado  que  foi  Pedro  Martins  o  que 
primeiro  usara  o  appellido  de  Alcoforado,  ou,  como 
escrevem  outros,  Alcanforado^. 


1  E  também  Alcamforado  e  Alcoforado.  Todas  estas  formas 
se  encontram  nos  documentos  relativos  a  Francisco  da  Costa 
e  sua  família.  O  termo  de  óbito  de  Marianna  escreve  Alcan- 
forada,  e  no  Tombo  Novo  do  Convento  de  S.  Francisco,  em 
que  está  registada  a  instituição  do  vinculo,  diz-se  também  Al- 
camforado. 


108 


«Não  se  acha  nas  historias  o  motivo, —  diz  deso- 
ladaraenle  Manso  Lima', —  porém  bem  se  conhece 
que  foi  alcunha  que  começaria  em  Alcanforado  por 
andar  sempre  cheiroso,  e  depois  por  corrupção  Al- 
coforado, porque  a  opinião  de  alguns  de  que  foi  este 
cognome  derivado  do  Couto  de  Alcofra,  no  julgado 
de  Lafões,  é  sem  duvida  errada  pois  aquelle  Couto 
desde  o  reinado  d'el-rei  D.  Sancho  i  sempre  andou 
em  morgado  na  famiiia  a  que  ultimamente  foi  jul- 
gado no  anno  de  172  por  sentença  da  Relação  da 
cidade  de  Lisboa  e  os  Alcoforados  nunca  possuiram 
fazenda  na  Beira  e  quando  houvessem  tido  este  se- 
nhorio se  chamariam  de  Alcofra  como  se  denomi- 
nara o  apelido  do  solar  e  não  Alcoforados  que  é  co- 
gnome de  alcunha.» 

Sobre  o  respectivo  brazão  heraltico  phantasiaram 
egualmente  os  genealogistas,  com  uma  certa  graça 
ingénua. 

— «São  as  armas  d'esta  famiiia,— continua  Manso 
Lima, — o  campo  do  escudo  xadresado  de  prata  e 
azul,  de  sete  peças  em  facha  e  por  timbre  uma  águia 
estendida  em  memoria  de  proceder  dos  Aguiares 
que  teem  esta  ave  por  armas  porém  variada  na  côr, 
porque  é  azul,  voante,  armada  de  prata  e  metade 
xadresada  do  mesmo  metal.  A  causa  d'esta  mudança, 
diz  a  tradição,  fora  haverem  nascido  de  um  mesmo 


1  Famílias  de  Portugal  tiradas  dos  melhores  nobiliários  do 
reino,  etc,  por  Jacinto  Leitão  Manso  de  Lima,  etc.  Ms.  da 
Bibl.  Nac.  de  Lisboa. 


106 


parto  Pedro  Martins  e  Nuno  Martins,  e  contendendo 
depois  sobre  a  progenitura  se  ajustaram  que  deci- 
disse a  sorte  a  sua  disputa,  e  sendo  a  fortuna  mais 
favorável  a  Pedro  Martins  tomou  em  lembrança  do 
successo  o  jogo  do  xadrez,  se  não  é  que  estas  fos- 
sem o  brazão  da  família  de  D.  Goldora  Goldares  de 
Refeiteira  de  quem  os  Alcoforados  herdaram  os  bens 
e  o  padroado  do  mosteiro  de  Bustello,  como  escreve 
o  conde  D.  Pedro.» 

Tudo  pode  ser,  mas,  seja  como  fôr,  offerecemos 
já,  aos  que  se  importam  com  estas  coisas,  a  con- 
solação de  poderem  imaginar  que  a  pobre  amante 
do  glorioso  pimpolho  dos  Chamilly  poderia,  ao  me- 
nos, contrapor  á  águia  dos  Senhores  de  Corberon, 
a  não  menos  altaneira  dos  Aguiares,  e  ás  gueules  à 
la  fasce  d'or,  dos  Bouton,  o  bello  xadrez  a  prata  e 
azul,  tão  phantasticamente  explicado  por  Manso  de 
Lima,  como  aquellas  por  Pedro  Palliot'. 

Ao  avesso  da  divisa  dos  Chamilly: — larosevaut 
le  bouton^.  Também  será  n'isto  que  os  dois  possam 
irmanar. . . 


*  Hist.  gén.  des  comtes  de  Camilly,  eit.  pelo  sr.  Beauvois. 

>  « . . .  os  Chamilly  contentaram-se  com  o  antigo  escudo : 
— de  gueules  á  la  fasce  d'or, —  que  por  ser  muito  simples  não 
deixava  de  passar  por  ter  uma  alta  significação  symbolica,  re- 
presentando as  goles  as  pétalas  da  rosa  (em  persa  gul)  e  o  oiro 
os  seus  eslames.  Assim,  alguns  personagens  d'esta  casa,  fa- 
zendo um  trocadilho  com  o  seu  próprio  nome,  tinham  ado- 
ptado por  divisa: — Le  bouton  vaut  la  rose.» 

Beauvois,  La  jeunesse  du  marechal,  etc. 


107 


Os  Alcoforados  ramificam-se  em  varias  casas  so- 
larengas, principalmente  ao  norte  do  paiz,  e  aquelle 
appellido  ou  desapparece  no  cruzamento  das  diver- 
sas gerações  fidalgas,  ou  vae  acompanhando  outros, 
sem  que  nos  conste  que  se  fixe  n'uma  exclusiva 
instituição  de  morgado,  ao  costume  e  segundo  as 
leis  e  tradições  do  tempo,  senão  na  familia, — a  me- 
nos conhecida  d'aquelie  nome,  exactamente, — de 
Marianna  Alcoforado. 

Podemos  hoje  dizer  que  não  é  só  este  facto  que 
contraria  a  arbitraria  aílirmação  de  Camillo  Castello 
Branco,  de  que  o  tronco  dos  Alcoforados  de  Beja 
«não  é  com  certeza  o  do  rico-homem  D.  Gueda  o 
velho,  de  quem  descendem  os  Alcoforados  da  Casa 
da  Silva,  de  Villa  Pouca,  etc.»  *,  e  devemos  accres- 
centar  que  o  escudo  dos  Alcoforados  era  o  adoptado 
pela  Casa  de  Beja  até  á  sua  extincção  por  morte  do 
ultimo  representante,  ha  poucos  annos^. 

Pouco  nos  importara  esta  questão  da  ascendên- 
cia de  Marianna  Alcoforado  se  aparte  o  rigoroso  de- 
ver da  critica,  de  não  desdenhar  ou  esconder  facto 
ou  elemento  algum,  em  restituições  históricas  da 
natureza  d'esta  que  emprehendemos,  não  valesse 
por  testemunho  indirecto,  no  processo,  a  bastarda  e 
ridícula  preoccupação  de  certos  genealogistas  mo- 
dernos, de  arredar  da  prosapiosa  arvore  dos  Alco- 


í  Curso  de  litt.  port.  Lisboa,  1876.  Nota  n. 
2  Alexandre  Lobo  Alcoforado. 


108 


forados  o  notável  ramo  que  foi  o  único  que  não  tro- 
cou ou  engeitou  o  nome, — e  muito  especialmente 
os  dois  pobres  entes  que  melhor  o  conservaram  e 
enobreceram  na  memoria  das  gerações: — a  amo- 
rosa de  Beja  e  o  enamorado  pagem  da  Duqueza  de 
Bragança  *. 

Documentos  e  investigações  novas  habilitam-nos 
a  completar, — diremos  melhor,  a  refazer, — o  nosso 
anterior  trabalho,  arredando,  de  vez,  toda  a  contro- 
vérsia sobre  a  familia  de  Marianna. 

O  pae  d'ella  era  um  Alcoforado  directo  e  authen- 
tico, — dos  Alcoforados  de  Traz-os-Montes,  berço  ori- 
ginário da  familia.  Dois  antepassados, — Ruy  Gon- 
çalo e  Martim  Gonçalo  Alcoforado, — netos  em  ter- 
ceira e  quarta  geração  do  primeiro  Alcoforado, — 
foram  senhores  de  Bemposta,  Penasroyas  e  Castro 
Vicente.  Outro  tinha  a  sua  casa, — de  que  ha  bem 
pouco  existiam  restos, — em  Cortiços,  antiga  e  en- 
tão florescente  villa  da  mesma  província,  onde  va- 
mos encontrar  o  avô  de  Marianna, — Balthazar  Vaz 
Alcoforado,  que  serviu  como  capitão  na  Itália  e  em 
Flandres  no  tempo  do  ultimo  Filippe, — reentrado 
já  em  Portugal  e  na  sua  província,  em  1596,  pois 
que  n'esse  anno  commandava  uma  expedição  de 
gente  de  pé  e  de  cavallo  enviada  ao  Porto  pelo  bispo 
de  Miranda,  D.  Manuel  de  Seabra. 

Era  este  Balthazar  filho  de  Francisco  Carmona 


1  A  Senhora  Duqueza,  Lisboa. 


109 


Alcoforado,  de  Cortiços,  que  casara  com  uma  pa- 
rente, uma  Alcoforada  também, — Anna  Vaz, — filha 
dos  morgados  das  Aguasleves:  Diogo  Fernandes  e 
Filippa  Alcoforada.  Matrimoniou-se  com  uma  se- 
nhora de  Castro  Vicente, —  Anna  da  Cunha  Pinto, 
ou  Pinta,  segundo  o  dizer  do  tempo, —  e  teve  três 
filhos. 

O  mais  velho, —  Nicolau  da  Cunha  Alcoforado, — 
foi  capitão-mór  de  Cortiços,  serviu  briosamente  nas 
primeiras  refregas  da  Restauração,  e  reformou-se 
em  1647. 

Casou  com  Antónia  de  Miranda,  filha  dos  morga- 
dos do  Anjo,  de  Chaves,  e  o  seu  primeiro  filho, — 
BalthazarVaz  Alcoforado,  como  o  avô, —  foi  natural- 
mente o  que  nas  nossas  primeiras  investigações  en- 
contrámos batalhando  desde  soldado  a  capitão  e  mes- 
tre de  campo  nas  fronteiras  de  Traz-os-Montes  *. 


1  Dipl.  de  28  de  junho  de  1665  e  29  de  dezeniljio  de  1670, 
eit.  na  1.*  ed. 

Este  ramo  de  Alcoforados  que  permaneceu  em  Traz-os-Mon- 
tes não  parece  ter  sido  mais  feliz  do  que  o  que  veiu  vecejar 
em  Beja.  O  ultimo,  dos  de  Cortiços,  acabou  por  vender,  não 
ha  muitos  annos,  a  quinta  ou  solar  patrimonial,  onde  me  consta 
existir  ainda,  encimando  um  portal,  o  brazão  da  familia.  Uma 
nota  encontrada  nos  papeis  do  sr.  Azevedo,  de  Portalegre,  dá 
as  seguintes  informações  :  Balthazar  Vaz  Alcoforado  casou  com 
D.  Marianna  da  Rosa,  e  falleeeu,  sem  testamento,  em  23  de 
novembro  de  1723,  sendo  sepultado  na  Egreja  Matriz  de  Cor- 
tiços, segundo  termo  do  Reitor  António  Ferreira  do  Amaral. 
Consta  ter  tido  os  seguintes  filhos : 


no 


Do  segundo  filho  de  Balthazar  Vaz  e  de  sua  mu- 
lher Anna  da  Cunha  não  ha  noticia,  e  o  terceiro 
foi  o  nosso  Francisco  da  Costa  Alcoforado. 

Parece  que  d'este  tomara  conta  Tristão  da  Cu- 
nha, que  foi  Mestre  de  Campo  general  em  Traz-os- 
Montes,  e  que  perdendo  um  oitio  nas  campanhas  da 
Restauração  ficou  sendo  chamado  o  Torto.  ^ 

Naturalmente  com  elle  veiu  para  o  sul,  e  o  que 
é  certo  é  que  indo  a  Beja  fixou  a  sua  residência 
n'aquella  cidade,  casando  com  Leonor  Mendes,  fi- 
lha de  Francisco  Mendes  e  Maria  Alves,  mercado- 
res* e  proprietários,  aUi. 


— Balthazar  Vaz  Aleoforaido,  que  era  formado,  segundo  um 
assento  de  baptismo  feito  em  i730,  em  que  foi  padrinho  com 
sua  irmã : 

— Angélica,  nascida  em  20  de  agosto  de  1700,  tendo  por 
padrinhos  Jorge  de  Lemos  e  sua  mulher  D.  Joanna,  do  logar 
de  Mascaranha,  no  baptismo  em  2  de  setembro.  Esta  Angélica 
casou  duas  vezes,  uma  com  Miguel  Machado,  de  Mirandella, 
ouira  com  António  de  Moraes  Sarmento,  de  Miranda.  Não  teve 
filhos  do  primeiro. 

— Nicolau  da  Cunha,  baptisado  em  21  de  setembro  de  1702. 

(Certidão  pedida  por  D.  Luiza  do  Carmo  Alcoforado,  de 
Lisboa,  e  passada  em  26  de  outubro  de  1830,  pelo  Reitor  da 
Egreja  de  S.  Nicolau,  de  Cortiços,  Theotonio  Joaquim  da  Ro- 
cha.) 

1  Foi  governador  de  Angola,  onde  chegou  em  1666,  sendo  me- 
zes  depois  enviado  preso  para  Lisboa  por  insurreição  popular. 

2  Nas  genealogias  de  D.  António  de  Aguiar  e  Freire  de  Mon- 
tarroio,  citadas  por  Camillo  Castello  Branco  (obr.  cit.)  diz-se 
que  Francisco  da  Costa  era  creado  de  Tristão  da  Cunha  o 
Torto  e  que  indo  a  Beja  por  meirinho  de  uma  alçada  alli  ca- 


111 


Francisco  Mendes  fez  morgado  de  uma  proprie- 
dade urbana  que  possuía  na  praça  principal  da  ci- 
dade, nomeando  em  primeira  administradora  sua 
filha  Leonor,  e  a  esposa,  sobrevivendo-lhe,  consti- 
tuiu também  uma  d'estas  instituições  pias  chama- 
das Capellas,  vinculando  o  rendimento  de  um  pré- 
dio rural, —  «um  ferragial  juncto  ao  poço  do  Coe- 
lho extramuros», — ao  pagamento  de  dez  missas  vo- 
tivas por  anno — «emquanto  o  mundo  durar.»  * 

Francisco  da  Costa  Alcoforado  apparece-nos  logo 
nos  primeiros  annos  da  Restauração,  n'uma  situa- 
ção distincta  e  influente,  considerado  fidalgo,  e  tra- 
tando-se  como  tal,  excellentemente  relacionado,  e 
desempenhando  commissões  importantes  de  confian- 
ça administractivo  e  politica.^ 


sara  com  Leonor  Mendes,  «filha  de  uma  tendeira  a  quem  cha- 
mavam Maria  Alves  a  Maricota.» 

Entenda-se  por  tendeiros,  o  que  então  se  entendia  e  os  do- 
cumentos illueidam : — «mercadores  de  revenda  ou  de  porta 
aberta,  com  loja»  como  hoje  se  diria. 

1  A  noticia  da  fundação  d'elle,  encontram ol-a  n'um  dos  pa- 
peis do  sr.  Azevedo,  de  Portalegre,  que  por  curiosidade  ex- 
tractaremos  nos  Documentos,  e  a  relativa  a  Maria  Alves,  está 
registada  como  verba  do  testamento  d'estan'uma  certidão  de 
1778  pedida  pelo  syndico  dos  religiosos  de  S.  Francisco  de 
Beja,  copiada  no  Tombo  Novo  d'este  convento,  onde  está  o 
registo  do  testamento  de  Francisco  da  Costa  Alcoforado,  que 
allude  á  mesma  fundação. 

2  Os  filhos  de  Francisco  da  Costa  Alcoforado  e  os  mais  des- 
cendentes d'elles  mostraram-se  muito  ciosos  da  sua  fidalguia 
e  dos  serviços  do  fundador  da  Casa.  Nos  papeis  do  sr.  Aze- 


112 


Desde  então  podemos  seguil-o  quasi  anno  a  anno, 
na  sua  vida  publica. 

Era  evidentemente  um  homem  intelligente,  acti- 
vo, enérgico,  estimado. 

De  163tí  a  1640  fora  já  executor  do  almoxari- 


vedo,  de  Portalegre,  ha  diversos  requerimentos  dos  três  filhos 
de  Francisco  da  Costa,  em  1681,  pedindo  e  obtendo  certidões 
dos  serviços  e  cargos  do  pae. 

Ha  também  differentes  notas  genealógicas  e  uma  curiosa  in- 
quirição promovida  por  dois  descendentes  d'aquelle,  para  a 
suecessão  da  fidalguia  e  morgado,  que  se  intitula : 

Instrumento  de  justificação  |  de  Francisco  da  Costa  Cunha 
Alcoforado,  \  Cappítuo  refo7-maão  do  Regimento  \  de  Milícias 
desta  (jomarca,  morador  nesta  cidade  de  Beja;  e  de  Francis  \  co 
José  da  Cunha  Alcoforado,  Cap  \  pitão  reformado  da  Cavalla- 
ria  I  de  Torres  Nouas  \  tãobem  morador  \  nesta  mesma  cida- 
de \ 

É  a  inquirição  feita  em  27  de  julho  de  1801,  em  Beja,  nas 
casas  do  sargento-mór  Gaspar  de  Moraes  Correia.  São  inqui- 
ridos, este,  de  70  annos,  João  Pessanha  de  Mendonça  Furtado 
Carcome  Moreno,  «uma  das  Pessoas  principaes  d'esta  cidade», 
de  90  annos,  e  Francisco  Coelho,  capitão  de  ordenanças  da 
Ireguezia  dos  Quintos,  de  80  annos  que  diz : 

— *E  sabe  outro  sim  pello  muito  uso  que  tem  tido  de  ver 
e  ler  vários  documentos  antigos  e  pertencentes  á  Casa  dos  jus- 
tificantes que  Francisco  da  Costa  Alcoforado  foi  fidalgo  da 
Casa.» 

Que  pena  que  este  curioso  erudito  não  nos  deixasse  umas 
memorias  de  quanto  vira  e  lera  n'esses  velhos  papeis  I . .  . 
Uma  coisa  que  os  Alcoforados  nunca  se  lembraram  de  inqui- 
rir foi  da  versão  escandalosa  dos  amores  da  Freira,  para  a 
desmentir.  Deixaram-n'a  sempre  correr  sem  protesto.  Exacta- 
mente como  Chamilly... 


113 


fado  de  Beja,  cargo  importante  que  parece  ter  des- 
empenhado até  1656. 

Em  30  de  agosto  de  1642  foi  eleito  procurador 
ás  cortes  por  aquella  cidade. 

Votara-se  á  causa  da  Independência,  que  dedica- 
damente serviu  até  o  fim. 

Uma  carta  régia  de  12  de  novembro  de  1644  fa- 
zia-o  coudel-mór  na  comarca  de  Beja,  incumbindo- 
Ihe  que  promovesse  e  superintendesse,  com  instante 
solicitude,  o  recenseamento  e  creação  de  cavallos 
para  serviço  da  campanha. 

Eleito  novamente  procurador  ás  cortes,  em  28  de 
outubro  de  1645,  sendo  já  «vereador  mais  velho, 
e  juiz  de  fora  pela  Ordenação»,  o  que  denunciava 
certas  habilitações  litterarias,  no  mesmo  dia  da  elei- 
ção renunciava  o  mandato,  que  lhe  era  ainda  uma 
vez  conferido  em  3  de  abril  de  1649  ^ 

N'outra  carta  régia,  em  14  de  abril  de  1646,  que 
encontrámos  transcripta  no  Tombo  Novo  do  Con- 
vento da  Conceição, — um  magnifico  códice,  por  si- 
gnal, — é  qualificado  de — «cavalleiro  fidalgo  da  Mi- 
nha Casa,  vereador  mais  antigo  e  juiz  de  Beja  pela 
Ordenação.» 

Em  5  de  dezembro  de  1647,  andando  elle  na 
corte,  e  tendo  corrido  o  respectivo  processo  de  ha- 
bilitação, que,  infehzmente,  não  encontrámos  na 


1  Ainda  era  1663  uma  carta  do  infante  D.  Pedro  o  nomeia 
novamente  vereador  para  esse  anno. 

F. 


ill 


Torre  do  Tombo,  um  alvará  régio  manda-o  armar 
cavalleiro  de  Christo  na  própria  capella  real,  ou  na 
egreja  de  Nossa  Senhora  da  Conceição  de  Lisboa, 
o  que  immediatamente  se  cumpre. 

Outro  diploma,  de  iO  de  janeiro  de  1648,  con- 
signa-lhe  a  promessa  de  uma  commenda  da  ordem 
de  Christo,  com  a  respectiva  pensão,  e  este  docu- 
mento é  interessante  por  fazer  uma  resenha  dos 
serviços  prestados  por  Alcoforado  depois  dos  que 
já  lhe  haviam  merecido  outras  honras,  como  indica 
o  diploma,  desde  1642. 

Os  serviços  alludidos  são  os  da  maneira  por  que 
cumpria  as  obrigações  do  officio,  «de  que  é  pro- 
prietário», de  executor  do  almoxarifado  de  Beja,  e 
também  do  de  superintendente  das  coudelarias 
d'aquella  comarca,  cargos  ambos,  n'aquella  epocha 
de  guerra  e  de  reconstituição  administrativa,  muito 
importantes,  e  mais  o  de  dirigir  a  conducção  dos 
trigos,  o  que  lhe  fora  incumbido  pelo  Conselho  da 
Fazenda,  e  a  beneficiação  das  farinhas  e  o  lança- 
mento e  cobrança  dos  dízimos,  de  que  o  encarre- 
gara a  própria  Junta  dos  Três  Estados. 

Citam-se  depois  alguns  feitos  e  serviços  propria- 
mente militares: — um  recontro  junto  de  Moura, 
com  os  hespanhoes,  em  que  lhes  arrancou  uma 
grossa  presa  de  gado  que  levavam  e  lhes  matou  e 
aprisionou  alguma  gente;  a  defeza,  com  dispêndio 
próprio,  d'aquella  villa,  durante  seis  mezes;  a  sua 
cooperação  na  fortificação  e  defeza  de  Arronches, 
Valença  e  Bomroy,  etc. 


415 


Do  seu  testamento,  feito  em  30  de  setembro  de 
4660, — que  foi  o  primeiro  e  um  dos  mais  precio- 
sos documentos  que  na  nossa  investigação  directa 
podemos  obter, — vê-se  que  possuia  uma  grande 
casa,  que  a  administrava  com  muito  zelo,  que  diri- 
gia uma  larga  laboração  agrícola,  e  que  ao  mesmo 
tempo  tinha  relações  com  alguns  dos  primeiros  ho- 
mens da  época,  como  o  conde  de  Castanhede, — o 
celebre  Marialva, — o  marquez  de  Niza,  nosso  em- 
baixador em  Paris,  etc. 

Promovera  zelosamente  a  instrucçâo  dos  filhos, 
dando-lhes  carreiras  e  coUocações  distinctas,  como 
veremos. 

É  n'esse  testamento  que  elle,  com  sua  mulher, 
institue  o — «morgado  dos  Alcoforados», — impondo 
á  successão  e  herança  d'elle  algumas  clausulas  sob 
mais  de  um  aspecto  curiosas.  O  successor  juntará 
sempre  ao  morgado  «para  que  elle  vá  em  augmen- 
to»,  a  terça  da  sua  terça,  e  terá  o  appellido  de  Al- 
camforado,  perdendo  o  direito  á  successão  desde 
que  não  queira  ou  não  possa  cumprir  qualquer  d'es- 
tas  clausulas.  Prohibe  a  successão  em  frades  ou  em 
freiras,  admittindo-a  apenas  na  falta  de  filhos  se- 
culares, e  em  todo  o  caso  mantendo-se  sempre  na 
linha  directa.  Se  algum  successor  commetter  crime 
de  lesa-magestade  divina  ou  humana,  ou  outro  qual- 
quer que  implique  confiscação  de  bens,  entender- 
se-ha  que  perdeu  o  direito  e  o  morgado  duas  ho- 
ras antes  de  commetter  esse  crime,  disposição,  se 
bem  nos  lembramos,  de  tradição  visigoda,  que  cor- 

8# 


116 


robora  a  idéa  de  quanto  Francisco  Alcoforado  de- 
sejava assegurar  a  conservação  e  o  augmento  da 
fundação  a  que  vinculava  o  seu  appellido.  Não  se 
esquece,  também,  de  recommendar  que  o  enter- 
rem vestido  e  armado  como  fidalgo  e  cavalleiro  de 
Ghristo,  —  «com  um  barreie  vermelho,  espada  á 
ilharga,  borzeguins  e  esporas.» 

Três  annos  depois  de  fazer  este  testamento  ainda 
Francisco  da  Gosta  Alcoforado  tinha  vigor  e  popu- 
laridade bastante  para  salvar  Beja,  do  pânico  que 
a  tomada  de  Évora  por  D.  João  d' Áustria  produ- 
zira, e  para  repellir  intrepidamente  as  intimações 
do  invasor  triumphante. 

Contam-n'o  um  attestado  do  governador  Bartho- 
lomeu  Lobo  de  Mello  Freire,  de  10  de  maio  de  1663 
e  uma  carta  do  rei,  de  21  de  junho  d' esse  anno,  di- 
rigida ao  «Juiz  Vereador  e  procurador  do  Concelho 
da  Cidade  de  Beja,»  que  agradecendo  e  louvando 
o  procedimento  da  cidade,  n'aquelle  grave  transe, 
recommenda  instantemente  a  fortificação  d'ella. 

Fora  o  caso  que  lendo  D.  João  d'Auslria  enviado 
alli  um  «cartel»  para  que  lhe  fossem  entregues  «as 
chaves  da  cidade»,  resolutamente  se  pozera  Fran- 
cisco da  Cosia  Alcoforado, — ainda  «vereador  mais 
velho»  e  juiz  de  fora, — ao  lado  do  governador,  es- 
timulando a  população  a  resistir  aos  hespanhoes, 
provendo  á  defeza,  fortalecendo  e  disciplinando  os 
ânimos  alvoroçados,  e  festejando  depois,  ruidosa- 
mente, no  meio  ainda  de  evidente  perigo,  o  malo- 
gro da  temerosa  invasão  na  batalha  do  Ameixial. 


117 


Ainda  n'aquelle  anno  é  ordenada  a  formação  de 
uma  Casa  de  Moeda  em  Beja,  sendo  enviados  a 
Francisco  da  Costa  Alcoforado  os  regulamentos  e 
ordens  para  essa  fundação,  como  «juiz  do  cunhos. 

A  casa  solarenga  de  Francisco  da  Costa  Alcofo- 
rado existe  ainda,  posto  que  truncada  e  modificada. 
É  onde  está  hoje  alojada  a  Assemblea  Bejense,  na 
velha  rua  do  Touro,  que  no  tempo  d'elle  tinha  já 
este  nome, — nem  outro  teve,  naturalmente, — o  que 
lhe  proveiu  de  umas  pedras  encravadas  nas  pare- 
des com  a  esculptura  de  uma  cabeça  de  touro,  sym- 
bolo  agrícola  que  veiu  a  figurar  no  escudo  da  ci- 
dade. D'estas  pedras  restam  uma  ou  duas  em  pa- 
redes visinhas,  e  outras  se  encontram  em  diversos 
sitios.  A  casa  era  ainda  propriedade  do  ultimo  Al- 
coforado, fallecido  no  nosso  tempo,  e  que  traspas- 
sando-a  ou  vendendo-a,  desejara,  segundo  o  teste- 
munho de  muitas  pessoas  de  Beja,  que  na  repara- 
ção da  saia  principal. — hoje  sala  de  baile  do  Club, — 
se  pozesse  o  velho  brazão  da  família.  Este,  porém, 
desappareceu,  e  nem  uma  simples  lapide  recorda 
que  foi  alli  o  solar  dos  Alcoforados  ^ 


1  Não  posso  resistir  a  transcrever  o  trecho  de  um  bello  ar- 
tigo com  que  Pedro  Victor  da  Gosta  Sequeira,  o  distincto 
jornalista  e  engenheiro,  que  tão  intimamenta  conhece  Beja, 
sua  pátria  adoptiva,  honrou  a  primeira  edição  da  Soror : 

— « . . .  Demais,  ninguém  tinha  em  Beja,  um  verdadeiro  es- 
timulo para  acclarar  a  questão,  e  pelo  contrario  havia  um 
certo  desejo  de  a  deixar  no  escuro. . . 

«Vivia  ainda  o  ultimo  Alcoforado,  que  tinha  regressado  de 


118 


Já  agora,  outra  nota  curiosa.  Não  foi  n'aquelia 
casa  que  nasceu  Marianna  Alcoforado,  mas  em  ou- 
tra, na  Praça, — lioje  Praça  de  D.  Manuel, — na  fre- 
guezia  de  Santa  Maria  da  Feira  em  que  foi  bapti- 
sada,  e  que  inteiramente  restaurada  também,  é  egual- 
mente  o  alojamento  dum  Club, —  o  Club  artístico, 
— segundo  as  indicações  que  temos  podido  colher. 

Francisco  da  Costa  Alcoforado  morreu  entre  1671, 
em  que  o  seu  procurador  Diogo  Dias  Seco,  apre- 
senta em  juizo  o  testamento  d'elle,  e  1676,  em  que 
faz  o  seu,  ás  grades  do  Convento  da  Conceição, 
uma  das  filhas,  sendo  elle  «já  defunto». 

Do  termo  da  abertura  do  primeiro,  e  do  próprio 
texto  dos  documentos,  parecera-nos  poder  deduzir, 


França,  quasi  expulso  de  Paris  por  se  ter  recusado,  no  tempo 
do  cerco,  a  pegar  em  armas  contra  os  Prussianos. . .  Talvez 
um  resto  da  velha  malquerença  de  família  contra  a  pátria  de 
Chamilly?  Este  ultimo  Alcoforado  era  um  original,  respeitado 
e  considerado  ainda  por  todos  como  que  em  attençãe  aos  seus 
ascendentes.  As  chronicas  da  terra  dizem  que  fora  gerado  em 
condições  extraordinárias  e  que  ferido  talvez  á  nascença,  com 
um  fatal  vicio  de  origem,  vegetou  n'este  mundo  como  um  ser 
extranho  e  extravagante,  um  degenerado,  ora  elevando-se  pelo 
brilho  de  uma  intelligencia  notável,  ora  esquecendo-se  n'um 
abandono  parecido  com  o  idiotismo. . .  Destinada  (a  familia) 
o  extinguir-se  na  geração  anterior,  foi  por  um  esforço  da  von- 
tade do  avó  de  Alexandre  Lobo  Alcoforado  qtie  se  tentou,  em 
vão,  dominar  e  vencer  o  destino. * 

De  feito,  segundo  a  versão  geral  do  soalheiro  bejense,  esse 
avô,  verificando  a  impotência  do  marido  da  filha  que  lhe  ha- 
via de  continuar  o  nome  e  o  morgado,  substituira-se  a  elle. 


Ii9 


nas  nossas  primeiras  investigações,  que  seria  por 
aquelle  tempo,  em  167i,  que  tivesse  morrido  Leo- 
nor Mendes.  N'este  caso  viviria  ainda,  como  o  ma- 
rido, no  tempo  do  episodio  das  Cartas,  o  que  se  nos 
aíTigurou  que  uma  allusão  d'estas  corroborava.  Mas 
essa  allusão  foi  mal  comprehendida,  e  documentos 
posteriormente  obtidos  modificam  a  hypothese. 

Da  folha  de  partilhas  a  favor  de  um  dos  filhos. 
Miguei  da  Cunha  Alcoforado,  da  legitima  que  lhe 
pertenceu  por  morte  de  sua  mãe,  vê-se  que  D.  Leo- 
nor Mendes  era  morta  em  1664, — morrera  nos  pri- 
meiro mezes  d'esse  anno  ou  nos  últimos  do  ante- 
rior,— pois  que  o  inventario  estava  feito  em  16  de 
março  e  as  partilhas  julgadas  por  sentença  em  egual 


na  obsessão  cl'aquella  continuidade  fidalga.  Conhecemos  casos 
análogos  na  historia  contemporânea  da  velha  instituição. 
O  Dicc.  Univ.  Port.  diz  de  Alexandre  Lobo : 
— «Dotado  de  um  caracter  integro  e  nobilíssimo,  mas  ex- 
cêntrico, pretendeu  pelos  próprios  recursos  crear-se  uma  si- 
tuação superior.  Para  esse  fim  estabeleceu  residência  em  Pa- 
ris onde  seguiu  por  algum  tempo  o  curso  de  medicina.  Des- 
ajudado da  sorte,  não  pôde  realizar  o  seu  intento,  e  regressando 
a  Portugal,  morreu  pobre  e  esquecido  no  hospital  de  S.  José, 
encontrando  unicamente  nos  seus  últimos  instantes  a  protec- 
ção desinteressada  do  distincto  medico  dr.  Eduardo  Motta  e 
do  padre  António  Rebello,  hoje  cura  do  hospital,  que  lhe  fi- 
zeram o  enterro  por  impulso  de  amizade.  A.  de  alguns  traba- 
lhos litterarios  em  cujo  numero  se  contam  A  lei  e  o  clero  na 
questão  do  casamento  civil,  1866,  O  baptisado  e  a  excommunhão, 
1865,  e  uma  serie  de  artigos  de  critica  do  poema  D.  Jaime,  pu- 
blicados no  jornal  humorístico,  O  Duende.» 


120 


dia  de  maio,  d'esse  anno  *.  Esta  data  e  a  de  um  ou- 
tro facto  também  inédito  que  adeante  registaremos 
illucidam  bastante  a  liistoria  da  Freira. 


II 


O  silencio  feito  em  volta  dos  fundadores  da  Casa 
dos  Alcoforados  de  Beja,  na  moderna  genealogia, 
hypocrita  e  cortezã,  afundou-lhes  a  prole,  aliás  nu- 
merosa, na  mais  completa  obscuridade.  A  própria 
nota  encontrada  por  Camillo  Castello  Branco  em  pa- 
peis de  Aguiar  e  Montarroio  é  sobre  incompleta, 
inexacta. 


1  Foi  o  sr.  Azevedo,  de  Portalegre,  quem  me  revelou  esta 
indicação  preciosa  e  o  respectivo  documento.  É  a  folha  de 
partilhas  mandada  passar  pelo  «Dr.  Manoel  Martins  Pretto, 
juis  de  fora  dos  orífaos  desta  cidade  de  Beja  e  sseu  termo  por 
Sua  Alteza»,  e  extrahida  de — «huns  Autos  de  jnventario  e  par- 
tilhas que  neste  dicto  juiso  dos  orífaos  se  fisercão  dos  Bens  e 
fazenda  assim  Moveis  como  de  Raiz  que  ficarão  por  Morte  e 
fallescimento  de  dona  Leonor  Molher  que  foi  de  Francisco  da 
Costa  Alcofforado,  cavaleiro  professo  na  ordem  de  Cristo  e 
Morador  que  foj  nesta  Cidade». — Requereu-a  Miguel  da  Cu- 
nha Alcoforado,  já  então  (167?)  —  «Mayor  e  casado  e  rece- 
bido em  face  da  igreja». 

As  partilhas  foram  feitas  entre  quatro  filhos  e  coube  a  Mi- 
guel 1:481)^524  réis. 


121 


No  seu  testamento,  em  30  de  setembro  de  1660, 
Francisco  da  Gosta  Alcoforado  denuncia  seis  filhos. 
Teve  oito,  mas  dos  dois  últimos,  um  tinha  5  annos 
e  o  outro  alguns  dias  apenas. 

Dos  citados,  três  são  meninas,  estando  uma  ca- 
sada e  as  outras  no  convento  da  Conceição : —  (.(Ma- 
rianna  que  já  é  professa  e  Catharina  que  ainda  o 
não  é.» 

O  filho  mais  velho  foi  José  da  Costa,  cura  de 
Nossa  Senhora  das  Neves,  quando  o  pae  fazia  o  tes- 
tamento. Era,  porém,  natural  este  filho.  Francisco 
Alcoforado  nomeia-o  como  um  dos  seus  testamen- 
teiros, recommenda-lhe  a  fiscalisação  das  suas  dis- 
posições pias,  e  consigna-lhe,  do  morgado  que  in- 
stitue,  a  pensão  vitalícia  de  8;^000'réis. 

Dos  filhos  legítimos,  o  mais  velho  é  Balthazar  Vaz 
Alcoforado,  como  o  próprio  pae  o  declara  n'aquelle 
mesmo  diploma,  onde  o  nomeia  também  por  seu 
testamenteiro,  «se  ao  tempo  da  minha  morte, —  ac- 
crescenta, — tiver  edade  para  o  ser.»  Não  tinha,  pois, 
25  annos,  em  1660. 

D'este  Balthazar,  diz  a  nota  citada  pelos  srs.  Ca- 
millo  Castello  Branco  e  Theophilo  Braga,  que  fizera 
«a  celebre  decima  nas  suas  conclusões  em  Coimbra : 
Culpa  fuera  Brites  bella»,  etc,  e  que  fora  prior  de 
Beringel.  O  Diccionario  Universal  Portuguez  dá-o  co- 
mo formado  em  theologia  «e  muito  conhecido  pelos 
seus  ditos  facetos  e  joviaes.» 

Confessamos  á  puridade  que  não  o  conhecemos 
por  esses  ditos,  que  não  temos  a  mais  longínqua 


i^ 


idêa  da  celebre  decima,  e  que  não  nos  achamos 
dispostos  a  sahir,  por  agora,  d'esta  profunda  igno- 
rância. Que  não  era  refractário  ás  lettras  sabemol-o. 
Na  Bibliotiieca  de  Évora  existe  ainda  um  trabalho 
d'elle,  uma  exposição  relativa  á  diocese  de  Beja. 

Prior  de  Beringel,  antiga  e  privilegiada  villa  a  10 
kilometros  de  Beja,  ou  prior  da  egreja  de  Santo 
Estevão  de  Beringel, — priorado  importante  e  fidal- 
go, com  direito  de  usar  murça,  e  de  que  eram  pa- 
droeiros apresentantes  os  marquezes  de  Minas, — 
sabemos  também  que  era  em  1716,  como  egual- 
mente  se  deduz  dos  documentos  da  successão  do 
morgado,  que  era  doutor.  Antes,  porém,  que  fosse 
não  só  prior,  mas  clérigo,  fora  soldado  aventuroso 
e  intrépido, — outro  facto  absolutamente  inédito  até 
agora. 

Quando  em  1666  se  fez  a  audaciosa  invasão  da 
Andaluzia,  Balthazar  Vaz  Alcoforado,  acompanhando 
o  sargento-mór  de  batalha,  geueral  da  artilheria  do 
Algarve,  Diogo  Gomes  de  Figueiredo,  governador 
de  Beja,  fez,  segundo  o  testemunho  doeste,  prodí- 
gios de  bravura  e  de  habilidade,  principalmente  na 
tomada  de  Alçaria  de  la  Puebla,  á  frente  de  qua- 
renta cavallos, — «exposto  ao  diluvio  das  balas  que 
se  tiravam  do  dito  Castello  e  animando  e  exortando 
as  mangas  avançadas  e  dando-lhes  calor.» 

Foi  pois  companheiro  de  Chamilly, — notemos  já, 
—  pois  que  também  o  cavalleiro  francez  tomou  parte 
n'esta  expedição  e  esteve  na  tomada  de  Alçaria,  se- 
gundo a  sua  própria  folha  de  serviços. 


123 


É  somente  em  1669, —  por  curiosa  coincidência: 
no  anno  da  primeira  e  ruidosa  publicação  das  Car- 
tas da  Freira  portugueza, — que  o  irmão  de  Marianna 
Alcoforado  troca  a  carreira  das  armas,  tão  brilhante- 
mente auspiciada,  pelo  serviço  de  Deus,  em  que 
obscura  e  resignadamente  se  afunda. 

Moço, — pois  que  em  1660  era  ainda  menor, — 
rico,  intelligente  e  intrépido,  volta  as  costas  ás  hon- 
ras e  ás  riquezas  mundanas  e  vae  declarar  perante 
o  tabellião  de  Beja,  Manuel  Martins  da  Fonseca,  em 
termo  de  29  de  agosto  de  1669,  que — «elle  tinha 
uontade  de  ser  cleriguo  e  seruir  A  Deos  nosso  se- 
nhor no  estado  ecleziastico  e  por  quanto  não  podia 
conseguir  ho  dito  imt^nto  sem  primeiro  ter  dote 
comveniente  na  forma  do  sagrado  Concilio  triden- 
tino», —  se  dota  com  o  que  lhe  pertencera  no  in- 
ventario feito  por  morte  de  sua  mãe.  * 

Grave  devera  ter  sido  a  causa  desconhecida  que 
levara  aquelle  homem  a  abandonar  a  carreira  das 
armas,  em  que  se  distinguira  já,  e  a  herança  emi- 
nente de  uma  situação  prestigiosa  e  de  uma  casa 


1  Traslado  em  9  de  janeiro  de  1670,  do  mesmo  tabellião, 
em  Beja,  do  termo  de  29  de  agosto  de  1669.  São  testemunhas 
o  Padre  Estevão  de  Faria,  António  de  Oliveira  e  Manuel  Jorge, 
creado  de  Balthazar.  (Papeis  do  sr.  Azevedo,  de  Portalegre.) 

O  documento  tem  a  seguinte  rubrica  no  verso: — «dote  de 
meu  yrmão  Baltezar  Vas  Alcoforado  (e  rioutra  lettra)  feito  a 
si  mesmo  q."'°  se  quis  ordenar,  emportou  o  dote  na  forma  qúe 
lhe  coube  no  inventario  de  sua  may  D.  Leonor  Mendes — 
1:501^390.. 


124 


rica  e  considerada,  rompendo  com  as  aspirações  e 
os  planos  do  velho  pae,  e  mallogrando-lhe  descari- 
nhosamente,  á  beira  do  tumulo,  a  piedosa  institui- 
ção em  que  elle  quizera  perpetuar  o  nome  e  a  pro- 
sápia dos  Alcoforados. 

Estas  novas  indicações  documentaes,  sobre  as 
quaes  estamos  refazendo  a  noticia  da  família  de 
Beja^  levam-nos  irresistivelmente  a  ver  no  compa- 
nheiro d'armas  de  Ghamilly,  em  1066, — exacta- 
mente quando  devem  ter  começado  as  relações 
d'este  com  Marianna, — e  no  valente  e  despreoccu- 
pado  moço  que  repentinamente  desapparece  n'uma 
vida  obscura  e  devota  em  1669, —  precisamente 
quando  se  faz  um  grande  ruido  em  volta  das  Car- 
tas,— aquelle  «irmão»  que  ellas  revelam  como  in- 
termediário, inconsciente  talvez,  mas  não  talvez  in- 
culpado, dos  amores  da  pobre  Freira  portugueza. 

Este  deve  ter  sido,  e  não  o  outro  irmão, — o  Mi- 
guel da  Cunha  Alcoforado, — como  suppozeramos  e 
como  antes  de  nós  imaginara  já  Theophilo  Braga. 

Do  processo  da  definitiva  instituição  do  morgado 
parece  deduzir-se  que  Ballhazar,  padre  já,  não  se 
mostrara  muito  disposto  a  assentir  na  piedosa  re- 
solução paterna,  pondo  mesmo  as  suas  objecções 
em  juizo. 

Só  em  1716  é  que  essa  instituição  se  consolida 
e  regista. 

Segundo  papeis  da  familia,  elle  teve  filhos  natu- 
raes,  entre  os  quaes  uma  D.  Leonor,  que  parece 
ter  confiado  á  irmã,  pois  que  foi  freira,  também,  no 


125 


convento  da  Conceição.  Deve  ser  a  D.  Leonor  Ja- 
coba  da  Cunha  Alcoforado,  escrivã  do  convento  em 
1709,  que  suppozeramos  ser  filiia  do  Miguel. 

Este, — Miguel  da  Cunha  Alcoforado, — segundo 
filho  legitimo  de  Francisco  da  Costa  e  de  D.  Leo- 
nor Mendes,  era  menor  ainda  quando  se  fizeram  as 
partilhas  por  morte  d'ella,  em  1664. 

Pequena  parte  deve  ter  tomado  na  guerra  da  Res- 
tauração, mas  honrou  dignamente  o  nome  depois. 
De  15  de  setembro  de  1683  a  1702  foi  capitão  do 
terço  auxiliar  de  infanteria  de  Beja,  e  no  ultimo 
anno  accrescentou  ao  posto  o  de  mestre  de  campo, 
que  era  ainda  em  1707,  segundo  um  diploma  que 
lhe  memora  os  serviços  prestados: — em  1703  ele- 
vando, com  grande  zelo,  a  1:0C0  homens  aquelle 
terço;  em  1704  guarnecendo  e  defendendo  Moura; 
em  1703  e  1706  governando  esta  praça,  fortifican- 
do-a  e  combatendo.  Em  17  de  dezembro  de  1707 
era  confirmado  em  fidalgo  da  casa  real  com  a  mo- 
radia de  fidalgo  cavalleiro,  como  o  pae. 

O  ultimo  cargo,  ou  mais  propriamente  a  ultima 
mercê,  que  parece  ter  recebido  foi  a  de  Provedor 
das  CapeUas  da  infanta  D.  Brites,  mãe  de  D.  Ma- 
nuel e  fundadora  do  Convento  da  Conceição.  * 


1  Onde  jaz,  no  claustro,  junto  á  formosa  capella  de  S.  João 
Baptista,  em  sepultura  rasa,  que  tem  em  lapide  de  mármore 
esta  inseripção :  i  i  1 1  1 1  1  1  1  1 1  1 1  |  1 1  I  a  beatris  ]  fl.'"  na 
ERA  1506  didaIde  de  •  77  •  annos.  a  capella,  em  mosaico, 
tem  no  centro  do  arco  a  data — 1614 — da  sua  restauração  e 
da  da  sepultura,  talvez. 


126 


Pela  sua  posição  e  influencia,  os  Alcoforados  de 
Beja  naturalmente  prestaram  serviços  importantes 
ao  infante  D.  Pedro,  na  questão  delicada  da  regên- 
cia d'este  e  da  deposição  do  irmão.  Sabe-se  os  re- 
ceios que  inspirou  o  exercito  do  Alemtejo  antes  que 
Schomberg  se  resolvesse  a  acceitar  a  solução  d'essa 
formidável  intriga  politica,  tão  mal  conhecida  e  jul- 
gada ainda. 

O  que  é  certo  é  que  tanto  o  Alcoforado  pae  como 
os  filhos  eram  estimados  por  D.  Pedro  que  a  Mi- 
guel da  Cunha  ofí'ereceu  uma  jóia  importante,  ava- 
liada, em  1716,  em  800j$!000  réis. 

Miguel  era  fallecido  em  1727. 

Foi  elle  quem  recolheu  e  administrou  a  herança 
paterna,  e  promoveu  a  consolidação  e  o  engrande- 
cimento da  instituição  fundada  pelo  pae,  entenden- 
do-se  amigavelmente  com  os  irmãos.  Os  bens  mo- 
veis e  as  dividas  do  casal  que  elle  recebe  são  com- 
putadas em  12:000  cruzados,  somma  que  em  1716 
entrega  ao  irmão  mais  velho,  convertida  em  pro- 
priedades a  annexar  ao  morgado. 

É  elle  também  quem  apresenta  em  juizo  o  tes- 
tamento da  irmã  mais  nova,  que  reforça  com  a  sua 
legitima  aquella  instituição. 

De  resto,  pela  ordenação  de  Balthazar  Vaz,  e  se- 
gundo as  clausulas  do  testamento  do  pae,  natural 
era  passar  o  morgado  a  Miguel  da  Cunha  e  á  sua 
descendência,  como  o  primeiro  o  passou  realmente 
pouco  depois. 

Não  se  conservou  muito  lempo  n'esta  linha.  Ga- 


127 


sando  moço, — pouco  depois  da  morte  da  mãe, — 
com  D.  Brites  da  Costa  Montes,  filha  de  um  abas- 
tado lavrador  de  Beja,  Estevão  da  Gosta  Montes,  e 
de  sua  mulher  D.  Leonor  da  Fonseca, — Miguel  da 
Cunha  teve  só  um  filho  varão  e  duas  ou  três  filhas 
que  fez  freiras,  *  escolhendo-lhes,  porém,  não  o  con- 
vento das  irmãs,  mas  outro, — o  da  Esperança,  da 
mesma  cidade. 

A  Miguel  da  Cunha  Alcoforado  segue-se,  se  é  que 
não  antecedia,  Marianna  Alcoforado,  de  quem  espe- 
cialmente fallaremos, — e  a  ella,  outra  filha,  a  quem 
allude  o  testamento  dos  pães  e  que  era  já  casada 
então: — D.  Anna  Maria. 

Casara  esta  com  Rodrigo  de  Mello  e  Lobo,  rece- 
bendo de  dote  12:000  cruzados,  além  do  enxoval  e 
de  valiosos  donativos. 

N'aquelle  documento,  por  todos  os  titulos  inte- 


1  De  duas  filhas  temos  documento  paterno;  são  dois  reque- 
rimentos em  que  Miguel  expõe, — em  1695  e  1698, —  que  tendo 
essas  duas  filhas: — Leonor  eMicaela, —  no  convento  daElspe- 
rança  (Beja)  para  professarem  quando  tiverem  idade,  tem  con- 
tractado  com  o  convento  «que  se  contente»  com  as  quantias 
que  lhes  dá  em  dote  e  «que  não  herde  cousa  alguma  de  sua 
mãe  e  d'elle»,  e  pede  provisões  para  que  a  renuneiação  seja 
jurada,  sem  embargo  da  Ordenação  em  contrario.  São -lhe  con- 
cedidas: uma  em  27  de  outubro  de  169o,  outra  em  H  de  no- 
vembro de  1698.  Ha  inJieação  duvidosa  de  terceira  filha: — 
Marianna  Josepha. — Aquella  freira  Leonor,  ou  Leonor  The- 
reza,  sempre  veiu  a  herdar  alguma  coisa.  Como  succedia  mui- 
tas vezes,  a  morte  corrigia  os  planos  brutaes  dos  pães. 

O  filho  de  Miguel  da  Cunha  chamou-se  José  da  Costa  Al- 


128 


ressantissimo,  revela-se,  a  par  do  typo  dúbio  de 
Rodrigo  de  Mello,  a  affeição  de  Leonor  Mendes  pe- 
las filhas  e  o  caracter  severo  e  liso  de  Francisco  Al- 
coforado. Este  quasi  denuncia  como  ingrato  e  bur- 
lão o  genro. 

Rodrigo  de  Mello  e  Lobo  está  no  nome  denun- 
ciando prosápia  genealógica,  que  não  vale  a  pena 
apurar.  Francisco  Alcoforado  livera-o  em  casa,  du- 
rante cinco  annos,  em  tratamento  «de  males  enve- 
lhecidos e  tão  rebeldes  que  se  esgotou  toda  a  me- 
dicina para  os  desarreigar.»  Depois,  naturalmente, 
é  que  lhe  concedera  a  filha. 

Como  dissemos,  o  testamento  de  1660  cita  ainda 
uma  terceira  filha,  chamada  Gatharina,  que  ao  tempo 
era  noviça  no  convento  da  Conceição,  onde  estava 
Marianna.  O  pae  fizera  contracto  com  o  convento 
sobre  a  dotação  de  ambas. 

D'esta  Catharina,  porém,  não  encontramos  mais 


coforado.  Um  alvará  régio  de  1  de  dezembro  de  1703  continua- 
Ihe,  em  attenção  aos  serviços  do  pae  e  do  avô,  o  fôro  e  mo- 
radia de  fidalgo  da  Casa.  Uma  provisão  de  lo  de  setembro  de 
1727  continua-lhe  o  cargo  de  provedor  das  capellas  da  infanta 
D.  Brites. 

Casando  com  D.  Marianna  Brites  de  Albuquerque,  teve  Joa- 
quim Miguel  da  Cunha  Alcoforado,  que,  por  carta  régia  de  9 
de  agosto  de  1757,  foi  confirmado  no  mesmo  fôro  e  moradia 
de  fidalgo;  casou  este  com  D.  Maria  Clara  Francisca  Xavier  de 
Albuquerque,  e  morreu,  sem  descendência,  em  2  de  junho  de 
1768,  pelo  que  o  morgado  passou  ao  herdeiro  do  terceiro  fi- 
lho do  fundador. 


129 


noticias,  não  existindo  já  em  1664,  quando  se  fa- 
zem as  partilhas  por  morte  da  mãe. 

Falemos  agora  dos  filhos  de  Francisco  Alcoforado 
que  o  testamento  d'elle  não  cita. 

São  dois: — um  que  recebe  o  nome  dO  pae,  e  ou- 
tro, Maria,  depois  Peregrina  Maria. 

O  primeiro, —  Francisco  da  Costa  Alcoforado, — 
foi  baptisado  em  26  de  abril  de  1655. 

Seguiu  a  jurisprudência,  foi  juiz  de  fora  em  Be- 
nevente,  de  1684  a  1687,  provedor  dos  orphãos  e 
capellas  em  Lisboa,  e  por  Decreto  de  10  de  de- 
zembro de  1715  e  Carta  de  3  de  janeiro  de  1716 
nomeado  Desembargador  extravagante  da  Relação 
do  Porto,  cargo  de  que  tomou  posse  em  31  demarco 
do  ultimo  anno.  Em  1723  estava  aposentado. 

Casou  com  D.  Catherina  Arcangella  da  Cunha, 
filha  do  tenente  general  de  cavallaria  Belchior  de 
Torres  de  Se^iueira  o  captivo.  porque  o  havia  sido 
dos  moiros,  e  que  morreu  em  170i  em  campanha. 

Teve  dois  filhos  varões,  ao  primeiro  dos  quaes, 
— que  tinha  o  nome  do  pae  e  do  avô  paterno — veiu 
a  pertencer  o  morgado  dos  Alcoforados  por  quebra 
na  linha  de  Miguel  da  Cunha.  Teve  também  uma 
filha  que  segundo  o  costume  da  familia  e  do  tempo 
foi  freira.' 


'  Estes  filhos  foram: 

—  Francisco  da  Costa  Alcoforado  que  casou  com  D.  Maria 
Lopes  Pita,  tendo  d'ella  Francisco  da  Cunha  Alcoforado,  que 
era  capitão  reformado  do  regimento  de  milicias  de  Beja  em 

F.  9 


130 


Não  é  curioso, — se  não  é  particularmente  signi- 
ficativo,— que  todos  estes  Alcoforados,  com  todas 
as  suas  varias  descendências,  com  todas  as  múlti- 
plas ostentações  das  suas  prosapias,  passassem  até 
hoje  tão  desapercebidos  dos  geneologistas  e  inves- 
tigadores, e  que  apenas  pela  nota  desdenhosa  e  en- 
colhida da  coUecção  inédita  de  Aguiar  e  de  Mon- 
tarroio,  revelada  e  superficialmente  adoptada  por 
Camillo  Castello-Branco,  se  começasse  a  desconfiar 
de  que  poderia  não  ser  perfeitamente  phantasiosa 
a  indicação  do  exemplar  de  1668,  das  Cartas,  de- 
nunciada por  Boissonade?! . . . 


III 


Dos  filhos  de  Francisco  da  Gosta  e  de  D.  Leonor 
Mendes  os  que  nos  suggerem  um  maior  interesse, 
depois  de  Marianna,  são  necessariamente  Balthazar 
Vaz, — por  ter  sido  o  companheiro  de  armas  de 


1804  e  casara  com  D.  Cecília  Joanna  de  Sousa  Caldeira  Bar- 
reto Castello-Branco, 

— D.  Catherina  Victoria,  freira  na  Esperança  (Beja). 

— José  da  Cunha  Alcoforado,  que  em  180i  residia  também 
n'aquella  cidade,  sendo  capitão  reformado  da  cavallaria  de 
Torres  Novas,  e  tendo  casado  com  D.  Úrsula  Rosa  Pereira  de 
Campos. 


131 


Chamilly, — e  Peregrina  Maria,  —  que  foi  compa- 
nheira de  convento,  da  irmã. 

As  Cartas  não  falam  d'isto,  é  claro,  como  na  ob- 
sessão exclusivista  que  retratam,  mal  e  raramente 
alludem  a  qualquer  termo  alheio  áquella  situação 
subjectiva,  e  também,  muito  naturalmente,  porque 
ao  tempo  em  que  ellas  foram  escriplas,  Maria  era 
uma  creança,  ainda. 

Cremos,  comludo,  digamol-o  já  como  justificação 
de  nos  demorarmos  um  pouco  mais  com  esta  Al- 
coforado, que  a  sua  existência,  a  sua  creação,  pelo 
menos,  embora  nenhuma  relação  directa  tenha  com 
as  Cartas,  não  é  talvez  indifferente  ao  desenlace  do 
episodio  ou  da  paixão  funesta  que  as  inspirou. 

Além  de  que  esta  irmã  de  Marianna,  creada  por 
ella  desde  a  infância,  como  podemos  descobrir,  e 
chegando  a  occupar  os  primeiros  cargo  no  convento, 
é  citada,  posto  que  muito  incidentalmente,  por  um 
ou  por  mais  de  um  dos  chronistas  ecclesiasticos 
que  inteiramente  calam  o  nome  da  perceptora.  Tam- 
bém não  se  dera  por  isto,  e  mais  andava  impres- 
so!.. . 

Fazendo  o  seu  testamento  em  2  de  novembro  de 
1676  ás  grades  do  Coiívento  da  Conceição,  em  que 
é  noviça  e  vae  professar,  Maria  Alcoforado  mos- 
tra-se  muito  grata  e  previdente  para  com  Marianna, 
constitue-a  herdeira  dos  rendimentos  que  para  si 
reserva  e  faz-lhe  um  legado  especial  em  dinheiro 
que  deverá  ser-lhe  entregue  logo  que  esteja  liqui- 
dada a  herança  paterna. 

9* 


132 


Move-a  a  isto, — diz — «as  muitas  obrigações  que 
lhe  deve  pela  haver  creado  de  minina  de  três  an- 
nos.-» 

Tinha  pois  uma  certa  importância  saber  quando 
nascera.  Nas  nossas  primeiras  investigações  fica- 
ra-nos  obscuro  este  ponto^,  e  essa  obscuridade  sug- 
geria  naturalmente  duvidas  e  hypotheses  que  cau- 
telosamente exposemos. 

Uma  só,  das  ultimas,  nos  pareceu  segura,  e  essa 
podemos  hoje  confirmal-a.  É  a  de  que  logo  aos  três 
annos  entrara  Maria  Alcoforado  para  a  clausura 
conventual  pois  que  o  termo  de  óbito,  que  desco- 
bríramos, lhe  attribuia  82  annos  em  1741,  e  em 
1660,  quando  o  pae  fazia  o  seu  testamento,  era  já 
professa  Marianna. 

Mas  além  de  que  não  podemos  fiar-nos  inteira- 
mente na  estimativa  das  edades  Q'estes  termos  con- 
ventuaes, —  e  o  da  própria  irmã  nos  advertia  de 
como,  n'uns  casos,  a  vaga  tradição  oral,  e  n'outros, 
o  propósito  de  abreviar  ou  illudir  as  prescripções  le- 
gaes,  tornavam  precária  aquella  base  de  calculo, — 
duas  circumstancias  poderiam  objectar  as  datas  de- 
duzidas d'aquella  indicação. 

Era  a  primeira  a  de  se  dizer  simplesmente  n'esse 
mesmo  testamento  que  Maria  Alcoforado  quando  o 
fazia  (1676)  era  «maior  de  12  annos.»  Antes  de  os 
ter  não  poderia  testar,  é  certo,  mas  poderia  pro- 
fessar aos  16  e  mais  cedo.  Ha  até  nos  próprios  li- 
vros do  convento  muitos  exemplos  de  profissão  em 
menores  edades,  e  tendo  morrido  os  pães  e  tratan- 


133 


dose  de  liquidar  a  casa  e  de  constituir,  amigável 
e  definitivamente,  o  morgado,  poderia  bem  sup- 
pôr-se  que  se  esperasse  apenas  pela  edade  legal 
dos  12  annos  e  que  se  não  deixasse  approximar 
muito  a  da  profissão,  para  mover  Maria  Alcoforado 
a  fazer  aquelle  testamento  pelo  qual,  em  vez  de 
entregar  os  bens  á  instituição  piedosa  a  que  entre- 
gava a  existência,  os  declinava  em  beneficio  da  in- 
stituição mundana  que  havia  de  sustentar  a  prosá- 
pia do  nome. . .  e  dos  irmãos. 

O  próprio  convento  seria  interessado  em  que  ella 
professasse  cedo,  e  demais,  mostrando-se  tão  viva- 
mente empenhado  o  pae  em  consolidar  o  morgado 
que  fundara,  não  seria  natural  que  levasse  a  filha 
à  desistência  dos  seus  direitos  se  em  vida  d'elle  ti- 
vesse attingido  a  edade  de  testar,  como  teria,  de- 
certo, se  tivesse  realmente  nascido  quando  o  termo 
obituário  parecia  indicar:— em  1659? 

Depois, — e  esta  circumstancia  não  se  nos  aífigu- 
rava  menos  importante, — ter-se-hia  dado  este  facto 
extraordinário  de  uma  admissão  conventual  aos  três 
annos  de  edade. 

E  chamamos  extraordinário  o  facto,  sem  querer- 
mos dizer  com  isto  que  não  acontecesse  algumas 
vezes  serem  entregues  aos  conventos  de  freiras, 
creanças  de  edade  inferior  á  que  as  Constituições 
terminantemente  estabeleciam. 

Este  monstruoso  enterramento  da  infância  na  vida 
claustral^  não  seria  até  extremamente  raro,  con- 
vindo notar  que  esses  conventos  eram  os  únicos  es- 


134 


tabelecimentos  de  educação  e  instrucção  femenina 
que  existiam  então. 

Mas  aos  três  annosl. . . 

Precisamente  as  Constituições  do  convento  da  Con- 
ceição recommendavam  muito  expressamente  que 
não  se  dispensasse  a  edade  de  12  annos  para  a 
admissão  —  «se  não  ha  caso  tão  grave  que  quasi 
seja  forçoso,  pollos  danos  que  se  experimentão  de 
criar  mininas  em  os  Mosteiros. í>^ 

E  preceituavam  ainda: — «Se  se  receber  algíia 
minina  menor  de  dose  annos,  não  esteja  debaixo  da 
Mestra  das  Nouiças,  mas  seja  outra  Religiosa  depu- 


1  Constitviçoens  \  geraes,  |  para  todas  as  freiras,  e  religiosas, 
I  sõjeitas  â  obediência  da  Ordem  de  N.  P.  S.  Fran  \  cisco  em 
esta  familia  Cismontana:  \  de  novo  recopiladas  das  antigas, 
e  acrescentadas,  com  acordo,  consentimento,  &  aprouação  do 
Capitulo  Geral  celebrado  em  Roma  a  onze  de  Junho  do  Anno 
de  Mil,  seiscentos  &  trinta  &  noue  etc. — Tradvzidas  de  espa- 
nhol em  portvgvez,  &  acrescençoens  que  se  fizerão  em  os  Ca- 
pítulos Geraes,  que  se  seguirão,  por  mandado  do  N.  R.  P.  Fr. 
Joseph  Ximenes  Samaniego,  Ministro  geral  de  toda  a  ordem : 
E  de  nouo  mandadas  obseruar  em  o  Capitulo  Geral  que  se 
celebrou  em  Roma,  no  Anno  de  i676. — Lisboa  —  ISa  oíficina 
de  Miguel  des  Landes, — m.dc.lxxxi. 

Exemplar  abbadecial  da  Conceição.  Estas  Const.  tinham  sido 
revistas  e  mandadas  executar  em  capitulo  geral,  em  Roma,  em 
1630.  Novo  capitulo  geral  em  167(5  recommenda  a  sua  execu- 
ção, e  em  1681  foram  vertidas  do  hespanhol  para  portuguez 
recommendando-se  novamente  a  sua  execução  em  carta  pa- 
tente do  provincial  Fr.  Manoel  de  S.  Thiago.  que  lembrava 
ás  abbadessas  a  excommunhão  maior  latae  sententia  se  não 
trouxessem  comsigo  o  código  conventual. 


135 


tada  para  isto  que  a  tenha  A-  ensine  até  que  tenha 
dose  annos,  porque  desde  então  hade  entrar  em  o 
Nouiciado  á-  estar  com  as  mais  Nouiças,  até  que 
professe.» 

De  que  não  seriam  lettra  morta  aquelles  precei- 
tos, temos  testemunlio  no  facto  revelado  por  um 
clironista,  de  ter  sido  preciso  um  breve  pontifício 
para  que  podesse  ser  admittida  aos  7  annos,  no 
convento,  uma  das  próprias  companheiras  de  Ma- 
ria Alcoforado. 

No  termo  de  óbito  de  outra,  Josepha  Maria  de  Je- 
sus,— em  junho  de  1700, —  conta-se  também,  jus- 
tificando largamente  o  facto,  que  n'essa  edade  fora 
admittida  depois  de  varias  deligencias  e  auctorisa- 
ção  superior,  trinta  annos  antes.* 

Não  parecia  tudo  isto  denunciar  que  um  grave 
caso,  no  dizer  das  Constituições,  dera  origem  á  en- 
trada de  Maria  Alcoforado  quando  apenas  — «me- 
nina de  três  annos?» 

Se  ella  tivesse  nascido  em  1659  esse  caso  deve- 


1  — «. . .  entrou  no  Conv.'"  deydade  de  sete  annos,  o  pay 
empobreseu  não  teue  p.*  lhe  dar  todo  o  dote. . .» 

Liv.  das  Religiosas  defuntas  (  o  1."),  etc.  MS.  eit. 

Mas  de  uma  outra  admissão  aos  3  annos  temos  exemplo 
n'este  mesmo  livro.  É  a  de  Rosa  Maria  do  Rosário,  que  mor- 
reu, de  19  annos,  em  15  de  dezembro  de  1698,  de  quem  diz 
o  respectivo  termo: — «sendo  criada  no  Cõuento  dejdade  de 
três  annos  con  hii  breve  de  sua  sãtidade  q.  lhe  consedeu  p.'  q. 
desta  jdade  viese  e  eixersitou  os  annos  da  minise  em  apren- 
der a  ler  e  cantar  e  estrumentos  q.  em  tudo  foy  m.°  sabedora». 


136 


ria  ter-se  dado  em  1662.  Nenhuns  vestígios  encon- 
trávamos d'elle.  Em  1662  o  pae  adoece  e  é  só  en- 
tão, em  14  de  outubro,  que  entrega  ao  official  pu- 
blico o  testamento,  feito  em  1660. 

Morreria  por  este  tempo  aquella  filha  Catharina 
que  estava  para  professar  na  Conceição? 

Mas  além  de  que  o  facto  não  explicaria  bem  a 
immediata  entrada  da  outra  para  a  clausura,  tão 
nova  e  em  vida  da  mãe,  natural  fora  que  qualquer 
declaração  emendasse  a  que  no  testamento  se  re- 
feria á  existência  da  malograda  noviça  e  ao  con- 
tracto feito  com  o  convento. 

Um  acontecimento  explicaria  tudo,  observámos 
então: — seria  a  morte  da  mãe. 

Gomprehende-se  que  as  circiimstancias  do  tempo 
não  permlttissem  ao  velho  Alcoforado  e  aos  filhos 
cuidar  da  creação  da  creança,  e  que  d'ella  tomas- 
sem conta  as  irmãs.  Nem  vale  a  pena  discutir  se 
não  seria  mais  natural  que  o  fizesse  antes  a  irmã 
casada,  do  que  a  freira  professa. 

Mas  quando  publicávamos  o  nosso  primeiro  tra- 
balho, não  poderamos  apurar  a  data  da  morte  de 
Leonor  Mendes  e  o  próprio  testamento  do  marido 
fazia  suppor  que  esse  acontecimento  se  dera  em 
1671,  data  da  abertura  d'aquelle  diploma. 

Podemos  hoje  resolver  a  questão. 

Maria  Alcoforado  nasceu,  não  quando  o  indica  o 
termo  d'obito  conventual,  nem  muito  depois  como 
poderia  deduzir-se  do  seu  próprio  testamento,  mas 
em  1660,  sendo  em  3  de  setembro  baptisada  na 


137 


igreja  de  S.  João  de  Beja,  pelo  próprio  irmão  na- 
tural José  da  Costa  .Alcoforado,  e  servindo  de  pa- 
drinho o  outro  irmão,  Balthazar  Vaz. 

E  «o  caso  tão  grave  que  quasi  seja  forçoso», — 
exigido  pelas  Constituições  para  a  admissão  e  crea- 
ção  de  «mininas  em  os  Mosteiros»,  foi  realmente  a 
morte  da  mãe  nos  fins  de  1663  ou  princípios  de 
1664,  quando  Maria  Alcoforado  tinha  apenas  os  três 
annos,  como  diz  no  seu  testamento*.  Fazendo  este 
em  1676,  professou  regularmente  aos  16. 

É  fácil  de  ver  que  estes  factos  não  podiam  ser 
indiíferentes  ao  nosso  assumpto.  Não  o  são,  até,  á 
historia  critica,  diremos  melhor:  physiologica,  do 
episodio  das  Cartas. 

Aquella  existência  infantil  que  subitamente  se  en- 
laçava na  da  enclausurada  e  adolescente  religiosa 
de  algum  modo  lhe  havia  de  perturbar  e  interrom- 
per o  trabalho  da  absorpção  mystica  com  o  fer- 
mento mundano  de  uma  maternidade  incompleta. 
Seria  como  um  raio  de  sol,  realentador  e  fecun- 
dante, cahindo  a  prumo  nos  vagos  anceios  de  uma 
opulenta  mocidade  que  se  estiolava  e  debatia  na 


1  Uma  nova  pesquiza  nos  livros  findos,  armazenados,  mais 
exactamente  amontoados  na  Gamara  ecelesiastica  de  Beja,  deu- 
nos  a  descoberta  do  novo  termo  baptismal.  E  a  noticia  da 
data  obituária  de  Leonor  Mendes  veiu  dar-nos  razão  ao  es- 
crúpulo que  exposemos  na  primeira  edição,  em  aceitar  a  hy- 
pothese  seductora  de  que  fosse  a  mãe  de  Marianna  que  pro- 
curando um  derivativo  á  obsessão  amorosa  d'ella  lhe  confiasse 
a  irmãsinha. 


138 


solitária  e  monótona  fatalidade  d'aquella  sepultura 
antecipada  da  clausura,  Trazia-lhe  a  animar-lhe,  a 
eslimular-lhe  os  estos  de  um  organismo  e  de  uma 
alma  de  mulher  intelligente,  moça,  forte, —  reagindo 
contra  os  vagos  e  inanes  deleites  da  «contemplação 
e  da  oração  mental», — um  fermento  novo  de  vida 
e  de  expansão  affectiva,  sexual,  positiva. 

Devia  ser  este,  certamente,  um  dos  «damnos» 
que  segundo  as  Constituições,  se  experimentavam 
em — «criar  mininas  em  os  Mosteiros». 

Se  nas  Cartas  não  ha, —  e  perfeitamente  se  com- 
prehende  que  não  haja, — allusão  expressa  á  irmã- 
sinha  de  Marianna, —  n'ellas  se  encontra  mais  de 
uma  vez  o  traço  nitido  d'este  embate  e  sobreposi- 
ção de  sentimentos,  tão  natural  e  lógico,  e  exacta- 
mente na  ultima,  quando  a  obsessão  apaixonada  en- 
fraquece e  desarma  perante  a  realidade  implacável, 
se  denuncia  a  retrogradação  instinctiva  da  pobre 
religiosa  aos  affectos  de  familia  e  a — «um  estado 
mais  tranquillo», — como  ella  diz,  que  seria  natural- 
mente o  da  educação  da  pequena  irmã.  A  própria 
existência  d'esta,  em  tão  tenra  edade,  na  clausura, 
deveria  proporcionar  a  Marianna  uma  vida  mais 
desafogada  das  estreitas  imposições  e  vigilâncias 
devotas,  além  de  que  Francisco  da  Costa  Alcofo- 
rado fizera  então^  segundo  denuncia  o  testamento 
da  futura  freira,  e  como  já  dissemos,— «umas  casas 
no  convento», — que  as  filhas  habitariam  um  pouco 
emancipadas  da  vida  em  commum. 

Voltemos  porém  a  Maria  Alcoforada  que  profes- 


139 


sando,  antepoz  ao  nome  o  de  Peregrina,  passando 
a  chamar-se  e  assignar-se  invariavelmente  Dona  Pe- 
regrina Maria  Alcoforada. 

É  somente  em  1 690  que  a  encontramos,  de  novo, 
já  então  escrivã  do  mosteiro,  cargo  que  exerce  até 
1696,  pois  que  é  de  5  de  abril  d'este  anno  o  ul- 
timo termo  obituário  por  ella  escripturado  no  Livro 
das  Religiozas  defuntas  do  Beal  Comiento  da  Con- 
çeipção  de  Beja,  livro  que  ella  organisa  e  abre*. 

Estes  registos  conventuaes,  —  sobretudo  os  de 
freiras, —  são  um  pouco  menos  áridos  e  formalistas 
do  que  os  nossos  modernos  registos  officiaes.  Por 
assim  dizer,  sente-se  mais  a  intelligencia, —  e  ás 
vezes  até  o  coração, —  de  quem  os  escreveu,  atra- 
vez  da  narrativa  passiva  e  obrigada  dos  fados. 

Peregrina  Alcoforado  excede  mesmo  o  padrão 
vulgar.  Como  que  constrangida  na  secca  e  lacónica 
redacção  do  termo,  quando  trata  de  registar  os  óbi- 
tos das  suas  companheiras,  expande  as  recordações 
e  a  observação,  uma  ou  outra  vez,  n"uma  espécie 
de  esbocetos  biographicos  que  não  deixam  de  ser 
interessantes. 

Ha  um  até,  muito  interessante, —  que  occupa  não 
menos  de  7  paginas  do  obituário  e  rompe  no  ex- 
cesso de  intitular-se: — «  Vida  e  morte  da  m.^  Anna 
M.^  de  São  francisco  Relligioza  neste  Conu.^  de  Nossa 


1  Dissemos  já  que  o  primeiro  livro  das  profissões  desappa- 
receu. 


i40 


Srã.  da  Conceição.  É  uma  curiosa  nota,  directa- 
mente surprehendida,  da  vida  e  do  mysticismo  claus- 
tral,  em  que  a  escrivã  se  faz  inconscientemente  es- 
criptora^  na  ingénua  expansão  do  seu  saudoso  res- 
peito pela  companheira  e  amiga. 

São  16  os  termos  que  encontramos  feitos  por 
Maria  Alcoforado,  sendo  o  primeiro  de  16  de  agosto 
de  1690  e  o  ultimo  de  15  de  abril  de  1696*.  Es- 
criptos  com  uma  certa  despreoccupação  original  do 
formulário  sugerem  o  reparo  do  vizitador  Fr.  José 
da  Trindade,  em  15  de  novembro  de  1694,  fazen- 
do-lhe  recommendar— «á  M.®  Escrivã  q  acabe  to- 
dos os  termos  na  forma  do  papel  adjunto  e  q  não 
deixe  folhas  em  branco,  senão  q  sempre  se  conti- 
nuem os  termos  com  distincção  de  três  dedos  en- 
tre huns  e  outros». 

Se  foi  escrupulosamente  seguida  a  medida,  de- 
veria ter  os  dedos  elegantemente  afilados  a  madre 
escrivã. 

Calligraphia  e  dicção, —  mais  correctas  do  que  o 
commum, — são  nitidas  e  firmes,  poderia  mesmo  di- 
zer-se  que  tem  um  certo  ar  distincto,  no  longo  cor- 
tejo de  escripturas  banaes,  confusas,  desleixadas. 

Evidentemente:  Maria  Alcoforado  é  intelligente  e 


1  Fecha  esta  parte  com  o  termo  de  visitaçâío  de  Fr.  Joseph 
da  Trindade,  «ministro  provincial-),  em  19  de  outubro  de  1696. 
O  tenno  que  se  Uie  segue  é  de  nova  escrivã,—  Soror  Maria  de 
S.  Francisco, — em  o  de  abril  de  1C97.  Passara-S3.  pois,  ao  que 
parece,  um  anno  em  que  não  houvera  óbitos  a  registar. 


141 


instruída.  Escreve  facilmente,  com  segurança,  com 
uma  certa  distincção  até.  Parece  saber  latim,  escre- 
vendo-o  correctamente  nas  citações,  tem  uma  tal 
ou  qual  educação  litteraria,  revela  uma  individuali- 
dade própria. 

Já  no  testamento  de  1076,  se  sente  uma  intelli- 
gencia  e  uma  vontade  mais  acentuada  e  segura, 
mais  pratica  e  mais  senhoril  do  que  poderia  espe- 
rar-se  na  edade,  e  sobretudo  nas  condições,  da  jo- 
ven  noviça. 

Será  muito  aventuroso  suppor  ver  n'esse  curioso 
documento,  alguém  que  ostensivamente  não  assiste 
ao  acto,  mas  cuja  intelligencia  e  educação  deve  ter 
tido  a  principal  influencia  na  formação  da  futura 
freira? 

Tendo  sido  esta  creada  por  Marianna  Alcoforado, 
desde  «menina  de  três  annos»,  naturalmente  nos 
inclinamos  a  julgar  um  pouco  da  mestra  e  educa- 
dora, pelas  revelações  intellectuaes  da  pupilla. 

Convém  notar  tudo  isto  até  por  ser  vulgar  entre 
nós, — ainda  entre  pessoas  illustradas,  entre  litte- 
ratos,  até! — ^a  absurda  idéa  de  que  os  conventos 
eram  recessos  de  ignorância  idiota  e  de  que  as  mu- 
lheres portuguezas  só  por  excepção  raríssima  pode- 
riam ter  sido  seres  racionaes,  alguns  séculos  atraz. 
Manifestamente  os  filhos  de  Francisco  Alcoforado 
não  eram  refractários  ás  lettras.  De  Balthazar  Vaz 
notámas  isto  já.  De  outros  dois  temos  também  tes- 
temunhos directos.  E  teremos  occasião  de  nos  re- 
ferir a  uma  descoberta  interessante: — a  da  exis- 


142 


tencia  de  uma  pequena  bibliotheca  de  200  livros 
francezes,  na  successão  da  família.  * 

D.  Peregrina  Maria  apparece-nos  como  abbadessa 
no  triennio  de  1730-1732.  Embora  nos  antecipe- 
mos um  pouco,  notemos  já  esta  circumstancia  de 
que  nunca  o  foi  a  irmã,  sua  iniciadora  e  mestra  na 
vida  conventual,  e  então  uma  das  mais  antigas  re- 
ligiosas. 

É  mesmo  no  seu  abbadessado  que  começa  a  escri- 
pturar-se  um  dos  mais  formosos  registos  que  ainda 
encontrámos  no  convento:  o  livro  segundo  das  «en- 
tradas e  profissões»,  elegantemente  encadernado  em 
marroquim  com  tarjas  douradas  e  fechos  de  me- 
tal,— numerado  e  rubricado  em  27  de  setembro  de 
1732  por  fr.  Pedro  das  Chagas.^ 


1  Outra  Alcoforado  nos  apparece  escrivã  da  Conceição,  pou- 
cos annos  depois,  em  1709.  É  D.  Leonor  Jacoba  da  Cunha 
Alcoforado  que  julgáramos  filha  de  Miguel  da  Cunha  e  que 
pode  ser,  antes,  a  de  Balthazar  Vaz.  A  uma  outra  sobrinha, 
Caetana,  allude  Peregrina  Maria  no  seu  testamento,  natural- 
mente a  filha  da  irman  casada  com  R.  de  Mello,  que  nascera 
no  mesmo  anno  que  ella, — em  12  de  março  de  16G0, — segundo 
outro  termo  baptismal  que  encontrámos  no  mesmo  livro  em 
que  descobrimos  o  de  Maria  Alcoforado  : — «Caiatana,  filha  de 
Rui  de  Mello  e  D.  Anna,  padrino  Bartholomeu  Lobo.»  Mais 
tarde  professa  no  convento  uma  D.  Catharina  Eufemia  Queru- 
bina  da  Cnnha  Alcoforado,  filha  do  doutor  José  da  Cunha  Al- 
coforado e  de  D.  Rosa  Maria  Raposa,  «naturaes  de  Beja». 

E  diziam  que  não  se  encontravam  Alcofo radas  n'este  vi- 
veiro d'ellns ! . . . 

2  Abre  com  este  titulo : — Livro  2°  1  Das  entradas  no  Rea 


i43 


O  nome  de  Peregrina  Maria,  como  abbadessa  ap- 
parece  também  n'uma  chronica,  extremamente  in- 
teressante, publicada  em  1753,  que  poderia  ter  pou- 
pado aos  commentadores  das  Cartas  a  inútil  exhu- 
mação  do  pagem  de  Villa  Viçosa  para  fundamenta- 


Mosteiro  de  |  Nossa  Senhora  da  Conceição  de  Beja  \  do  dia  27 
de  setembro  de  1132  até  \  — no  qual  se  accrescentarão,  além  do 
seo  Nu  I  mero  correspondente  em  cada  assento,  dois  |  índices, 
hum  cronológico,  que  começa  f.  121  \  e  outro  Alfabético,  que  prin- 
cipia f.  126  I  sendo  Abbadessa  a  R.  M.  D.  Maria  Theotonia  de 
Santa  Anna,  \  e  Escrivãa  \  a  M.  D.  Margarida  Rosa  Joaquina 
do  Carmo  \  no  1795  \  — 

NB.  Neste  mesmo  Volume  se  contem  o  Livro  \  2.°  das  Profis- 
sões, que  começa  f.  141  \ 

Vê-se  que  este  titulo  foi  anteposto  ao  primitivo,  escripto  na 
folha  seguinte  com  moldura  desenhada  á  penna  e  lettra  cui- 
dada '.-r- Livro  das  Entradas,  e  \  Profissões,  que  teve  a  M.  R.  M." 
1  e  senhora  D.  Peregrina  Maria  |  Alcoforada  Ab."  deste  Real 
Conv.^°  I  de  N.  Snr.^  da  Conceyção,  \  sendo  sua  Escrivã  |  A  M." 
Ignez  losozefa  Bap.'"  Pr.^  |  na  era  de  |  1732 

A  fs.  120  e  ncão  12i  começa  o  Catalogo  cronológico  das  En- 
tradas no  Real  Mosteiro  de  N.  S.^  da  Conceição  de  Beja,  que  vae 
até  fs.  123  verso,  sommando  os  nomes  155,  A  fs.  126  começa 
o  Catalogo  Alfabético,  que  vae  até  fs.  140. 

Na  folha  141  lê-se  : 

Proficons  que  ouve,  feitto  este  |  Livro  de  nouo^  pella  M.^  \  Es- 
crivam  Ignez  losepha  \  Bap.^^  Pr.^,  sendo  Abb.^  |  o.  M.  R.  M.^  e 
S."  D.  Pe  I  regrina  M."  Alcoforada  |  na  Era  de  1732  an."  Sf  | 

E  no  verso  d'essa  mesma  folha : 

Livro  2."  I  Das  profissões  feitas  no  Real  Mosteiro  de  |  Nossa 
Senhora  da  Conceição  de  Beja  do  \  dia  14  de  outubro  da  1732 
ate  I  — no  qual,  alem  do  seo  Numero  correspondente  \  em  cada 
assento,  se  acrestaraõ  dois  índices  \  no  fim  hum  cronolog  ico,  q, 


m 

rem  a  suspeita  de  que  teriam  existido  Alcoforados 
para  os  lados  de  Beja!* 

Depois  de  a  encontrarmos  abbadessa  do  convento 
da  Conceição,  só  podemos  tornar  a  encontrar  Pere- 
grina Maria  Alcoforado, — e  ainda  n'um  registo  ini- 


começa  f.  252  \  e  outro  alfabético  q.  principia  f.  258  \  sendo  Ab- 
badessa no  1795  a  \  R.  M-  D.  Maria  Theotonia  de  S.'*  Anna,  \ 
e  Escrivãa  a  |  M.  D.  Margarida  Rosa  loaquina  do  Carmo  \ 

0  catalogo  chronologico  acaba  em  fs.  255  e  somma  142  pro- 
lissões.  A  fs.  27â  lese  o  seguinte  termo: — «Satisfazendo  ao 
mandado  e  ordem  do  N.  M.  R.  P.*  Fr.  Ant.°  da  Purificação, 
Preg.°''  da  Mad."  e  da  Prov.''  de  Portugal,  e  Prov.^'  da  dos  Alg.'' 
numerei,  e  rubi-iquei  este  livro  das  entradas,  e  profissões,  e 
achei  constar  de  duz.'-""  e  setenta  e  duas  folhas  principiando 
desde  o  pr.°  Termo  e  entrada,  e  p."  test."  da  verd.*  me  assigno 
hoje  27  de  settembro  de  1732. — Fr.  Pedro  das  Chagas.  L.'"" 
lub."  e  Vig."  do  conven.*".  O  livro  é  formado  por  caderyios  de 
8  folhas  de  formato  pequeno  (8.°)  encadernado  em  marroquim 
com  tarjas  douradas  e  fechos  de  metal.  O  primeiro  termo  de 
entrada  é  de  27  de  setembro  de  1732,  sendo  Abbadessa  D.  Pe- 
regrina Maria  Alcoforado.  No  anno  seguinte,  a  2  de  maio,  a 
abbadessa  é  outra: — Soror  Filipa  Maria  Evangelista. 

É  realmente  deplorável  que  não  se  tenha  procurado  conser- 
var estes  livros  conventuaes,  alguns  até  sob  o  aspecto  artístico, 
extremamente  curiosos.  Este  que  acabamos  de  descrever  está 
perfeitamente  conservado,  e  mais  ums  vez  notaremos  quanto 
é  extraordinário  que  tantas  tentativas  de  investigação  feitas 
acerca  das  Alcoforados  de  Beja,  não  lograssem  encontrar  este 
e  os  mais  documentos  que  vamos  citando,  e  que  ainda  hoje 
se  diga  e  se  escreva  que  não  existe  em  Beja  e  no  convento  da 
Conceição,  vestigio  documental  do  simples  nome  da  religiosa 
das  Cartas  indicada  pela  nota  de  Boissonade. 

1  Chron.  seraf.  etc.  por  Fr.J.  de  Belém.  Lisboa,  1853. 


145 


ciado  sob  o  seu  abbadessaflo, — morta  em  2  de  no- 
vembro de  1741,  de  «hua  malina q  durou  três  dias». 

Soror  Clara  Isabel  Baptista,  a  escrivã  d'aquelle 
anno,  não  se  esquece  de  accrescentar  que  a  muito 
reverenda  madre  dera  a  alma  ao  Creador  «com  si- 
gnaes  de  predestinada»  e  informa,  como  dissemos 
já,  que  linha  82  annos  de  edade. 

Tinha  81,  e  78  de  clausura! 

Forte  e  resistente  raça,  a  d'estes  Alcoforados! 

Setenta  e  oito  annos,  corpo  e  alma  de  mulher 
meridional,  evidentemente  vigorosa  e  sã,  formosa 
talvez,  intelligente  e  amoravel,  sem  duvida, — se- 
questrados entre  as  grades  e  as  paredes  d'aquella 
enorme  prisão, —  sempre  a  mesma! — girando  con- 
stantemente no  mesmo  pequenino  meio  de  obses- 
sões idiotas  e  de  devoções  obrigadas! 

Desde  «menina  de  três  annos»!... 

E  comtudo  muitos  mais  amios  se  agarraram  outras 
áquella  vida  e  áquella  masmoi  ra  que  um  chronista  en- 
thusiasta  chama  «um  paraíso  de  flores  odoríferas». 

Em  1736,  por  exemplo,  fallecera  uma  compa- 
nheira de  Pei'egrina  Alcoforado,  com  120  annos. 

A  essa,  quando  já  tão  resequida  pelo  tempo  que 
não  tinha,  como  no  convento,  de  «castigar  as  re- 
beldias  da  carne»,  segundo  a  piedosa  e  auctorisada 
revelação  do  outro  historiador  franciscano,  deixa- 
ram-n'a  ao  menos  ir  aquecer  os  ossos  ao  sol  da  li- 
berdade e  no  conchego  da  familia.  * 


1  Chron.  seraf.  etc.  por  Fr.  J.  de  Belém. 

F.  10 


i46 


Se  é  que  tinha  uma  família  que  a  reconhecesse 
e  amasse  a  pobre  múmia  inútil! 


IV 


Como  vimos,  Marianna  Alcoforado  nascera  alguns 
mezes  antes  de  estalar  a  revolução  nacional  de  1640, 
cujo  fermento,  no  Alemtejo,  se  fizera  sentir,  com 
inilludivel  nitidez,  nos  tumultos  de  Évora,  de  1637 
e  1638. 

É  claro  que  não  seria  agora  occasião  de  esboçar 
aquelle  formidável  e  dramático  acontecimento  que 
levou  mais  de  um  quarto  de  século  a  representar 
nos  campos  de  batalha  e  nos  gabinetes  da  intriga 
politica, — atravez  dos  quaes,— de  uns  e  de  outros, 
— passou  triumphante,  como  era  necessário  e  justo, 
a  Independência  Portugueza. 

Não  precisamos  tão  pouco,  demorar-nos,  por  mais 
forte  que  seja  a  seducção,  no  estudo  da  epocha  ou 
dos  successos  de  que  as  Cartas  casualmente  sahi- 
ram  trazendo  já  cortadas  as  suas  ligações  propria- 
mente históricas  pelo  caracter  absorvente  e  exclu- 
sivo do  episodio  que  se  espelha  e  retrata  n'ellas. 
■  É  certo,  comtudo,  que  em  volta  do  berço  da  fu- 
tura freira,  aquelles  successos  haviam  de  fazer  logo 
um  grande  alvoroço  confuso  de  enthusiasmos  e  af- 
fliccões. 


147 


A  vida  em  Beja  não  tardaria  em  tornar-se  pouco 
tranquilla  e  segura,  e  na  Casa  dos  Alcoforados  ha- 
viam de  sobejar  os  cuidados,  para  que  a  educação 
das  filhas  podesse  fazer-se  com  esmero  no  meio 
d'aquella  azáfama  bellicosa  que  logo  seguiu  a  re- 
volução. 

D'aqui  veiu,  naturalmente,  abreviar-se  a  entrada 
no  convento,  de  Marianna  e  de  Catharina,  as  duas 
irmãs  e  companheiras  do  testamento  de  1660. 

O  pae  lançara-se  intrepidamente  na  incerta  aven- 
tura. 

Corria  a  fronteira, —  administrador  e  soldado, — 
reunindo  dinheiro^  gente,  viveres,  cavallos ;  escara- 
muçando  com  os  hespanhoes;  preparando  a  resis- 
tência à  invasão  eminente;  organisando  a  adminis- 
tração para  os  grandes  esforços  de  uma  lucta  des- 
esperada. 

A  guerra  ia  desdobrar- se  feroz,  e  o  futuro  era 
duvidoso  e  escuro. 

O  Alemtejo  tinha  de  ser  o  theatro  dos  maiores 
movimentos  bellicos. 

Sempre  por  alli  nos  vibrara  o  castelhano  os  gol- 
pes mais  certeiros  e  terríveis  da  sua  velha  ambi- 
ção. Quasi  sempre,  travada  a  lucta  entre  as  duas 
nações  peninsulares,  rompíamos  nós  pela  Galliza 
adentro  e  os  hespanhoes  invadiam-nos  pelo  Alem- 
tejo. 

Tínhamos,  é  certo,  d'este  lado  sentinellas  valen- 
tes:—  Olivença,  Moura,  Estremoz,  Campo  Maior, 
Arronches,  etc. — mas,  coitadas,  o  abutre  da  domi- 

10* 


148 


nação  hespanliola,  que  duraíite  sessenta  annos  rião 
se  fartara  de  sugar-nos  todos  os  recursos  e  todas 
forças,  tinha-as  desarmado  e  enfraquecido  também. 

Beja,  mesmo,  não  poderia  considerar-se  segura 
quando  as  forças  inimigas  que  corriam  á  fronteira, 
a  rompessem  impetuosamente  do  lado  da  Andaluzia. 

E  Beja,  pela  sua  situação  central  e  pelos  seus  es- 
peciaes  recursos,  teria,  em  todo  o  caso,  de  desem- 
penhar um  papel  importante  na  organisação  e  no 
aprovisionamento  da  defeza  nacional,  d'aquelle  lado. 

Só  mais  tarde,  porém,  quando  a  lucta,  depois  de 
arrastar-se  longa  e  incertamente,  começa  a  assumir 
um  caracter  mais  decisivo,  e  que  o  velho  e  ator- 
mentado leão  ibérico,  vexado  pela  resistência  dos 
portuguezes,  ensaia,  furioso,  o  salto  fatal,  é  que  pa- 
rece pensar-se  mais  seriamente  na  situação  e  na 
utilidade  estratégica  de  Beja. 

Por  um  Nicolau  de  Langres,  o  conde  do  Prado 
fizera  levantar  a  planta  da  cidade.  Em  'íO  de  julho 
de  1660  o  Supremo  Conselho  de  Guerra  adverte 
que  em  Beja  «está  muito  dinheiro  para  a  fortifica- 
ção d'ella,  de  que  convém  tratar  sem  dilação.»  Logo 
quatro  dias  depois,  em  24  d'aquelle  mez,  resolve- 
se  que  a  planta  «approvada  pelos  mais  engenhei- 
ros» se  remetia  ao  conde  de  Athouguia,  então  ge- 
neral das  armas  do  Alemtejo,  para  que  este  incumba 
a  execução  das  fortificações  projectadas  a  uma  junta 


1  Does.  do  Conselho  de  guerra,  no  Arch.  Nac. 


149 


composta  do  governador  de  Beja,  do  provedor  e 
corregedor  respectivos,  e  dos  officiaes  da  camará.* 

Este  Langres  parece  ter  sido  um  dos  primeiros 
aventureiros, — e  quasi  todos  estes  primeiros  foram 
de  má  espécie, — que  se  oíTereceram  a  Portugal. 

Pouco  depois  bandeava-se  para  o  serviço  de  Gas- 
tella,  pois  que  um  curioso  impresso  de  1663  diz 
d'elle  o  seguinte ':— «Era  general  de  artilheria  ad 
honorem  Monseur  de  Langres  que  ao  soldo  Portu- 
guez  veiu  aprender  o  qne  vae  ensinar  aos  nossos 
inimigos  pois  que  não  trasendo  mais  que  a  cazaca 
de  hum  pobre  forasteiro  d-  a  sciencia  de  hum  igno- 
rante riscador.  cõ  o  nosso  dispêndio,  não  conhe- 
cendo as  obrigações  a  quem  lhe  deu  o  ser,  como 
quem  tinha  poucas  serve  ao  partido  contrario.» 

Outras  preoccupações  e  necessidades  da  guerra 
parecem  ter  feito  addiar  a  execução  d'aquellas  or- 
dens, pois  que  ainda  em  1665,  em  2o  de  novem- 
bro, sendo  nomeado  governador  da  praça  e  cidade 
de  Beja  o  sargento-mór  da  batalha  Diogo  Gomes  de 
Figueiredo,  se  lhe  recommenda  que  trate  das  for- 
tificações. 

Gomtudo  Beja  tornara-se  o  centro  de  um  grande 
movimento  mihtar,  uma  espécie  de  grande  deposito 
e  aquartelamento  do  exercito  do  Alemtejo. 

Alli  se  reuniam  e  organisavam  algumas  das  for- 
ças que  tinham  de  ir  servir  na  fronteira  e  alli  vi- 


1  Campanha  de  PoríV'gal  pella  provinda  de  Alemtejo  na  pri- 
mavera do  anno  de  1663. 


i50 


nham  aquartelar-se  parte  d'ellas  quando  os  ardo- 
res do  verão  apertavam,  interrompendo  a  campa- 
nha, como  as  neves  e  as  chuvas  interrompiam  n'ou- 
tros  paizes  as  operações  mihtares. 

Alguma  coisa  grave  se  passara  em  1662,  pois 
que  a  6  de  fevereiro  d'esse  anno  se  mandava  abrir 
devassa  contra  o  governador  da  cidade. 

Em  1663  Beja  era  agitada  pelo  pânico  da  capi- 
tulação de  Évora  e  por  um  tumulto  succedido  com 
soldados  inglezes,  sobre  o  qual  se  instaurava  tam- 
bém inquérito  official. 

Era  já  então  muito  considerável  o  numero  dos 
auxiliares  estrangeiros, — gente  aventureira  de  va- 
rias naturalidades  e  de  diíTicil  disciplina  que  prin- 
cipalmente se  accumulava  no  exercito  do  Alemtejo. 
Habilmente  organisada  e  distribuída  em  corpos,  tanto 
quanto  possível  homogéneos,  batendo-se  valente- 
mente, essa  gente  não  era  naturalmente  um  modelo 
de  costumes  polidos  e  honestos. 

Uma  narração  da  defeza  de  Villa  Viçosa  e  da  ba- 
talha de  Montes-Claros,  não  regateando  louvores  à 
valentia  e  aos  bons  serviços  d'estes  estrangeiros, 
mas  narrando  também  as  violências  e  desacatos  que 
elles  commettiam  particularmente  nas  egrejas  e  nos 
conventos,  diz  que  ás  queixas  que  se  dirigiam  ao 
Marquez  General  (Marialva)  este  respondia: — «Que 
hei  de  fazer,  com  tão  barbaras  nações  como  as  que 
compõem  este  exercito?» ' 


«Quexaron-se  los  Religiosos  desto,  y  de  niuchas  afretas 


151 


Desde  o  começo  da  campanha,  o  governo  portu- 
guez  procurara,  á  custa  de  todas  as  difficuldades 
que  lhe  creavam  a  politica  e  a  influencia  do  inimigo, 
alliciar  o  elemento  estrangeiro  para  supprir  a  quasi 
annullação  das  nossas  forças  militares  durante  o 
longo  dominio  hespanhol. 

Foi,  porém,  com  a  expedição  preparada  e  condu- 
zida pelo  nosso  hábil  diplomata,  conde  de  Soure,  e 
pelo  celebre  conde  de  Schomberg, — que  aquelle, 
auxiliado  por  Turenne,  contractou, — que  os  auxi- 
liares estrangeiros  começaram  a  valorisar-se  mais 
distinctamente  nos  nossos  exércitos,  não  só  pela 
sua  força  numérica,  que  ainda  assim  nunca  passou 
de  4:000  a  o:000  homens,  francezes,  inglezes,  al- 
lemães  e  italianos,  mas  pela  sua  organisação,  qua- 


al  Marquez  General,  que  a  semejantes  quexas  solia  respon- 
der:—  Que  he  hazer  a  tan  barbaras  Jiaciones  como  las  de  que 
se  foi-ma  este  exercito?. . . 

O  nosso  exercito  compunha-se,  segundo  o  mesmo  chronista, 
de:  —  Infanteria :  portugueza  13:000  homens,  franceza  (em 
dois  terços)  1:200,  ingleza  1:000.  Cavallaria:  portugueza 
4:600,  franceza  900  (em  quatro  regimentos,  além  da  compa- 
nhia do  conde  de  Schomberg),  ingleza  300.  Artilheria:  20  pe- 
ças. Haviam  outras  forças  avulsas  auxiliares. 

«La  caualleria  estrãgera,  generosamête  nos  emulaua,  el  re- 
gimento Franeez  dei  conde  de  Schomberg  gouernado  por  el 
Teniente  colonel  Sausé,  parecia  recopilar  los  brios  de  su  na- 
cion . . . 

Relacion  verdadera  y  poiUval  de  la  gloriosisma  victoria  que 
€H  la  famosa  batalla  de  Montes  Claros  alcanço  el  exercito  del- 
Rei  de  Portugal^  etc.  (17  de  junho  de  1665.) — Lisboa,  1G65. 


152 


lidade  e  effectiva  cooperação  militar.  O  próprio  nome 
de  Schomberg  aítrahiu  ao  nosso  serviço  muitos  dos 
que  liaviam  combatido  com  elle  ou  sob  o  seu  com- 
mando. 

Diversos  escriptores  portuguezes  e  estrangeiros 
dizem  que  o  heroe  das  Cartas,  o  conde  de  Chamilly, 
viera  com  elle  para  Portugal. 

Não  é  verdade. 

Schomberg  veiu  em  1660,  e  já  que  está  por  fa- 
zer, ou  que  anda  tão  deficiente  e  erradamente  feita, 
a  biographia  d'este  vulto  profundamente  sympalhi- 
co,  permiltam-nos  os  leitores  que  deixemos  regis- 
tadas aqui  algumas  datas  e  diplomas  pouco  conhe- 
cidos. 

Um  decreto  real  de  17  de  dezembro  de  1660 
manda  passar  a  Schomberg  a  patente  de  mestre  de 
campo  general  da  província  do  Alemtejo,  cargo  que 
se  fez  vagar  pela  promoção  a  governador  das  ar- 
mas da  mesma  província,  do  conde  de  Athouguia, 
sob  o  commando  do  qual  passou  a  servir  com  mil 
cruzados  de  soldo  mensal,  na  forma  do  contracto. 
Outro  decreto  de  24  de  janeiro  de  1661  nomeia-o 
a  elle  e  ao  conde  de  Athouguia  conselheiros  de 
guerra,  isto  é,  membros  do  supremo  conselho  de 
guerra,  no  qual  residia  então  a  direcção  dos  negó- 
cios militares. 

É  só  em  23  de  novembro  de  1663  que  Schom- 
berg é  elevado  a  governador  das  armas  do  Alem- 
tejo. 

Terminada  a  campanha  recebe  o  titulo  de  «conde 


i53 


da  villa  de  Mertola»,  em  31  de  março  de  1668,  para 
elle  e  seus  descendentes,  com  a  respectiva  pensão, 
que  foi  como  que  a  lemlwança  com  que,  em  phra- 
ses  extremamente  elogiosas,  o  presenteou  na  des- 
pedida o  governo  portuguez. 

Schomberg  trouxera  comsigo  dois  filhos,  Frede- 
rico e  Maynard,  conde  e  barão  de  Schomberg,  a 
cada  um  dos  quaes,  em  24  de  janeiro  de  1661,  um 
diploma  régio  manda  abonar  a  gratificação  de  mil 
cruzados,  emquanto  não  tivessem  posto  no  exercito 
do  Alemtejo,  para  onde  acompanharam  o  pae.  Um, 
o  2.°  conde  de  Schomberg,  é  feito  capitão  de  ca- 
vallaria  no  regimento  do  pae,  com  32^000  réis  de 
soldo,  por  diploma  de  2  de  outubro  de  1661 ;  o  ou- 
tro, o  barão  de  Schomberg,  tendo  sido  mandado, 
por  decreto  real  de  18  de  janeiro  de  1663,  ao  con- 
selho de  guerra,  que  o  propozesse  para  egual  posto, 
recebe  este  na  primeira  vaga,  por  diploma  de  8  de 
fevereiro  do  mesmo  anno. 

A  titulo  de  curiosidade  daremos  o  seguinte  elo- 
gio que  faz,  do  illustre  aventureiro,  uma  narração 
portugueza,  raríssima,  de  1661: 

— «Mestre  de  Campo  General  o  conde  de  Schom- 
berg que  para  este  logar  veio  a  este  Reino  por  de- 
ligencias  do  Conde  de  Soure  e  persuações  dos  con- 
fidentes desta  Coroa,  sem  outro  interesse  mais  que 
o  da  honra  e  o  da  reputação,  pois  deixando  os  gros- 
sos soldos  que  na  paz  vencia  na  França,  veio  bus- 
car a  guerra  onde  ardia  com  mais  duvidoso  fim. 
espirito  realmente  generoso  que  não  quiz  entorpe- 


154 


cer  no  ócio  da  paz.  Do  seu  valor,  experiências  e 
candidesa  Aleman  com  que  serve  esta  Coroa  se 
promete  aos  Portugueses  grandes  victorias.» 


Voltemos,  porém,  ao  nosso  assumpto. 

Nos  fins  de  1660,  quando  Schomberg  chegara  já 
a  Portugal,  Chamilly  assistia  ao  casamento  do  irmão 
mais  velho,  Herard  Bouton,  nomeado  em  15  dezem- 
bro d'esse  anno  governador  do  Castello  de  Dijon, 
em  favor  do  qual  fazia  uma  doação  importante,  a 
dos  senhorios  de  Saint-Aubin,  de  Gamay,  e  outros 
bens  que  lhe  legara,  em  fidei-comisso,  um  tio. 

É  a  este  irmão  e  á  cunhada, — Catharina  Le  Gomte 
de  Nonant,  filha  do  tenente-general  do  governo  da 
Normandia,  Jacques  Le  Gomte,  que  deve  referir-se 
uma  passagem  das  Gartas  da  religiosa  portugueza, 
como  veremos. 

Só  em  18  de  abril  de  1661,  pelo  hcenceamento 
da  companhia  que  commandava,  é  que  Ghamilly  se 
achou  sem  emprego  militar  em  França,  e  foi  em 
1663,  segundo  o  seu  processo  de  marechal,  que 
veiu  para  Portugal,  naturalmente  patrocinado  por 
Turenne,  e  com  alguma  das  expedições  que  n'esse 
anno  e  no  começo  do  seguinte  chegaram  a  Lisboa, 


455 


muito  provavelmente  com  a  do  regimento  organi- 
sado  por  Briquemault. 

«Foi  provavelmente  attrahido  d'este  lado, — diz 
Beauvois, — «pela  reputação  de  Schomberg  com  quem 
a  sua  família  tivera  porventura  relações  de  boa  vi- 
zinhança quando  este  fora  governador  de  Verdun- 
sur-le-Doubs,  e  com  o  qual.,  sem  duvida,  fizera  co- 
nhecimento durante  a  campanha  de  Flandres,  ten- 
do-se  achado  com  elle  no  cerco  de  Valenciennes, 
(1656),  na  batalha  das  Dumas  e  nos  cercos  de  Ber- 
gues   dOrdenarde  e  Ypes  (1658). 

Era  o  11.°  filho  dos  qualorze  que  tivera  um  Ni- 
colau Bouton,  da  casa  dos  Bouton,  senhor  de  Gha- 
milly,  de  Charangeroux,  e  mais  tarde  de  Sainl-Lé- 
ger,  senhorios  de  modesta  importância  no  Chalon- 
nez  e  na  Borgonha. 

Beferindo  se  á  nomeação  de  cavalleiros  do  Saint- 
Esprit,  em  1705,  Saint  Simon  observa: 

— aChamiliy  chamava-se  Bouton;  era  de  boa  no- 
breza da  Borgonha,  anterior  a  1400:  camaristas 
dos  duques  de  Borgonha  e  bailios  de  Dôle.  Taes 
empregos  não  se  davam  n'aquelle  tempo  senão  a 
pessoas  distinctas.  Este  nome  bastante  ridículo  de 
Bouton  fel-o  passar,  mal  a  propósito,  pour  peu  cho- 
se.D 

A  mãe  chamava-se  Maria  de  Cirey. 

Nicolau  Bouton,  e  Hérard  Bouton,  o  outro  filho 
a  que  já  alludimos,  adquiriram  uma  certa  celebri- 
dade durante  a  Fronda. 

Em  quanto  elles  se  batiam  intrepidamente  por 


156 


Luiz  Bourbon,  príncipe  de  Conde,  Noel  entrava  no 
serviço  militar  do  rei,  ao  qual  se  conservava  fiel. 
Nascera  em  6  de  abril  de  1636,  e  em  8  de  feve- 
reiro de  1658  era  feito  capitão,  sob  o  nome  de  conde 
fie  Chamilly,  no  regimento  de  cavallaria  de  Maza- 
rin,  commandado  então  por  La  Fueillade. 

A  paz  dos  Pyreneus, — aquella  mesma  paz  a  que 
a  má  politica  de  Mazarin  e  da  rainha  mãe  nos  sa- 
crificou,—  reuniu  a  familia  Chamilly,  apenas  osten- 
sivamente separada  pelas  contendas  e  dissenções 
politicas. 

O  pae  morria  em  1662,  tendo  feito  testamento 
em  22  de  junho  de  1661.  no  qual  institue  por  prin- 
cipal herdeiro  seu  filho  mais  velho  Hérard — o-aii- 
jourdluii  en  tel  estat  quil  poiírra  estre  l'appui)  et 
advancemenf  de  ces  frèrcs,  comme  il  a  desia  fait, — 
•etc. 

Noel  Bouton  já  cerceado  na  sua  fortuna  pessoal 
pela  entrega  ao  irmão  do  fidei-commisso  do  tio, 
perdeu  n'esse  testamento  o  senhorio  de  Montaigu, 
que  fazia  parte  do  condado  de  Chamilly,  condado 
conslituiilo  por  cartas  régias  de  1614  pela  reunião 
das  baronias  de  Nantoux,  Montaigu,  etc.  Em  com- 
pensação recebeu  os  senhorios  de  Saint-Léger,  Den- 
nevy  et  Saint-Gilles,  que  o  pae  herdara  de  um  ir- 
mão. 

Uma  irmã  de  Noel,— Carlota, — professara  em 
16i4  n'um  convento  benedictino  de  Chalon-sur-Saô- 
ne,  onde  foi  abbadessa  em  1684.  Outras  duas  fo- 
ram e^ualmente  religiosas,  uma,  Antonnieta,  na  ab  - 


157 


badia  de  Juvigny,  junto  a  Stenay,  e  a  outra,  Anua 
Francisca,  que  á  morte  do  pae  aguardava  no  mos- 
teiro do  Lanchare,  em  companhia  da  irmã,  a  edade 
canónica  para  professar. 

Extravagantes  coincidências  da  vida ! — por  aqueila 
mesma  epoclia  a  filha  mais  nova  dos  Alcoforados 
de  Beja  ia  esperar,  também,  no  convento  da  irmã, 
Marianna  Alcoforado,  como  a  irmã  mais  nova  de 
ChamiUy,  a  edade  legal  da  profissão. 

O  sr.  Beauvois  transcreve  do  processo  de  «re- 
prise  de  fief  et  dénombrement  des  terres  et  seigneu- 
ries  de  Saint-Léger  et  Dmnevy,  par  Messire  Nod 
Boulon  en  1670^)  a  descripção  das  duas  principaes 
propriedades  de  ChamiUy:— dois  velhos  castellos, 
—  «encios  de  murailles  et  fosseysy),  que  embora  lhe 
aguentassem  as  prosapias,  não  deviam  garantir-lhe 
desafogadamente  a  existência. 

Chegando  a  Portugal  em  1663  ou  princípios  de 
1664,  provavelmente  recommendado  a  Schomberg, 
este,  «considerando  o  valor,  experiência  e  capaci- 
dade de  M.  le  Comte  de  ChamiUy- Saint-Léger,  de 
que  elle  deu  provas  nas  guerras  de  França»,  no- 
meia-o  capitão  no  regimento  de  cavallaria  de  Bri- 
quemault,  ou  Marco  Francisco  de  Briquemault, —  o 
Briquimont  de  alguns  nossos  chronistas, — por  pro- 
visão datada  de  Estremoz  em  30  de  abril  de  1664, 
segundo  Palliot,  citado  pelo  sr.  Beauvois. 

É  curioso  que  a  esta  nomeação  corresponde  ou- 
tra egual,  na  mesma  data,  pelo  rei  de  França, — 
«sem  duvida  para  conservar  a  Noel  Bouton, — diz 


158 


o  sr.  Beauvois, —  o  seu  posto  e  os  direitos  de  an- 
tiguidade no  exercito  francez,  que  elle  certamente 
abandonara  com  a  connivencia  do  governo.» 

Em  7  de  dezembro  de  1665  Chamilly  é  promo- 
vido por  Schomberg  a  mestre  de  campo  e  capitão 
da  primeira  companhia  de  um  regimento  de  caval- 
laria  a  organisar,  e  repete-se  o  mesmo  facto. 

«Ainda  aqui, — diz  o  sr.  Beauvois, — temos  diplo- 
mas em  partida  dobrada,  porque,  dois  annos  mais 
tarde,  Luiz  xiv  ratifica  a  promoção  do  marquez  de 
Chamilly,  nomeando-o  por  sua  vez  mestre  de  campo 
de  um  regimento  de  cavallaria  a  organisar  e  capi- 
tão da  primeira  companhia  composta  de  80  caval- 
leiros  não  comprehendendo  os  oíiiciaes.  Na  commis- 
são,  datada  de  Saint-Germain-au-Laye  (o  mez  ficou 
em  branco)  no  anno  da  graça  de  mdclxvii,  o  titular 
é  chamado  marquez  de  Chamilly.-» 

Mas  doesta  vez  o  facto  tem  manifestamente  uma 
importância  maior.  Revela  a  idéa  de  collocar  Cha- 
milly na  situação  de  abandonar  Portugal  e  o  serviço 
portuguez,  quando  lhe  convenha,  como  official  ex- 
pressamente incumbido  de  uma  commissão  especial 
do  governo  do  seu  paiz.  Suggere  a  presumpção  de 
que,  ou  o  moço  capitão  preparava,  ou  os  seus  pro- 
tectores, e  naturalmente  seu  irmão,  o  governador 
de  Dijon,  promoviam,  a  retirada  d'elle,  embora  a 
guerra  em  Portugal  não  estivesse  terminada  e  a 
França  procurasse  vivamente  fazel-a  protrahir.  É 
particularmente  significativa  a  lacuna  a  preencher 
na  data  do  diploma. 


459 


Este  incidente  approxima-nos  já  do  episodio  das 
Cartas,  se  é  que  não  entra  na  própria  historia 
d'elle. 


VI 


Como  succede  com  Marianna  Alcoforado,  o  nome 
e  a  memoria  do  conde  de  Chamilly  não  apparece 
nos  nossos  archivos  e  chronistas  dos  successos  do 
tempo. 

Foram  infructuosas  todas  as  investigações  a  que 
procedemos,  amavelmente  auxiliados  por  um  estu- 
dioso, particularmente  auctorisado,  o  sr.  general 
Chaby,  e  pelo  sr.  Basto,  do  Archivo  Nacional,  nos 
registos  e  mais  documentos  que  restam  do  antigo 
conselho  de  guerra. 

Pode  dizer-se  que  a  estada  e  serviços  de  Cha- 
milly em  Portugal,  desde  1663  até  aos  fins  de  1667, 
nos  são  apenas  revelados  pelos  documentos  e  his- 
toriadores francezes,  e  não  é  muito,  ainda  assim,  o 
que  ehes  nos  revelam. 

Chega  a  ser  extraordinária  e  suspeita  esta  des- 
apparição,  ou  esta  falta  de  vestígios,  da  passagem 
do  illustre  oíBcial  por  Portugal,  quando  a  cada  mo- 
mento encontramos  referencias,  noticias  e  documen- 
tos de  tantos  outros  estrangeiros,  da  mais  modesta 
condição,  que  estiveram  ao  nosso  serviço. 


160 


Devemos  observar,  comtudo,  que  uma  graiKle 
parte  dos  nosos  documentos  militares  d'aquella  epo- 
clia, — incluindo  a  correspondência  de  Schomberg, 
— parece  ter  desapparecido  na  devastação  e  no 
abandono  geral  dos  archivos,  e  na  venda  dos  do- 
cumentos accumulados  em  muitas  casas  herdeiras 
de  alguns  dos  principaes  personagens  do  século 
xvn. 

Não  poderá,  certamente,  attribuir-se  a  uma  es- 
pécie de  ciúme  nacional,  este  silencio  acerca  dos 
serviços  e  feitos  de  Chamilly,  se  taes  feitos  e  ser- 
viços foram  realmente  distinctos,  e  se  o  capitão 
francez  conseguiu, —  o  que  temos  por  duvidoso, — 
adquirir  uma  situação  brilhante  e  saliente  entre  os 
seus  companheiros  de  armas. 

Se  é  perfeitamente  injusto  e  absurdo  attribuir 
aos  nossos  auxiliares  estrangeiros  toda  a  gloria  ou 
todo  o  êxito  da  longa  campanha,  não  seria  menos 
injusto  inquinar  de  ingratos  ou  ciosos  os  nossos  es- 
criptores  e  os  nossos  generaes,  para  com  esses  au- 
xiliares, dos  quaes  falam,  geralmente,  não  só  com 
leal  franqueza,  mas  até  com  mal  retribuída  gene- 
rosidade. 

Desde  Schomberg,  o  hábil  e  dedicado  general 
que  chega  a  obter  uma  enthusiaslica  popularidade, 
entre  nós,  até  um  simples  corneta  do  corpo  de  Gui- 
jardier, — um  Monsieur  Beauberry  que  em  batalha 
tomou  um  estandarte  hespanhol,  ou  até  Francisco 
Salamão,  o  bravo  capitão  francez  de  cavallaria  que 
se  fez  matar,  em  1606,  em  Paymogo, —  os  estran- 


161 


geiros  que  se  distinguem  pelos  seus  serviços  á  causa 
porlugueza  e  que  se  batem  intrepidamente  por  ella, 
encontram  nos  nossos  diplomas  oíTiciaes  e  nas  nar- 
rativas e  noticias  dos  nossos  escriptores  do  tempo 
um  applauso  franco  e  caloroso,  perfeitamente  isenta 
de  estreitas  preoccupações  ciumentas. 

Comtudo,  nem  nas  narrativas  impressas  que  sãa 
muitas,  e  algumas  d'ellas  vão  acompanhando  miuda- 
mente os  successos  da  campanha, — como  o  Mercú- 
rio porltif/uez, — nem  nos  registos  inéditos  e  officiaes 
que  formam  ainda  uma  preciosa  e  abundante  col- 
lecção,  podemos  encontrar  até  o  simples  nome  de 
Chamilly,  em  qualquer  das  suas  variantes.  O  seu 
próprio  genealogista  P.  Palliot  é  extremamente  la- 
cónico acerca  dos  feitos  d"elle  em  Portugal,  como 
confessa  o  sr.  Beauvois  que  não  se  esquece  de  ex- 
plicar o  facto  pelo  «desinteresse  e  modéstia  que 
impediram  Noel  Bouton  de  aproveitar  as  occasiões 
de  fazer-se  valer.»  Mas  pelos  seus  «états  de  servi- 
ce»,  reproduzidos  por  Pinard,  sabe-se  que  o  futuro 
marechal  esteve: 

no  cerco  de  Valença  de  Alcântara  (15-24  de 
junho  de  1664). 

na  derrota  dos  hespanhoes  em  Castello  Ro- 
drigo (6  para  7  de  julho  do  mesmo  anno). 

na  batalha  de  Villa  Viçosa,  aliás  Montes  Cla- 
ros (17  de  junho  de  1665). 

no  combate  do  rio  Xevora  (outubro  1665). 

na  tomada  de  Benses,  Guardiã,  Villa  de  Alça- 
ria, Paymogo  e  San  Lucar. 

F.  H 


162 


e  que,  finalmente,  em  setembro  de  1667,  to- 
mara parte  na  investida  do  chamado  Cas- 
tello  de  Ferreira. 

Pois  em  nenhuma  das  notícias  contemporâneas 
d'estas  acções  o  encontramos  citado! 

É  certo  que  n'ellas  se  encontram  frequentes  elo- 
gios ás  tropas  e  officiaes  estrangeiros^  e  particu- 
larmente aosfrancezes,  e  confessando-o,  o  sr.  Beau- 
vois  faz  a  seguinte  observação  que  poderiamos  con- 
siderar um  pouco  imprudente: — «O  titulo  e  patente 
que  Noel  Bouton  ganhou  n'esta  campanha,  mostram 
suíTicientemente  que  tinha  parte  n'estas  homena- 
gens. Merecera  menos  elogios  sendo  verdade  que  fosse 
o  triste  heroe  das  Cartas  portuguezas.y> 

Se  quizeramos  dar  á  observação  o  valor  de  um 
argumento,  com  quanta  mais  razão  poderiamos  con- 
cluir o  contrario,  do  silencio  completo  acerca  de 
Chamilly,  quando  calorosamente  se  elogiam  os  seus 
companheiros  de  armas,  citando-os  a  cada  passo, 
pelos  seus  nomes?! 

A  allusão  a  um  titulo  ganho  por  este  official,  de- 
riva da  supposição  infundada,  do  sr.  Beauvois,  de 
que  elle  recebesse  do  rei  de  Portugal  o  titulo  de 
marquez  de  Chamilly  que  apparece  na  sua  nomea- 
ção franceza  de  1667,  titulo  pelo  qual  também  o 
sr.  Beauvois  erradamente  affirma  que  «elle  é  co- 
nhecido na  historia.»  E  é  tanto  mais  extranha  a  sup- 
posição de  que  o  governo  portuguez  fizesse  mar- 
quez o  capitão  de  cavallaria,  que  o  illustre  escri- 
ptor  logo  em  seguida  observa  que  o  general  Schom- 


163 


berg  recebera  d'esse  governo,  apenas  o  titulo  de 
conde  de  Mertola. 

Em  quanto  ás  patentes  observaremos  também 
que,  por  auctorisações  especiaes,  os  nossos  gene- 
raes,  e  por  conseguinte  Schomberg  desde  que  com- 
mandava  em  chefe,  poderiam  concedel-as  em  cam- 
panha, mas  que  ellas  poderiam  também  não  ser 
confirmadas  pelo  governo,  e  que  a  regra  era,  pro- 
por o  general  e  nomear  o  governo,  como  ainda  em 
4  de  janeiro  de  1666  se  ordenava  ao  próprio  Schom- 
berg que  propozesse  capitães  para  algumas  compa- 
nhias que  estavam  sem  elles. 

Em  lodo  o  caso,  nomeação,  ou  confirmação  por 
parte  do  governo  portuguez,  não  a  encontramos  em 
relação  a  Chamilly,  o  que  de  resto  importa  pouco 
para  o  caso,  e  pode  explicar-se  pela  situação  creada 
a  alguns  officiaes  francezes,  nos  últimos  tempos  da 
campanha,  de  serem  considerados  em  serviço  do 
rei  de  França,  ou,  pelo  menos,  como  continuando 
a  pertencer  ao  exercito  francez,  o  que  o  nosso  go- 
verno, aliás,  contrariava.  É  esta  situação  que  natu- 
ralmente explica  a  repetição  ou  a  confirmação  das 
nomeações  de  Chamilly,  por  Luiz  xiv,  a  que  atraz 
nos  referimos. 

É  muito  provável  que  fosse  só  depois  de  ser  no- 
meado, em  7  de  novembro  de  1665,  mestre  de 
campo  e  capitão  da  1.^  companhia  de  um  regimento 
de  cavallaria  a  organisar, — <í...qiiil  leva», — diz 
talvez  um  pouco  precipitadamente  o  seu  genealo- 
gista,—  que  Chamilly  fosse  estacionar  em  Beja. 

11* 


164 


Se  na  extensa  província  do  Alemtejo  a  lucta  se 
concentrava  ao  norte,  e  do  lado  de  Badajoz  rompia 
mais  persistente  e  atrevida  a  invasão  hespanhola,  a 
fronteira  do  sul  não  deixava  de  ser  thealro  de  re- 
nhidos encontros,  e  o  baixo  Alemtejo  e  o  próprio 
Algarve  de  sentir-se  opprimidos  e  ameaçados  pelas 
forças  inimigas  accumuladas  na  Andaluzia.  Um  sen- 
timento entre  cavalleiroso  e  cortezão  poupara  esta 
a  um  ataque  vigoroso  da  nossa  parte: — uma  certa 
deferência  pelo  parentesco  da  nascente  dynastia 
portugueza  com  a  casa  dos  Medina-Sidonia,  cujos 
domínios  se  estendiam  até  ao  Guadiana  e  formavam 
d'aquelle  lado  o  condado  de  Niebla. 

Mas  para  essa  região  se  voltavam,  frequente  e 
previdentemente,  as  attenções  dos  generaes  portu- 
guezes,  e  Schomberg  sabia  bem  que  por  alli  pode- 
ria ferir  seriamente  o  inimigo  e  operar  uma  diver- 
são eíTicaz. 

Já  em  1663  se  formara  o  projecto  de  ir  tomar 
Ayamonte,  e  Schomberg  fora  então  a  Beja  confe- 
renciar com  Gil  Vaz  Lobo,  enviado  expressamente 
de  Lisboa,  e  que  deveria  commandar  a  força  naval 
destinada  a  reforçar  no  Guadiana  o  ataque. 

A  victoria  de  Montes-Claros  estimulava-nos  cer- 
tamente a  tomar  uma  decisiva  oíTensiva. 

A  ameaça  crescente  de  forças  inimigas  na  fron- 
teira de  Andaluzia,  completando  o  cerco  que  os  hes- 
panhoes  faziam  a  todo  o  Portugal,  e  a  expedição  pre- 
parada em  Cadiz  pelo  renegado  duque  de  Aveiro, 
para  secundar  a  invasão  do  marquez  de  Caracena 


165 


mallograda  n'aquella  batalha,  desarmaram  as  absur- 
das contemplações  para  com  as  terras  e  vassallos 
dos  Medina-Sidonia. 

Uma  campanha  oíTensiva  d'aquelle  lado  ficou  re- 
solvida, e  Schomberg  foi  para  ella  dispondo  insen- 
sivelmente todas  as  prevenções  convenientes,  como 
diz  o  conde  de  Ericeira  K 

Addiou  o  projecto,  a  necessidade  de  reforçar  o 
exercito  do  conde  de  Prado,  na  fronteira  d'Entre 
Douro  e  Minho,  contra  os  Ímpetos  novos  dos  hes- 
panhoes,  ao  norte,  e  para  alli  partiu  em  1665 
Schomberg,  com  três  regimentos  de  infanteria  eum 
de  cavallaria  franceza.  N'este, — que  era  certamente 
o  de  Briquemoult, — foi  Chamilly,  pois  que  o  vemos 
na  invasão  da  Galliza  e  na  tomada  de  Guardiã. 

Antes  do  fim  do  anno  a  expedição  de  Schomberg 
estava  de  volta  ao  Alemtejo,  e  preparava  elle  a  que 
devia  invadir  a  Andaluzia.  Beja  era  naturalmente 
indicada  para  ponto  de  concentração  e  aprivisiona- 
mento  de  uma  campanha,  d'aquelle  lado,  e  assim  o 
entendeu  Schomberg  mandando  «convocar  áquella 
cidade»,  segundo  aphrase  do  conde  da  Ericeira,  «os 
terços  e  companhias  de  cavallos)->  que  julgou  neces- 
sários. 

Em  1665,  como  já  dissemos,  fora  para  aUi  no- 
meado novo  governador  com  ordens  terminantes  de 
apressar  as  fortificações,  e  foi  ainda  nos  fins  d'este 
anno  que  Chamilly  recebeu  de  Schomberg  a  com- 


Portiigal  restaurado,  etc. 


166 


missão  de  mestre  de  campo  e  de  capitão  de  um  re- 
gimento de  cavallaria  a  organisar.  A  21  de  feve- 
reiro de  1666,  reunido  em  Serpa,  a  30kilometros 
de  Beja  e  4  além  Guadiana,  todo  o  corpo  expedi- 
cionário, composto  de  2:000  homens  de  cavallo  e 
outros  tantos  de  infanteria,punha-se  rapidamente  em 
marcha,  e  penetrando  pela  Andaluzia  espalhava  o  pâ- 
nico até  Alçaria  de  la  Puebla,  que  occupava,  vindo 
depois  tomar  Payraogo  e  recolhendo  logo  em  seguida 
a  Serpa  com  muitos  despojos  e  prisioneiros.  Como 
já  vimos,  n'esta  expedição  tomaram  parte  Chamilly 
e  Balthazar  Vaz  Alcoforado,  e  parte  brilhante  este, 
á  frente  de  um  troço  de  cavallaria,  como  o  attesta 
o  governador  de  Beja,  um  dos  generaes. 

lia  poucos  dias,  ainda,  por  um  bello  dia  assoa- 
lado  e  alegre,  viamos  nós,  da  estrada  de  Serpa  a 
Beja,  encostados  a  um  sohtario  cruzeiro  erguido  em 
1612,*  negrejar  com  singular  nitidez  no  monte  de 
casarias  da  cidade,  que  corta  o  horizonte,  uma  certa 
janella  do  convento  da  Conceição, — ajanella  de  Mer- 
tola,— aponde  naturalmente  um  olhar  amante  sau- 
daria o  regresso  dos  dois  moços  cavalleiros,  da  aven- 
turosa expedição. 

Paymogo,  posição  forte  e  estratégica,  ficara  guar- 
necida, e  alH  ficara  Salomão, — «o  valoroso  francez.» 


^  Próximo  á  ermida  de  S.  Pedro,  tendo  no  pedestal  esta 
inscripção: — Desmolas  se  fez  1612. — D'atii  tirou  o  nosso  bom 
amigo  e  notável  artista,  J.  Camacho,  um  bello  panorama  pho- 
tographico. 


167 


Tendo  de  ir  a  Exlremoz.  Schomberg  mandava 
preparar  em  Beja  nova  expedição,  e  em  24  de  maio 
voltava  a  esta  cidade,  tomava  o  commando  de  3:000 
infantes  e  de  1:200  cavallos,  e  marchando  com  a 
rapidez  costumada  ia  cahir  sobre  San  Lucar  do 
Guadiana,  que  em  29  de  maio  capitulava. 

Outro  general  portuguez,  D.  Luiz  da  Costa,  rom- 
pia ao  sul  pelo  condado  de  Niebla,  e  juntas  as  duas 
expedições  tomavam  Gibraleon,  Cartaya  e  Lepe,  na 
ria  do  Odiei,  ameaçando  Ayamonte  e  Huelva,  a  pe- 
quena distancia.  D'esta  vez  o  pânico  chegou  até  Se- 
vilha, que  se  suppoz  próxima  de  um  ataque. 

Retirando  a  quartéis  de  verão,  estas  forças  não 
podiam  arredar-se  muito  da  froQteira  do  baixo  Alem- 
tejo.  Schomberg  não  deixaria  de  contar  com  um  mo- 
vimento de  reacção  por  parte  dos  hespanhoes,  cuja 
linha,  e  não  já  de  invasão,  mas  de  defeza,  se  achava 
cortada  e  ameaçada  d'aquelle  lado.  Em  16G7  os  hes- 
panhoes tentavam  vigorosamente  retomar  S.  Lucar 
e  Paymogo,  e  ainda  n'esse  anno  se  emprehendia 
nova  investida  portugueza  em  que  também  tomava 
parte  Chamilly. 

Beja  continuou  pois  a  ser  um  centro  importante 
de  movimento  e  de  concentração  militar. 

Inesperadamente,  compulsando  os  escassos  res- 
tos do  archivo  municipal  d'aquella  cidade, — em  que 
se  encontram  ainda  alguns  registos  relativos  á  guerra 
da  Restauração, —  topámos  com  um  pequeno  inci- 
dente que  não  nos  parece  insignificativo  para  o 
nosso  assumpto. 


168 


É  uma  carta  do  infante,  depois  rei  D.  Pedro,  ao 
juiz  e  vereadores  de  Beja,  que  se  refere  e  dá  sa- 
tisfação ás  queixas  d'elles  «sobre  a  oppressão  que 
a  cavallaria  franceza  continuava  nesse  povo.»  É  de 
4o  de  junho  de  1667. 

Já  por  queixas  idênticas  se  ordenara  a  Schom- 
bergque  aquelia  cavallaria  sahisse  d'alli,  indo  aquar- 
telar-se  n'outro  ponto.  Duas  companhias  foram  alo- 
jar-se  em  Cuba,  a  18  kilometros  de  Beja,  não  se 
dando  comtudo  por  satisfeitos  os  vereadores,  e  a 
isto  responde  nova  carta  do  Infante,  em  o  de  agos- 
to, do  mesmo  anno,  acompanhada  de  uma  para  o 
próprio  Schomberg  insistindo  na  ordem  real  para 
que  a  cavallaria  franceza  se  arredasse  de  Beja  e 
seu  termo. 

Schomberg  contrariava  estas  exigências,  natural- 
mente porque  tal  afastamento  lhe  prejudicava  os 
projectos  e  as  necessidades  da  campanha.  Retiran- 
do-se  do  condado  de  Niebla,  acordara  com  Aífonso 
Furtado,  general  da  cavallaria  do  Alemtejo  atacarem 
o  castello  de  Ferreira, — «presidio  de  que  todos  os 
povos  d'aquelle  districto  recebiam  grande  prejuízo,» 
— diz  o  conde  da  Ericeira, — e  realmente  em  se- 
tembro de  1667  aquelia  posição  hespanhola  era 
atacada  e  tomada,  fazendo  parte  da  expedição  Cha- 
milly. 

Ora  c  tempo  de  notar  que  precisamente  entre 
1665  e  fins  de  1667, —  em  que  não  pode  duvidar- 
se  da  existência  de  Chamilly,  em  Beja, — é  que  de- 
vem ter  succedido  os  amores  da  religiosa  portu- 


169 


gueza  com  o  capitão  francez  de  cavallaria,  e  que  é 
até  em  1667  que  o  escândalo  d'esses  amores  deve 
ter  attingido  maiores  proporções,  coincidindo  ou 
terminando,  não  só  com  o  afastamento  da  cavallaria 
franceza,  mas  com  a  brusca  retirada  de  Chamilly 
para  França,  á  volta  da  expedição  de  Ferreira. 

Entraria  n'aquella  insistência  vivíssima  do  juiz  e 
vereadores  de  Beja  por  que  fosse  arredada  d'ahi, 
não  quaesquer  outras  outras  forças,  mas  determina- 
damente a  cavallaria  franceza,  a  influencia  incon- 
testavelmente grande  da  familia  Alcoforado  ?  Nas  suas 
deligencias  junto  de  Schomberg  em  favor  d'aquelle 
afastamento,  o  Infante  procuraria  obtemperar  aos 
desejos  d'essa  familia  influente  e  poderosa  que  po- 
deria ser-lhe  útil  na  revolução  palaciana  eminente 
e  a  um  dos  filhos  da  qual, — Miguel  da  Costa  Al- 
coforado,— elle  offereceu  quando  Rei,  um  valioso 
presente? 

Em  que  poderiam  consistir  aquella  «oppressões» 
allegadas  pelos  vereadores,  exclusivamente  contra 
a  cavallaria  franceza,  n'uma  cidade  importante  e 
n'um  districto  em  que  a  administração  estava  re- 
gular e  fortemente  organisada? 

Terá,  em  summa,  o  incidente  alguma  relação 
com  o  episodio  amoroso  das  Cartas,  que  profunda- 
mente devia  affligir  e  aíTrontar,  como  era  natural 
e  como  ellas  próprias  revellam,  a  familia  da  reli- 
giosa e  os  sentimentos  dos  bons  burguezes  de  Beja? 

A  situação  especial  do  capitão  francez,  a  protec- 
ção de  Schomberg,  o  interesse  em  não  aggravar  o 


170 


escândalo,  o  perigo,  para  a  própria  religiosa,  na 
adopção  de  outros  meios  violentos,  deveriam  natu- 
ralmente aconselhar  a  que  se  afastasse  d'alli  para 
longe  aquelle  official.  Elle  mesmo  não  devia  sentir-se 
muito  tranquillo  e  seguro.  Voltando  da  expedição  de 
Ferreira,  Chamilly  pouco  tempo  pode  ter-se  demo- 
rado em  Portugal,  pois  que  em  9  de  fevereiro  de 
1668  estava. . .  no  Franche  Comté,  tomando  parte 
na  repentina  invasão  d'elle,  por  Luiz  xiv,  do  lado  de 
Dijon  onde  o  irmão,  Hérard  Bouton,  era  como  dis- 
semos, governador. 

Schomberg  e  os  mais  officiaes  e  soldados  fran- 
cezes  só  partiam  em  junho  de  1668,  chegando  á 
Rochella  em  13  d'esse  mez. 

Logo  veremos  como  as  allusões  das  Cartas  con- 
tinuam a  coincidir  implacavelmente  com  as  datas  e 
circumstancias  da  vida  de  Chamilly. 


II 


os  AMORES  DA  RELIGIOSA 


E  como  das  historias  a  alma  he 
a  verdade,  eu  para  melhor 
descobrir  esta,  a  fui  buscar  ao 
Convento . . . 

Desposorios  do  espirito  ce- 
lebr.  entre  o  D.  Amãte, 
&  sua  Amada  Esposa  a 
V.  M.  Soror  Marianna  do 
Rosário,  etc. —  Fr.  Ant. 
d'Alm.— Lisboa.— 1094. 


o  convento  da  Conceição  de  Beja,  ou  mais  pro- 
priamente o  Real  Mosteiro  de  Nossa  Senhora  da 
Conceição,  da  Ordem  de  Santa  Clara  e  jurisdicção 
franciscana,  foi  fundado  em  1467  pelos  infantes  D. 
Fernando  e  D.  Brites,  pães  do  rei  D.  Manuel,  junto 
dos  seus  Paços  que  n'e]Ies  vieram  a  encorporar-se 
e  com  os  quaes  communicava  por  um  passadiço  co- 
berto, que  subsiste,  sobre  a  estreita  rua  dos  Infantes. 
Dá  esse  passadiço  para  o  Coro  de  cima  do  conven- 
to, e  diz  a  tradição  que  de  uma  espécie  de  tribuna 
ou  janella  saliente  na  sua  juncção  com  elle,  hoje 
emparedada,  e  mascarada  pela  implacável  caiadura 
alemtejana,  apparecia  e  falava  (sic)  ao  povo  a  pie- 
dosa princeza. 

Successivamente  acariciado  e  favorecido  pela  de- 
voção realenga  e  particular,  chegou  a  ser  uma  das 
instituições  mais  grandiosas  e  ricas  do  seu  género 
entre  nós. 


174 


O  edifièio,  muito  arruinado,  e  habitado,  apenas, 
por  duas  religiosas,  uma  das  quaes  entrevada,  e 
algumas  educandas  e  recolhidas,  é  vastíssimo  e  bas- 
tante irregular,  como  quasi  todos  o  são,  por  accres- 
centamentos  successivos  á  primeira  traça. 

A  egreja  ampla  e  formosa  conserva  na  fachada 
o  aspecto  primitivo  destacando-se,  soberbo  e  triste, 
da  estúpida  caiação  moderna^  n'uma  porta  ogival 
magestosa  e  elegante,  no  rendilhado  friso  e  nas  fi- 
guras e  brazões  da  sua  fidalga  origem.  A  porta  do 
convento  fica  ao  lado  da  egreja,  na  rua  da  Concei- 
ção que  desce  do  largo  de  S.  João  e  da  velha  rua 
do  Touro,  na  próxima  esquina  da  qual  era  o  solar 
dos  Alcoforados.  É  uma  bella  porta  manuelina,  a 
que  roubaram,  apenas^  por  emquanto,  as  espheras 
armillares  que  aliás  se  multiplicam  interna  e  exter- 
namente no  enorme  edifício,  e  accrescentaram,  no 
século  xvn,  umas  lapides  de  inscripção  devota,  muito 
em  moda  então  e  que  egualmente  se  repete,  de 
louvor  ao  Santíssimo  Sacramento  e  á  Immaculada 
Conceição  da  Virgem — «concebida  sem  peccado  ori- 
ginal.» 

Dá  esta  porta  para  uma  pequena  casa  pouco  me- 
nos que  lobrega,  de  paredes  e  abobodas  pintadas 
com  varias  figuras, — entre  ellas  as  dos  fundado- 
res,— e  ao  fundo  da  qual  ficam  as  pequenas  grades 
e  a  roda  de  serviço  commum.  Á  esquerda,  duas 
escadas,  das  quaes  uma  relativamente  moderna, 
conduzem  aos  locutórios  de  grades  duplas,  bastante 
largas  e  illuminadas,  e  á  direita  uma  porta  construída 


175 


ou  restaurada  em  1742  abre  para  a  pequena  sala 
da  porteira,  também  de  restauração  moderna  (1803)> 
que  é  hoje  o  verdadeiro  locutório  e  que  dá  imme- 
diatamente  para  o  claustro. 

Este,  e  o  Capitulo  que  abre  também  para  elle, 
são  notavelmente  originaes  e  pittorescos,  de  feição 
manuelina  que  se  consorcia  formosamente  com  a 
tradição  árabe,  architectural  e  decorativa,  tão  pro- 
nunciada em  muitas  construcções  d'além  Tejo.  Como 
é  natural,  predomina  o  azulejo  e  o  tijollo.  Sob  a  ar- 
cada ha  diversas  capellas,  algumas  muito  alindadas 
e  ricas,  e  a  aboboda  e  os  intervallos  das  paredes 
estão  cobertos  de  arabescos  e  episódios  em  pintura 
graciosa  e  quente.  Toda  esta  decoração  que  cobre 
alegremente  muitos  restos  da  architectura  primitiva 
é  do  século  xvn  e  tem  um  certo  ar  feminilmente 
elegante  e  artístico  que  não  é  vulgar  n'estes  edifí- 
cios. Uma  das  alas  da  arcada,  ou  mais  exactamente 
a  sua  decoração  é  de  1057.  A  Capella  do  Evange- 
lista é  de  1601.  A  do  Baptista, —  a  do  «grande  Ba- 
ptista», como  diziam  as  freiras,  é  de  1GÍ4.  Tudo  isto 
existia  pois  no  tempo  de  Marianna  Alcoforado,  e 
tudo  isto  é  gracioso,  intelligente,  quasi  mundano. 

O  Capitulo  foi  reconstruído  em  1657  e  renovado 
em  1727*.  Limpo  e  cuidado,  com  a  sua  Capella  do 


1  Sobre  a  porta,  por  baixo  das  armas  reaes  sustidas  por 
dois  anjos  lê-se  : — Anno  1657, — ena  juncção  da  colurana 
central  com  os  artesoados  da  aboboda  ha  a  seguinte  legenda: 
■ — Esta  obra  sefes  \  no  seg.  triénio  da  M.^"  R.'^^  Snrã.  D."^  Ber 


176 


Christo  Crucificado  ao  fundo,  cheio  de  sombras  e 
scintillações  phantasticas,  parece  aguardar  teimo- 
samente, n'uma  grande  tranquilidade  mystica,  as 
suas  queridas  religiosos. 

N'aquella  Capella,  conta  um  chronista  que  se  met- 
tera  em  1724  Anna  Maria  de  Santa  Theresa,  dor- 
mindo no  chão,  aos  pés  da  grande  figura  terrivel- 
mente macerada  e  fria  do  Nazareno,  flagelando-se 
frequentemente,  e  comendo  apenas  um  pão  que  to- 
dos os  dias  lhe  dava  pelas  grades  D.  Peregrina  Ma- 
ria Alcoforado,  a  irmã  de  Marianna*. 

Alguma  d'aquellas  desgraçadas  que  procuravam 
na  therapeutica  das  disciplinas  e  dos  jejuns  apagar 
os  «incêndios  da  carne»  de  que  falam,  com  tanto 
horror  como  indiscreto  conhecimento,  os  piedosos 
chronistas ! . . . 

O  antigo  refeitório,  que  começou  por  ser  dormi- 
tório lambem,  segundo  uma  inscripção  que  diz  tel-o 
mandado  fazer  D.  Manuel,  em  1506,  foi,  segundo 
outra,  que  alli  existe,  refeito  «de  aboboda  na  era 
de  1629,  sendo  abbadeça  Madre  Dona  Marianna 
Henriques.»"^  É  um  vasto  salão  térreo,  á  entrada 
do  convento,  a  um  dos  lados  do  claustro,  que  foi 
modernamente  apphcado  a  celeiro.  A  porta  ogival 
é  formosíssima. 


I  «.»  An.'^  Lobo.  de  Tor  |  eio.  e  apinivra.  a  sua  costa.  Era 
1727. 

1  Chr.  Seraj.  pelo  P.  Fr.  Jcronymo  de  Bellem. —  Lisboa. 
1753,  p.  2.^ 

~  !.■''  inscripção; — «Era  de  1.5.0.0  se  fez  esta  esta  de  refei- 


177 


Impressão  análoga  á  do  Capitulo,  produzem  os 
Coros. 

São  dois,  como  de  ordinário,  um  ao  nivel  do  pa- 
vimento da  egreja,  outro  por  cima,  a  meia  altura 
d'ella. 

Alli,  aquella  impressão  é  mais  viva  ainda,  por- 
que os  livros  de  orações  das  educandas  e  recolhi- 
das actuaes,  espalhados  sobre  os  bancos,  as  grandes 
estantes  do  cantochão,  os  lampadários  accesos,  um 
certo  ar  de  vida  que  nos  envolve  e  penetra,  pare- 
cem avocar-nos  aquelles  tempos  em  que,  no  dizer 
de  outro  chronista,  «raramente  se  passará  meio 
quarto  de  hora^  posto  que  seja  na  maior  profundi- 
dade da  noite,  que  o  Coro  não  esteja  acompanhado 
e  assistido  de  gente  desvelada  nas  contemplações 
da  Bemaventurança.»* 

Feito  o  devido  desconto  á  rhetorica  e  ao  tempo, 
pode  dizer- se  que  um  e  outro  coro  estão  ainda  co- 
mo os  descrevia  em  1753,  Fr.  Jeronymo  de  Bellem: 
— «Nos  dois  coros,  alto  e  baixo,  se  admira  o  maior 
asseio  e  perfeição  em  riquesa  e  ornato,  com  sin- 
gulares pinturas,  que  em  tudo  parecem  á  vista  dois 
retratos  do  Ceu.» 

Falta,  no  de  cima,  reconstruído  em  1741, — o  Ba- 
ptista, citado  pelo  imaginoso  frade,  ou  a  informa- 


toyro  e  dormitório  p.  mandado  dei  rey  Dom  manuel  nosso  se- 
nhor E  teve  carego  de  vedor  delle  ruj  piz. . .» 

2.*  inscripção : — «/.  H.  S.  Este  refeitório  se  fez  dabohoda 
na  era  de  1629  sendo  abbaa.  Madre  dona  Marianna  Enriqves. 

1  Hist.  Seraf.  &  por  Fr.  F.  da  Soledade,  170o. 

F.  1-2 


178 


ção  d'elle  confundiu  com  a  figura  do  Precursor  a 
do  Christo  resurrecto,  serai-nua  e  vigorosa,  alan- 
do-se  do  sepulchro  cerrado,  e  empunhando  o  guião 
vermelho  da  Boa  Nova,  ao  passo  que  em  volta  sol- 
dados romanos  de  fortes  carnaduras,  acordam  em 
movimentos  de  assombro.*  É  um  enorme  quadro, 
feito  por  aquelle  tempo,  sobreposto  ás  grades  do 
coro,  que  pouco  vale  como  pintura,  mas  que  sé 
destaca  fortemente  como  uma  grande  mancha  de 
vida,  no  meio  dos  outros  pastiches  escuros  e  mor- 
tos, e  que  os  raptos  contemplativos  das  pobres  ra- 
parigas enclausuradas  não  deixariam  de  vestir  de- 
votamente de  todas  «as  celestiaes  formosuras»  que 
lhes  segredavam  os  livros  e  algumas  vezes. . .  o  diabo. 

Ao  subir  uma  pequena  escada  sombria,  ferira- 
nos  já  a  attenção,  outra  figura,  quasi  escondida  a 
um  lado: — uma  madona  bastante  debotada  pelo 
tempo,  dando  um  seio  rosado  e  túrgido  aos  lábios 
frescos  do  Menino. 

Extraordinária  contradição,  a  d"estas  glorificações 
plásticas  da  Carne  e  da  Maternidade,  offerecidas  ás 
«deleitaç(5es  contemplativas»  das  Esposas- Virgens 
do  Summo  Espirito,  votadas  á  perpetua  Castidade  I 

Ha  pouco  surprehendeu-nos  no  celebre  mosteiro 
de  Oaivellas  uma  contradição  mais  brutal,  bem  mais 
picaresca,  pelo  menos. 


1  Emsndemos  também  a  confusão  que  se  introduzira  nas 
recordações  da  nossa  primeira  e  rápida  visita,  sob  a  impres- 
são da  noticia  de  Fr.  Jeronymo. 


179 


N'um  largo  revestimento  de  azulejo  da  parte  in- 
ferior das  paredes  de  uma  pequena  cella, — e  de 
uma  das  que  se  alinham  de  um  e  de  outro  lado 
nos  vastos  dormitórios  antigos, — não  nas  que  foram 
aposentos  privativos  e  independentes,  não,  por  exem- 
plo, nos  da  celebre  Madre  Paula,— desenhavam  se 
brincando  e  enleando-se  em  suspeitas  folias,  a  Am- 
philrite  e  Neptuno,  Galatea  e  Sileno,  vários  satyros 
barbudos  e  nymphas  de  formas  opulentas,  audacio- 
samente traçadas  a  amarello  em  aguas  e  bosques 
multicores  do  mais  pagão  eíTeito.  Na  Conceição^ 
como  em  todos  os  mais  conventos,  existiam  as  duas 
espécies  de  alojamentos  a  que  acabamos  de  alludir: 
— a  dos  dormitórios  communs  em  pequenas  cellas 
construídas  a  um  e  outro  lado  de  um  longo  salão, 
com  ou  sem  tectos  próprios,  pois  que  não  chegavam 
ao  grande  recinto, — e  a  dos  quartos  ou  cellas  em 
grupos  formando  alojamentos  independentes  e  pri- 
vativos que  eram  os  que  as  freiras  do  século  xvii 
chamavam  as  suas  casas. 

A  primeira  espécie  era  a  que  auctorizavam  as 
Constituições.  As  da  Conceição,  por  exemplo,  di- 
ziam:—  «Porém  sempre  se  farão  os  Dormitórios  e 
Cellas ...  em  tal  disposição  que  a  Abbadessa  com 
uma  ou  duas  portas  os  feche  de  noite.  E  lerá  em 
seu  poder  as  chaves.»  Temos  encontrado  este  cui- 
dado das  chaves  muito  significativamente  recom- 
mendado  n'outros  conventos:— ainda  ha  pouco  no 
livro  das  visitações  do  convento  da  Esperança,  (Lis- 
boa) alludindo  ao  pretexto  de  irem  tratar  das  suas 

12* 


i80 


hortas,  que  parece  allegavam  as  religiosas  para  sahi- 
rem  de  noite  á  cerca. 

Mas  á  parte  as  causas  e  influencias  mundanas, 
facilmente  apreciáveis  que  fariam  illudir  e  abando- 
nar a  regra  geral,  o  simples  crescimento  da  popu- 
lação monástica  bastaria  para  ir  çreando  novos  alo- 
jamentos fora  dos  dormitórios  regulamentares. 

Um  termo  de  visitação  ao  convento  de  Odivellas, 
reprehende  asperamente  a  relaxação  de  dormirem 
as  freiras  nas  suas  Casas  que  lhe  são  permittidas 
somente  para  n'ellas  estarem  e  trabalharem  de  dia. 
Mas  de  que  o  costume  era  corrente  e  assente  na 
Conceição,  temos  prova  nos  próprios  termos  con- 
vcntuaes,  sem  que  a  tal  respeito  façam  objecção  os 
visitadores.  No  do  óbito  de  uma  das  companheiras 
das  Alcoforados,  por  exemplo,  se  narra,  louvando- 
Ihe  a  piedosa  constância,  que  «assistia  de  dia  e  de 
noite  em  hua  casa  pequena»  que  mandara  fazer 
n'um  terreiro  do  convento,  junto  de  uma  capella 
que  egualmente  fizera,  «e  da  qual  só  sahia  para  o 
coro  e  matinas  da  meya  noite  e  para  assistir  ás  en- 
fermas.» Por  signal  que  tivera  bulhas,  por  causa 
d'estas  edificações,  com  outra  religiosa  que  alli  ti- 
nha também  «as  suas  casas», — e  a  quem  parece 
que  não  convinha  a  visinhança,  aliás  tão  devota. 

É  claro  que  estes  alojamentos  eram  geralmente 
feitos  pelas  freiras  mais  ricas  ou  pelas  suas  famí- 
lias, e  sabemos  já  que  para  as  filhas  mandara  tam- 
bém fazer  no  convento  — «umas  casas», — Francisco 
da  Costa  Alcoforado,  onde  Marianna  viviria  já  ao- 


181 


tempo  do  episodio  das  Cartas.  Deveriam  ficar,  até, 
na  parte  posterior  do  edifício,  do  lado  da  rua  da 
Conceição  e  das  portas  de  Mertola  que  é  para  onde 
se  foi  accrescentando,  evidentemente,  o  edifício,  no 
século  xvn. 

Grande  era  então  a  população  conventual,  e  não 
podia  corresponder  a  ella,  o  numero  das  cellas  dos 
dormitórios,  que  ainda  hoje  pode  approximadamente 
computar-se. 

Diz  uma  chronica  que  em  1617  havia  alli  120 
freiras  professas  e  mais  de  20  noviças.  E  em  docu- 
mento de  um  processo  extractado  no  Tombo  do 
convento,  e  terminado  por  uma  sentença  real  da 
Casa  da  Supplicação,  em  14  de  abril  de  1640, 
diz-se  que  haviam — «de  portas  a  dentro  dusentas 
e  onze  mulheres  entre  freyras  e  servidoras,  e  cinco 
frades  com  seus  moços  de  serviço  e  muitas  mulhe- 
res que  servem  de  portas  a  fora,  e  outros  ofíiciaes 
da  casa  a  quem  sustentam.»  Mas  este  recencea- 
menlo  refere-se  a  alguns  annos  atraz,  a  1628,  e  a 
população  conventual  devia  ter  augmentado  muito 
depois  de  1640  e  durante  a  guerra.  Imagine-se  esta 
multidão  femenil  apertada  entre  as  sombrias  pare- 
des do  devoto  recinto  em  meio  de  uma  cidade  agi- 
tada pelos  alvoroços  da  campanha  fronteiriça,  cheia 
de  soldados,  aventureiros  e  extranhos. . . 

Está  claro  que  esta  dispersão  das  religiosas,  e  es- 
tes alojamentos  privativos  e  independentes  de  mui- 
tas d'ellas,  creavam  facilidades  que  poderiam  con- 
trariar, em  mais  de  um  ponto,  a  regra  conventual 


182 


e  illudir  a  \igilancia  e  fiscalização  tão  vivamente  re- 
commendadas  nas  Constituições,  apezar  de  todas 
as  severas  precauções  estabelecidas  nellas. 

Mas  não  é  d'isto  que  tratamos  agora,  e  apenas 
accrescentaremos  ainda  que  a  titulo  de  devoção  ou 
de  penitencia  especial,  se  chegava  a  construir  edi- 
fícios isolados^  no  próprio  recinto  dos  conventos 
para  onde  uma  ou  mais  religiosas  iam  viver,  muito 
tempo,  apartadas  do  convívio  das  outras,  quando 
«aspiravam  á  heróica  empreza  de  viverem  só  com  o 
seu  Amado,  totalmente  abstrahidas  do  commercio 
das  Creaturas», — como  explica,  nos  arrojos  rheto- 
ricos  do  seu  devoto  enlhusiasmo,  Fr.  Caetano  do 
Vencimento,  na  Vida  da  celebre  beata  Madre  Ma- 
rianna  da  Purificação  K  A  isto  se  chamava  o  deserto. 

Situado  n'uma  elevação  hoje  quasi  central,  mas 
em  tempo  no  extremo  sul  da  cidade  que  para  aquelle 


1  Fragmentos  da  prodigiosa  vida  da  muito  favorecida,  e  amada 
Esposa  de  Jesus  Christo,  a  Venerável  Madre  Marianna  da  Pu- 
rificação Religiosa  Carmelita  Calçada  do  Seminário  de  almas 
Santas,  o  Reformadissimo  Convento  da  Esperança  da  Cidade 
de  Reja.  &.  Pelo  M.  R.  P.  M.  Fr.  Caetano  do  Vencimento.  &. 
—Lisboa  &.— 1747. 

Este  Livro  é  o  quadro  mais  extraordinário  e  completo  que 
conhecemos  como  revelador  do  sensualismo  mystico  dos  con- 
ventos. 

Temos  á  mão  um  outro,  e  é  curioso  que  trata  também  de 
uma  Soror  Marianna,  contemporânea  da  nossa,  e  freira  n'um 
convento  do  Alemtejo,  egualmente.  É  este: — Desposorios  do 
espirito,  celebrados  entre  o  divino  Amãte,  cS:  sua  Amada  Es- 
posa a  venerável  Madre  Soror  Marianna  do  Rosário,  religiosa 


183 


lado  se  foi  alongando;  próximo  das  antigas  mura- 
lhas e  sobranceiro  ás  portas  d'ellas  chamadas  ainda 
de  Mertola: — o  Mosteiro  da  Conceição  não  tem  cerca 
e  os  seus  elevados  muros  dão  immediatamente  so- 
bre as  ruas  que  o  limitam  n'um  vasto  e  irregular 
polygono: — a  da  Conceição,  a  dos  Infantes,  e  a  da 
Fabrica. 

Descrevendo  esta  posição  do  mosteiro  um  chro- 
nista  franciscano  esmera-se  em  insinuar  uma  pe- 
quena circumstancia  em  que  poderá  ver-se  apenas 
o  requinte  devoto  no  elogio  do  recolhimento  con- 
ventual, se  não  fosse  o  facto  d'esse  chronista  ser 
contemporâneo  do  episodio  das  Cartas^  escrever 
quando  já  diversas  edições  corriam  mundo,  e  a  re- 
ferencia parecer  habilmente  ensaiada  para  afastar 
do  Convento  da  Conceição  a  indicação  indiscreta  da 
Religiosa.  Em  uma  das  Cartas,  Marianna  allude  ao 


de  veo  branco  no  convento  do  Salvador  da  Cidade  de  Évora. 
Offerece-os,  etc.  Frey  António  d'Almeida,  etc. — Lisboa,  etc. 
1694. 
Sobre  aquelle  mesmo  thema,  do  retiro  devoto,  diz : 
— « . . .  recolhida  todo  o  tempo  que  possivel  lhe  tra  em  o 
retiro,  «Sc  refugio  da  sua  cella,  ali  passava  naquella  ditosa  so- 
lidão sem  estar  só,  porque  nunca  está  só  quem  busca  a  Deos. 
Tão  grandes  erão  os  regalos  que  neste  doce  retiro  lograva  seit 
espirito  com  a  presença  do  Celeste  Esposo,  que  desejosa  de 
lograr  sempre  aquelles  amorosos  allivios,  quasi  lhe  causava 
já  tédio  a  lida,  &  commonicação  das  creaturas,  «&  desejava  li- 
vrarse  de  todas  ellas,  indo-se  com  o  seu  Amado  para  hum 
deserto.  > 


i84 


miradouro,  ao  halcon,  como  traduz  Guilleraques, 
«donde  se  vê  Mertola»  e  de  onde  ella  viu  pela  pri- 
meira vez  o  capitão  de  cavallos.  Logo  veremos  o 
valor  da  allusão. 

Publicando  em  1705  a  sua  interessante  Chronica, 
fr.  Fernando  da  Soledade  ^  diz,  referindo-se  ao  con- 
vento onde  Marianna  Alcoforado,  que  elle  não  cita, 
vivia  ainda; — «Não  lhe  deu  commodidade  para  hor- 
tas, pomares  ou  jardins  a  visinhança  das  ruas,  mas 
a  grandeza  da  casa  repartida  para  diíTerentes  usos 
em  quartos  multiplicados  e  todos  muito  perfeitos, 
representa  um  paraíso  alegre,  no  qual  recreando-se 
os  olhos,  respiram  juntamente  os  corações  aperta- 
dos . . .  Ainda  nos  tempos  presentes,  segundo  nos 
afjirmam  pessoas  de  inteiro  credito,  manifesta  o  que 
foi  sempre,  na  forma  dos  locutórios,  na  cautella  em 
todas  as  partes  publicas,  nas  Matinas  á  meia  noite, 
e  nas  mais  obrigações  que  satisfazem  como  devem. 
Estando  toda  a  Casa  cercada  de  muros  altos,  sem 
hortas,  nem  cerca  em  que  se  possam  divertir  com 
algum  desafogo,  sempre  fizeram  capricho  de  não  con- 
sentir que  se  edificasse  um  miradouro  d' onde  os  olhos 
vaguemido  pelas  cousas  terrenas,  talvez  poderiam  des- 
viar as  almas  das  delicias  celestes  )■>. 

Haja  ou  não  reservada  idéa,  o  rhetorico  frade  ou 
foi  audaciosamente  iiludido  ou  mente. 

A  simples  inspecção  externa  do  edifício  imme- 


1  Chron.  Seráfica,  etc. 


185 


dialamente  destroe  a  elogiosa  ou  intencional  affir- 
mação,  á  qual  a  mais  rápida  visita  d'elie  não  per- 
mitte  sequer  o  recurso  de  poder  suppor-se  que  no 
tempo  do  frade  ou  do  episodio  das  Carias  não  exis- 
tissem os  miradouros  que  lá  se  encontram  ainda. 

Pode  dizer-se  que  em  todas  as  direcções  pode- 
riam as  piedosas  creaturas  descançar  e  espairecer 
a  vista  em  «cousas  terrenas», — além  das  que  lá 
dentro  naturalmente  as  preoccupavam.  Melhor  gosto 
e  senso  do  que  o  seu  pomposo  chronista,  mostra- 
vam as  pobres  senhoras  em  não  julgarem  necessá- 
rio sequestrar  os  olhos  aos  bellos  panoramas  e  lar- 
gos horizontes  que  mais  intelligivelmente  do  que  os 
latins  dos  breviários  e  as  lendas  dos  agiologios  lhes 
narrariam  a  gloria  e  o  poder  do  Eterno: — Cceli 
enarrant  gloriam  Dei. 

Miradouro,  é  uma  expressão  genérica  e  archaica 
que  comprehende  os  eirados,  as  alpenduradas,  as 
varandas,  os  mirantes,  os  balcões,  todas  as  varias 
canstrucções  accessorias  d'esta  natureza  ou  parti- 
cularmente destinadas  a  espairecer,  e  recrear  a  vis- 
ta, a  receber  o  ar  livre  dos  campos,  etc. 

No  Alemtejo  é  a  varanda  ou  o  eirado. 

Serve  isto  já  de  nota  á  nossa  traducção  das  Car- 
tas. 

Quasi  todos,  e  cremos  que  poderíamos  dizer  to- 
dos, os  nossos  conventos,  particularmente  os  de 
freiras,  possuíam  taes  construcções.  Facilmente  se 
comprehende  que  no  Alemtejo,  onde  pelas  próprias 
condições  do  clima  ellas  são  vulgarissimas,  não  dei- 


186 


xassem  de  as  ter  as  casas  monásticas,  sobretudo  as 
que,  como  a  da  Conceição,  alojavam  uma  população 
considerável  e  estavam  cercadas  «de  muros  altos, 
sem  hortas  nem  cerca  em  que  as  religiosas  se  pos- 
sam divertir  com  algum  desafogo». 

Exactamente,  a  varanda  suppria  a  cerca. 

Á  parte,  pois,  as  janellas  ou  gelosias  exteriores, 
collocadas  a  diversas  alturas,  aquelle  mosteiro  ti- 
nha excellentes  «miradores»,  e  dois,  pelo  menos, 
existem  ainda,  em  que  a  vista  podesse  recrear-se, 
e  por  horas  próprias  mitigarem  as  pobres  freiras 
as  calmas  do  verão  alemtejano. 

Um  d'elles  dá  até  immediatamente  sobre  a  cida- 
de, em  forma  accentuada  e  franca  de  mirante. 

O  outro,  em  que  por  uma  circumstancia  feliz,  a 
construcção  antiga,  original,  do  respectivo  lanço  dos 
muros  se  accentua  e  impõe  irrecusavelmente . . . 

Ah,  o  outro,  era  o  que  nós  procurávamos  de  ha 
muito,  com  tão  pouco  respeito  pela  pia  fraude  de 
fr.  Fernando  da  Soledade  que  até.  a  affirmação  d'elle 
mais  nos  fazia  desconfiar  de  que  realmente  exis- 
tira I . . . 


II 


Percorrendo  o  enorme  e  quasi  deserto  edifício, 
n'um  d'aquel[es  dias  límpidos  e  ardentes  do  Alem- 
tejo,  como  que  sentíamos  ir-se  refazendo  e  acompa- 


187 


nhando-nos,  nas  sombras  dos  casarões  nus,  que 
succediam  bruscamente  á  luz  quente  e  ampla  dos 
claustros,  o  episodio  lancinante  das  Cartas. 

A  vida  e  tradição  conventual  que,  á  parte  as  va- 
riantes mais  ou  menos  severas  e  formalistas  da  Re- 
gra, pouco  deferia,  no  século  xvn,  de  uma  para  ou- 
tra clausura  de  mulheres,  recompunha-se  e  resur- 
gia  no  nosso  espirito  com  uma  nitidez  estranha, 
irrecusável. 

Aquella  grande  solidão  absorvente,  desolada,  de 
um  convento  abandonado,  faz  irresistivelmente  sen- 
tir a  inanidade,  o  vácuo,  a  obsessão,  a  grande  con- 
tradicção  mystica,  da  vida  claustral: — o  silencio — 
ftchave  da  alma  e  culto  da  justiça,  formosura  e  or- 
nato das  Casas  de  Religião», — como  o  recommen- 
davam  as  Constituições; — a  contenção  de  lodosos 
Ímpetos  do  sangue  e  da  mocidade;  a  vida  girando 
monotonamente  entre  a  Cella  e  o  Coro;  a  sensibi- 
lidade, a  intelligencia,  a  vontade  batalhando  noite 
e  dia  no  vago  dos  «celestes  favores»  e  das  «doces 
violências  da  Graça»;  o  i espiritual  recolhimento», 
a  ascese  «contemplativa»  torturando  o  coração  e  o 
espirito  com  terrores  mortaes  ou  malogradas  volú- 
pias; a  clausura  perpetua,  a  perpetua  mutilação  da 
natureza,  o  perpetuo  sacrifício  incomprehensivel,  fa- 
tal, irrevogável*. 


1  «Entrou  com  a  consideração  a  ponderar  o  que  em  si  via 
&  parecendo-llie  que  estava  já  no  Ceu,  tirou  por  consequên- 
cia, que  devia  já  ser  morta  para  o  mundo.  O  tiabito  contiecia 


188 


E  por  baixo  de  tudo  isto: — a  pequena  intriga  e 
o  tédio  inilludivel  de  muitas  creaturas  encarceradas 
no  mesmo  destino  e  na  mesma  casa;  a  hypocrisia 
permanente,  os  rigores  absurdos,  a  emulação  de- 
vota em  que  não  raro  se  esconderiam  os  pequenos 
ciúmes  e  antagonismos  femininos*;  emfim  os  esti- 
mulos  e  as  seduções  do  mundo  segredados  nas  pa- 
lestras dos  locutórios,  nos  olhares  trocados  atravez 
das  rejas,  nas  próprias  revelações  recebidas  atra- 
vez das  rotulas  dos  confessionários, — que  era  «mui- 
ta a  liberdade  das  grades  n'aquelle  miserável  tem- 
po», como  ingenuamente  diz  o  venerável  bispo  do 
Gram  Pará . . . 

Quando  não  fosse  alguma  coisa  peor,  alguma 
d'estas  terríveis  monstruosidades  de  organismo  ou 
de  sentimento  que  a  natureza  ou  o  diabo  atiravam 
ás  vezes,  n'uma  revindicta  cruel,  para  o  meio  das 
populações  claustraes,  como,  por  exemplo,  a  reve- 


ser  mortalha,  o  Convento  a  sepultura,  a  deixação  do  mundo 
o  testamento,  &  finalmente  o  sacrifisar  a  vontade,  a  morte.» 

Isto  diz  frei  António  de  Almada,  de  Marianna  do  Rosário, 
quando  esta  toma  o  habito,  menina  e  moça  de  11  annos!  {Desp. 
do  espirito,  ete.). 

1  «Nenhua  particularidade  ha  que  se  livre  nas  Communidades 
de  ser  notada :  he  pensão  esta,  a  que  se  expõem  o  qoe  se  faz 
em  presença  de  muitos  olhos,  &  de  diversas  condições;  &i  as- 
sim a  Esposa  do  Senhor  não  foi  muito  experimentasse  no  seu 
Convento  diversos  juizos  sobre  o  tracto,  &  caridade  particular 
com  que  trattava  a  sua  espiritual  filha  Soror  Flena.»  {Desp.  do 
espirito,  etc). 


189 


lada  por  uma  grave  e  piedosa  sentença  episcopal, 
que  temos  deante  de  nós,  mandando  expulsar  de 
um  convento  de  Villa  Viçosa  uma  pobre  freira  por 
se  demonstrar,  ao  fim  de  muitos  annos,  «que  não 
era  mulher  mas  homem». 

Alguém  quiz  já  irmanar  a  Conceição  de  Beja  com 
o  mosteiro  de  Odivellas,  na  lenda  galante  que  tão 
celebre  tornou  este  ultimo  entre  os  nossos  littera- 
tos. 

Por  outro  lado  é  vulgar,  quando  se  fala  da  vida 
conventual  no  século  xvn,  caracterisal-a  por  uma 
grande  relaxação  das  relações  e  dos  costumes  mo- 
násticos, em  parte  estimulada  pelo  moUnismo. 

Arredemos  os  dois  themas  que  em  absoluto  con- 
sideramos menos  exactos  e  seguros.  Á  parte  a  ce- 
lebridade derivada  dos  nomes  ou  das  circumstan- 
cias  que  pozeram  em  casual  relevo  certos  factos 
e  não  poucas  invenções,  e  independentemente  de 
quaesquer  influencias  concorrentes  do  espirito  do 
tempo  ou  do  desabuso  dos  espíritos, —  cremos  que 
o  fundo  da  lenda  galante  dos  conventos  de  freiras 
não  cabe  na  simples  historia  de  uma  ou  de  outra 
clausura  religiosa,  mas  que  se  alarga  necessaria- 
mente pela  de  todas,  e  não  partence  a  um  movi- 
mento particular  de  doutrina  ou  de  escola,  mas  tem 
uma  explicação  mais  physiologica  do  que  histórica, 
sobretudo  mais  natural  do  que  litteraria. 

Nada,  porém,  auctoriza  a  singuiarisar  o  convento 
da  Conceição  nos  costumes  e  no  espirito  monástico 
do  século  XVII,  e  coisa  alguma  nos  parece  haver  na 


190 


episodio  das  Cartas  que  razoavelmente  possa  attri- 
biiir-se,  não  já  apenas  a  um  modo  de  ser  especial 
da  vida  interior  d'aquelle  mosteiro,  mas  a  uma  fei- 
ção exclusiva,  característica,  da  epocha,  menos  ainda 
á  influencia  molinista  pouco  consoante  com  a  direc- 
ção espiritual  dos  franciscanos.  Exactamente,  ainda 
no  tempo  de  Marianna  Alcoforado,  se  inicia  na  Con- 
ceição o  movimento  de  recrudescência  ou  de  reac- 
ção beata,  chamado  da  reforma,  não  sem  resistên- 
cia e  protesto  que  vae  até  ao  motim  e  á  guerra 
entre  as  freiras.  Naturalmente  o  periodo  revolucio- 
nário e  bellicoso  da  Restauração  accrescentaria  por 
diversos  modos  o  afrouxamento  da  disciplina  e  da 
moralidade  claustral.  D'ahi,  aquella  reacção. 

Mas  independentemente  d"isto,  Marianna,  em 
1668,  sente  e  fala,  do  fundo  da  sua  triste  clausura 
como  Ileloisa,  séculos  antes,  abbadessa  do  Para- 
cleto. 

Por  um  ou  outro  d'estes  dramas  Íntimos  que  en- 
contraram n*uma  iutelligencia  mais  fina  ou  mais 
culta  a  expressão  exacta,  communicativa,  das  pai- 
xões que  os  teceram,  quantos  outros,  semelhantes, 
se  afundaram  obscuramente  na  corrente  das  intitui- 
ções  e  dos  tempos!  A  quem  não  terá  succedido  ao 
folhear  as  grossas  chronicas  conventuaes,  sentir  re- 
pentinam.ente  vibrar,  atravez  das  pompas  e  das  ve- 
ladas revelações  da  rhetorica  beata,  o  drama  ob- 
curo,  anonymo,  de  uma  alma  de  mulher  despeda- 
çada na  lucta  feroz  da  natureza  com  a  instituição 
mystica? 


191 


A  vida  e  a  sociedade  do  Convento  da  Conceição 
de  Beja,  na  epocha  que  particularmente  nos  inte- 
ressa, não  se  destaca  nas  chronicas  mais  próximas 
6  auctorizadas,  da  monótona  redundância  dos  casos 
miraculosos  e  da  glorificação  devota  com  que  os 
historiadores  monásticos  costumam  encher  os  seus 
grossos  volumes.  Apenas  nos  termos  conventuaes, 
— nos  que  conhecemos,  de  Í690,  em  deante, — uma 
ou  outra  vez  se  faz  discreta  allusão  ás — «levianda- 
des de  moça», —  de  alguma  pobre  religiosa,  para 
lhe  exalçar  a  predestinação  que  á  força  de  cilícios 
e  jejuns  a  reconduziu  á  vida  —  ou  á  morte — «vir- 
tuosa» e  santa. 

— «Em  um  paraiso  de  flores  odoríferas,  qual  é 
este  mosteiro,  na  exemplaridade  das  virtudes», — 
diz  pomposamente  um  chronista, — «não  podiam  fal- 
tar esmaltes  preciosos  que  o  enobrecessem,  nem 
religiosas  santas  que  o  esmaltassem  com  venerável 
memoria  de  uma  vida  innocente.»^ 

E  cada  qual  põe-se  devotamente  a  contar  as  par- 
ticulares devoções  ou  as  milagrosas  occorrencias  da 
vida  de  varias  religiosas  que  desfilam  deante  de 
nós  como  personagens  de  um  mundo  extranho,  ape- 
nas uma  ou  outra  vez  relacionadas  com  o  nosso 
por  ligeiras  referencias  á  vida  real  ou  por  uma  ou 
outra  indicação  beata  que  não  raramente  nos  fere 
e  surprehende  na  sua  ingénua  rudeza.  São,  com 
pequenas  variantes,  os  mesmos  casos  succedidos 


1  Hist.  Seraf.  chron.,  tom.  ni,  Lisboa,  170o. 


19S 


em  todas  as  clausuras,  de  extraordinárias  peniten- 
cias illurainadas  pela  Graça,  de  particulares  bene- 
fícios e  caprichosas  preferencias  do  Divino  Esposo 
por  uma  ou  outra  religiosa,  de  grandes  actos  de 
humilhação  e  de  sacrifício,  de  raptos  e  visões  que 
devassam  todo  o  mundo  do  mysticismo  desde  a  ve- 
luptuosidade  perenne  da  Summa  Gloria  até  aos  hor- 
rores da  Eterna  Damnação;  —  emfim,  de  assaltos 
formidáveis  ou  de  perfídias  complicadas  do  Inimigo, 
de  rebeldias  e  tentações  continuas  da  Carne. . . 

Este  ultimo  thema  é  a  cada  pagina  atacado  e  re- 
solvido pelos  devotos  chronistas  com  uma  intrepi- 
dez, e  por  vezes  com  uma  precisão  de  minúcias, 
que  espanta,  realmente. 

Falando,  por  exemplo,  d'aquella  pobre  freira, — 
companheira  de  Marianna  e  de  Peregrina  Alcofo- 
rado,—  que  atraz  dissemos  ter  entrado  aos  7  annos 
no  convento,  Fr.  Jeronymo  de  Beliem,  observa  com 
galante  delicadeza: — «Da  castidade  só  sentiu  o  que 
faz  mais  meritória  esta  virtude,  'mas  sentindo  nunca 
consentio,  pois  ao  mesmo  tempo  em  que  se  via  con- 
vidada ao  appetite,  na  resistência  encontrava  alli- 
vio,  com  créditos  de  merecimentos.  Fazia  muito  por 
suprimir  os  incêndios  com  rigorosas  penitencias,  e 
castigava  as  rebeldias  da  carne  própria  e  as  faltas 
da  miséria  alheia  que  a  tanto  chegava  sua  ardente 
caridade.»* 


1  O  sr.  Th.  Bragca  referindo-se  evidentemente  a  este  trecho 
diz : — «Em  uma  Chroniea  monástica,  falando  das  freiras  ce- 


193 


De  outra,  falada  em  todas  as  chronicas  que  se 
referem  á  Conceição, — proclama  também  o  minu- 
cioso frade: — «Na  virtude  da  castidade  parecia  ter 
puresa  de  Anjo,  porque  nunca  a  tentação  se  atre- 
veu a  uma  carne  que  lograva  privilegio  de  espi- 
rito.»* 

Não  se  pode  ser  mais  finamente  delicado  na  in- 
sinuação de  como  não  eram  raros  aquelles  incên- 
dios, nem  coisa  que  por  banal  devesse  passar  sem 


lebres  da  Conceição  de  Beja,  diz-se,  alhulindo  vagamente  aos 
amores  de  Marianna,  que  ella  «sentira  e  não  consentira».  Por 
aqui  se  vê  que  a  tradição  amorosa  da  Religiosa  era  conhecida 
em  Portugal,  mesmo  antes  da  entrada  das  Cartas. 

Que  o  nosso  illustre  amigo  nos  perdoe: — não  se  vé  tal, 
nem  precisamos  phantasiar  coisa  alguma  parecida.  jN'aquelle 
trecho  não  só  não  se  allude  vagamente  aos  amores  de  Marianna, 
mas  fala-se  de  Soror  Marianna  da  Conceição,  que  não  é  Ma- 
rianna Alcoforado,  e  sim  uma  sua  companheira  que  morreu 
em  1736  com  120  annos,  tendo  entrado  aos  7  no  convento, 
por  Breve  Pontifício.  De  resto,  a  allusão  seria  tola.  O  chro- 
nista  sabia  muito  provavelmente  que  a  sua  contemporânea 
Marianna  Alcoforado,  não  somente  sentira,  mas  consentira,  e 
por  isso,  talvez,  não  fala  n'ella.  {Chr.  Seraf.,  Lisboa,  1753, 
2.^  p.). 

1  Da  Marianna,  dos  Desposar ios  do  Espirito,  não  se  esquece 
também  Ffcí  ylntonio  d'Almada  de  explicar  largamente  como 
«a  amada  Soror. . .  trazia  tãto  em  os  olhos  da  alma,  qne  era 
por  obrigação  do  seu  estado  Esposa  deste  Senhor,  para  des- 
empenhar seu  affecto  em  devida  correspondência,  fiel  sempre 
a  seu  castissimo  thalamo,  como  a  Esposo  &  como  a  Amado, 
lhe  guardava,  óc  resguardava  com  todo  o  recato  a  joya  de  sua 
puresa.» 

F.  13 


194 


elogiosa  homenagem,  o  resistir  firmemente . . .  á 
combustão. 

N'estes  registos,  mais  ou  menos  longos,  das  pre- 
destinações conventuaes,  vemos  passar  muitas  das 
companheiras  de  Marianna  Alcoforado,  sem  que  o 
nome  d'esta,  já  no  começo  do  século  xvni  aureo- 
lado entre  ellas,  pelos  clarões  da  redempção  peni- 
tencial, uma  só  vez  appareça: — são  Catharina  de 
Aragão, —  a  da  citação  que  acabámos  de  fazer; — 
Marianna  da  Conceição, — a  «que  sentindo  nunca 
consentiu»;— Anna  Maria  de  Santa  Thereza, — a 
que  se  flagellava  na  capella  do  Capitulo; — Guio- 
mar de  Jesus, — «solitária  contemplativa  sempre  ele- 
vada na  contemplação  da  celestial  formosura»; — 
Ignez  de  Christo, — «tão  silenciosa  que  ninguém  sem 
urgente  necessidade  lhe  ouvia  falar»; — Leonor  dos 
Martyres, — muito  dada  a  ver  extraordinárias  coisas, 
chegando  a  ver  um  dia  no  coro  «um  homem  com 
outro  ás  costas»,  visão  perfeitamente  explicada  pela 
mystica  conventual; — Maria  de  Jesus, — cheia  de 
«toques  e  moções  interiores»; — uma  abbadessa,  que 
por  nome  não  perca,  que  oppondo-se  á  construcção 
de  uma  capella  do  Baptista,  indo  ás  três  horas  da 
madrugada  para  o  coro,  encontrou,  nem  mais  nem 
menos,  do  que  «um  homem  venerando,  vestido  de 
pelles ...» 

Com  animo  varonil  a  boa  freira  exclamou:  — 
«Quem  sois?  Homens  no  Mosteiro  a  estas  horas!?)) 
Entraram  em  explicações.  Era  o  próprio  Baptista 
que  estava  alli  expressamente  para  recommendar 


i95 


á  intrépida  freira  que  não  continuasse  a  oppor-se 
a  que  se  lhe  fizesse  uma  capella  mais.  Gonvieram 
n'isto. 

Caso  mais  extraordinário, — mais  duradouro,  pelo 
menos,  —  succedia  com  outra  religiosa,  Soror  Mi- 
«haela  dos  Anjos,  que,  por  signal,  morreu  em  23 
de  outubro  de  1713,  com  60  annos  de  edade. 

O  Menino  Jesus,  em  pessoa,  vinha  regularmente 
ajudal-a  na  sua  cella,  a  fazer  as  flores  e  os  ramos 
para  os  altares. 

É  piedosamente  encantador  o  registo  de  Fr.  Jero- 
nymo  de  Bellem.  — « . . .  e  com  curimdade  de  Frei- 
ras, ellas  a  tinham  de  vigial-a  para  verem  e  admi- 
rarem o  que  fasia,  mas  nunca  puderam  ouvir  mais 
que  a  sua  voz . . .  Por  veses  lhe  fazia  suas  peças  o 
Menino  e  como  recreando-se  na  presença  da  sua 
amante  Esposa,  lhe  misturava  os  materiaes  das  suas 
flores  para  ouvir-lhe  as  queixas,  como  succedeu  um 
dia  em  que  ella  com  a  humildade  de  serva  e  privi- 
legio de  Esposa  lhe  dice:  —  «Aquietae-vos,  como 
estaes  travesso! — Nesta  forma  trabalhavam  ambos, 
o  Menino  regalando  a  sua  Esposa,  e  esta  com  os  fa- 
vores das  visitas  se  adiantava  no  merecimento  e  no 
serviço  para  o  culto  dos  seus  altares.» 

Estranha  ingenuidade  a  d'este  dizer  I 

Caso  tanto  mais  glorioso  que  devia  servir  para 
contrapor  aos  piedosos  desvanecimentos  das  carme- 
litas do  convento  da  Esperança, — d'alli  a  dois  pas- 
sos,— a  quem  o  Menino-Deus,  pouco  mais  ou  me- 
nos por  aquelle  tempo,  visitava  também  com  «par- 

13  # 


196 


ticulares  favores»,  na  pessoa  da  Venerável  Madre 
Marianna  da  Purificação. 

N'esta,  os  requintes  da  ascese  mystica  attingem 
proporções  realistas  verdadeiramente  entontecedo- 
ras.  A  narrativa  devota  desce  vertiginosamente  a 
pormenores  e  denuncias  extraordinárias. 

Como  a  pobre  Marianna  das  Cartas,  cujo  coração 
parece  ás  vezes  «forcejar  por  desprender-se  d'ella» 
e  ir  para  o  do  capitão  francez, —  a  beata  da  Espe- 
rança,— perdoe-se-nos  a  impiedade  do  parallelo,— 
sente  a  cada  momento  taes  «baques  e  abalos  que  o 
coração  me  dá  no  peito, — diz  ella  própria, —  que  o 
ouço  com  os  ouvidos  corporaes  e  desejo  abrir  o  peito 
com  as  minhas  próprias  mãos,  e  deixal-o  voar  para 
onde  elle  quer  e  deseja  tanto,  mostrando  que  não 
quer  viver  em  mim  senão  no  seu  centro  que  é  o 
meu  Divino  Esposo.» 

Este,  então,  estreita-a  amorosamente  nos  braços, 
acompanha-a,  com  graciosos  galanteios,  á  dobadoi- 
ra,  brinca  com  ella,  como  menino  folião,  nas  rezas 
do  coro,  aconchega-a  e  alimenta-a  ao  «seu  Santis- 
simo  Lado»,  mette-se  com  ella  na  cama. . . 

— «E  muitas  vezes, — conta  ella  ao  grave  e  pie- 
doso confessor  que  veiu  revelal-o  ao  mundo, — me 
succede  passar  toda  a  noite  n'esta  união  com  meu 
Divino  Esposo,  muito  mimosa  e  regalada,  que  para 
algumas  vezes  me  poder  levantar  é  necessário  que 
Vossa  Paternidade  me  mande  chamar,  que  sò  ou- 
vindo nomear  Vossa  Paternidade  me  posso  apartar 
do  que  estou  logrando,  que  é  tal  a  força  do  amor 


197 


d'aquelles  suaves  e  amorosos  laços  em  que  me  vejo 
presa  e  enlaçada ...» * 

Ainda  como  a  apaixonada  religiosa  das  Cartas, — 
perdoe-se-nos  a  impiedosa  reincidência, — que  não 
se  importa  que  todos  saibam,  que  quer  mesmo  que 
todos  conheçam  o  seu  espantoso  amor, — a  santa 
carmelita,  á  mesa  da  Sagrada  Communhão,  sente 
«taes  anciãs  e  desejos  que, — diz  ella  ainda, — não 
cabia  em  mim  nem  podia  com  tanta  força  de  amor  e 
desejava  ir  apregoar  este  amor  por  todo  o  mundo...» 
Felizmente,  «applacou-me  meu  Esposo  estas  cham- 
mas  dando-me  lugar  para  o  meu  retiro  acnde  logo 
me  recolhi  ao  coração  do  meu  Esposo,  logrando  os 
favores  e  regalos  que  não  me  atrevo  nem  sei  dar  a 
Vossa  Paternidade  a  mínima  noticia. y> 

Convém  sempre  accrescentar,  como  de  casos  se- 
melhantes observa  prudentemente  o  nosso  Manuel 
Bernardes,  <íque  tudo  isto  se  entende  mysticamente  e 


í  Casos  análogos  aconteciam  á  outra  Marianna,  a  dos  Des- 
posorios  do  Espirito.  De  um  conta  ella: — «Todo  este  tempo 
estive  vendo  cousas  que  a  língua  humana  não  pode  declarar. 
Eu  bem  me  sentia,  mas  não  podia  sahir  daquillo,  &  se  algúa 
pessoa  fora  falar-me  não  podéra  responder.  Vi  nesta  occasião 
a  meu  Senhor  como  húa  pessoa  que  está  muito  saudosa  de  ou- 
tra, abrindome  os  braços,  &  apertandome  com  muito  amor. . . 
Sahi  daquella  fogueira  divina  como  quem  sahe  de  um  fogo  ar- 
dente :  isto  tudo  foi  desde  o  jantar  até  que  forão  nove  horas 
da  noite,  a  qual  não  pude  dormir,  porque  não  se  acabou  o 
fogo  divino;  quem  o  pudera  imprimir  em  todo  o  género  hu- 
mano I  o 


198 


não  de  distancias  materiaes,  senão  de  conjuncçãa 
amorosa. i>  * 

Não  é  só,  porém,  d'estas  obsessões  da  hysteria 
beata  alimentada  e  cultivada  carinhosamente  pela 
clausura, — é  ainda  dos  episódios  mais  humanos  e 
comprehensiveis  da  vida  conventual,  que  o  extra- 
ordinário livro  de  Fr.  Caetano  do  Vencimento  nos 
offerece,  melhor  do  que  os  chronistas  geraes,  uma 
idéa  ou  uma  pintura  soffrivelmente  realista. 

Atravez  das  monótonas  pompas  do  estylo  e  das 
subtilezas  irritantes  da  erudição  mystica,  sentem-se 
6  vibram  as  reluctancias  desesperadas  das  pobres 
raparigas  sadias  e  fortes  que  preferem  o  suicidio  á 
profissão;— segredam  outras  as  suas  correspondên- 
cias de  amor  e  as  suas  «amisades  illicitas»; — lavra 
o  tédio  e  a  intriga,  rebentando  ás  vezes  em  verda- 
deiras revoltas,  na  legião  devota;— assalta  as  gra- 
des a  curiosidade  e  a  seducção  mundana; — enfei- 
tam-se  e  decotam-se  garridamente  as  Yirgens-Es- 
posas  do  Senhor. . . 

O  escândalo  chega  a  termos  de  obrigar  a  vene- 
rável beata  da  Esperança  a  ter  uma  serie  de  raptos 
pavorosos  em  que  vê  «as  religiosas  de  todas  as  re- 
hgiões  em  uma  caverna  escura,  e  nella  estavam  os . 
Demónios  atormentando-as,  e  com  varas  de  ferro 
em  brasa  lhes  queimavam  os  decotados^  outros  com 
carqueija  já  lhes  abrasavam  os  cahellos,  outros  pu- 


1  Pam  partido  em  pequeninos,  etc,  pelo  P.  Manuel  Bernar- 
des, etc. — Lisboa,  1708. — 2.^  p. 


199 


xando-lhes  pelos  toucados  as  arrastavam  e  lhes  fa- 
siam  outros  muitos  tormentos  e  despresos.» 

De  uma  vez  foi  temporariamente  eíTicaz  a  lição, 
observa  o  chronista: — «E  vendo  a  Venerável  M.  Ma- 
rianna  bem  dispostos  aquelles  brandos  corações, 
abrasada  no  Divino  zelo  pegou  em  uma  Imagem  de 
Christo  crucificado,  e  com  tal  fervor  lhe  fez  uma 
persuasiva  pratica  que  ali  mesmo  se  congraçaram 
todas  aquellas  que  viviam  em  nfinados  ódios;  outras 
tirando  os  toucados  e  enfeites  os  arrojavam  com  des- 
preso,  espedaçando  aquelles  falsos  Ídolos  da  sua 
vaidade;  prostadas  outras  e  com  verdadeiros  sinaes 
de  verdadeira  contricção,  pediam  a  Deus  perdão  das 
suas  culpas  e  á  Gommunidade,  do  escândalo  que  cau- 
savam com  as  suas  relaxadas  vidas ...» 

Citamos  o  caso  da  Esperança  porque  logrou  mais 
desenvolvida  chronica.  Mas  na  Conceição  acontece 
o  mesmo.  A  própria  Peregrina  Alcoforado, — a  irmã 
de  Marianna  e  no  tempo  d'esla, — nos  denuncia,  por 
conta  da  sua  biographada  e  companheira,  Anna  de 
S.  Francisco,  a  visão  do  demónio  sob  a  figura  de 
um  grande  pássaro  negro  adejando  sobre  as  frei- 
ras amotinadas  por  causa  da  reforma.  Contra  o  par- 
tido d'esta  ultima  batalhara  asperamente,  por  muito 
tempo,  aquella  religiosa,  até  que  um  dia  a  fizera 
bandear  uma  advertência  divina,  e  desde  então  não 
houve  mais  severa  propugnadora  do  recolhimento, 
da  abstinência,  e  das  «deleitações»  mysticas. 

Não  podendo  contar  sempre  com  estes  effeitos 
extraordinários  de  inspiração  superior  e  de  expon- 


200 


tanea  correcção  casual,  as  Constituições  recommen- 
davam  uma  therapeutica  minuciosa,  menos  espiri- 
tual certamente,  que  nas  suas  próprias  severidades 
6  precauções  está  a  cada  momento  revelando  os  pe- 
rigos e  fraquezas  que  salteavam  a  clausura. 

Tratando  da  admissão  a  ella,  as  Constituições, 
em  vigor  na  Conceição,  começam  por  ordenar  que 
— «a  que  houver  de  ser  recebida  para  Freira  seja 
bem  nascida,  virtuosa,  de  boa  fama,  san  em  o  corpo, 
disposta  para  levar  os  trabalhos  da  Religião,  de  ne- 
nhuma maneira  seja  recebida  a  que  tiver  enfermi- 
dade contagiosa.  Tenha  animo  prompto  e  seja  livre 
de  condição,  e  de  idade  ao  menos  de  dose  annos». 

A  esta  cabecinha  reflexiva  e  certeira  de  12  annos, 
muito  gravemente  recommendavam  que  antes  de 
entrar  na  devota  carreira  «fosse  dada  a  noticia  da 
Regra  e  de  todas  as  asperesas  e  exercícios  da  Re- 
ligião para  que  com  madura  deliberação  julgue  se  lhe 
wnvem  tomar  o  hahitoy>\  Jà  mais  tarde  não  teria  de 
queixar-se  d'essas  asperesas. . . 

— «A  religiosa  que  fôr  negligente  em  acudir  ao 
Coro  e  Officio  divino,  pela  primeira  vez  dirá  a  culpa 
em  o  Refeitório,  á  segunda  fará  penitencia  de  pão 
e  agua,  e  á  terceira  se  lhe  dará  uma  disciplina.  E 
se  fòr  incorrigível  se  lhe  tirará  o  veo  e  não  poderá 
chegar  d  roda  e  locutório  em  quanto  se  não  emen- 
dar». 

O  silencio,  dissemos  já  como  as  Constituições  o 
definem: — «chave  d'alma  e  culto  da  justiça», — por 
isso  também  exortam — «que  em  todo  o  tempo  e  lu- 


201 


gar  as  Religiosas  procurem  guardar  silencio», — or- 
denando que  pelo  menos — «desde  que  toquem  á 
prima  (hora)  da  noute  a  recolher,  ate,  que  no  outro 
dia  despertem  á  prima,  guardem  silencio». 

De  uma  sua  companheira,  Marianna  da  Cunha, 
morta  em  1692,  diz  ainda  Peregrina  Alcoforado  que 
«a  sua  vida  era  hu  continuo  silencio». 

Ás  cautellas  com  os  dormitórios  e  cellas,  alludi- 
mos  já,  e  em  relação  aos  trajos,  a  lei  é  de  uma  me- 
ticulosa previdência: — devem  ser  pobres,  é  claro, 
• — «de  pouca  roda  e  largura,  e  de  nenhuma  maneira 
arrastem».  Mas  a  garridice  femenina  d'estas  mes- 
mas austeras  precauções  sabia  tirar  pretexto: — no 
termo  de  visitação  de  um  convento  de  Lisboa  re- 
prehende-se  o  facto  de  algumas  freiras  encurtarem 
tanto  os  vestidos  que  se  lhes  viam  os  pés, — certa- 
mente as  que  os  tinham  bonitos, —  de  mais  a  mais 
calçados  em  vistosas  botinas! 

Contra  as  tentações  e  fraquezas  que  poderiam  de- 
rivar-se  das  relações  externas,  as  Constituições,  ex- 
hortam  e  mandam  «a  todas  as  religiosas  que  se 
apartem  e  abstenham  de  ter  amisades  e  tratos  par- 
ticulares, pena  de  privação  de  voz  activa  e  passiva 
por  dois  annos».  Á  primeira  vista  e  para  quem  não 
conhecer  a  subtil  gradação  criminal  e  penal  dos  có- 
digos ecclesiasticos,  esta  espécie  de  simples  «sus- 
pensão de  direitos  civis  e  politicos»,  poderá  pare- 
cer relativamente  suave. 

— «E  sendo  incorrigíveis,  —  continua  o  texto, — 
serão  postas  em  a  Casa  da  disciplina  por  quatro 


202 


mezes.  Item  mandamos  ás  Abbadessas,  pena  de 
privação  de  seus  oflicios  por  Ires  meses,  que  não 
consintam  que  as  Religiosas  teniiam  correspondên- 
cias, visitas  nem  conversações  continuadas,  em  que 
entreveiiha  continuação  de  escrever^  mandar  ou  rece- 
ber presentes,  nem  dem  locutório  a  Religiosa  alguma 
de  cuja  condição  presumam  que  não  estará  nelle 
com  modéstia,  exemplo  e  compostura  que  se  deve». 

E  aquellas  «continuações  destes  princípios», — de 
que  fala,  mais  saudosa  do  que  arrependida,  a  reli- 
giosa da  Conceição,  lá  estavam  também  prudente  e 
inutilmente  comminadas  na  regra,  até  com  mal  dis- 
farçada e  escandalosa  desconfiança  na  casta  isenção 
e  firmeza  das  pobres  freiras  ao  encontrarem-se  a 
sós  com  um  homem. 

— «A  religiosa  que  sahir  da  Clausura  ainda  que 
seja  por  pouco  tempo  ha  de  ser  absolta  da  excomu- 
nhão (em  que  ipso  facto  incorria)  em  plena  commu- 
nidade,  e  só  se  se  lhe  provar  que  esteve  com  algum 
homem  só  ou  fechada  em  alguma  parte  será  encar- 
cerada por  dez  annos  e  privada  perpetuamente  dos 
actos  legítimos,  e  de  chegar  a  grades,  roda  e  porta: 
E  as  mesmas  penas  se  darão,  á  que  dentro  da  Clau- 
sura esteve  só  fechada  com  elle  ainda  que  seja  dos 
nfficiaes  que  entram,  a  trabalhar  ou  a  outros  minis- 
térios do  mosteiroy>. 

Depois  de  tantas  outras  divagações  a  que  nos  le- 
varam os  factos  e  as  circumstancias  que  se  accumu- 
lam  e  rodeiam  o  episodio  das  Cartas,  e  que  nem 
todas  poderão  com  justiça  parecer  indifferentes  ao 


203 


único  processo  que  pode  adoptar-se  para  a  verifica- 
ção critica  d'esse  monumento,  estes  traços  da  vida 
conventual  completam,  por  dizer  assim,  o  fundo, 
rápido,  imperfeito,  mas  necessário,  em  que  aquelle 
episodio  e  os  personagens  d'elle  se  desenham  e  re- 
velam ao  nosso  espirito  como  uma  verdade  não  só 
histórica,  mas  physiologica,  não  apenas  provável, 
mas  evidente. 


III 


Subindo  alguns  degraus,  a  um  canto  e  ao  fundo 
da  varanda  interior  do  claustro,—  aberta  uma  pe- 
quena porta  arruinada,  achámo-nos  inesperadamente 
n'uma  espécie  de  vasto  eirado  em  que  o  sol  do  meio 
dia  cahia  a  pino,  e  que  a  parede  que  continua  da 
parte  inferior  do  edifício  fecha  do  todos  os  lados  á 
altura  de  alguns  metros. 

Em  frente,  a  um  angulo  d'essa  parede,  abre-se 
uma  larga  janella  gradeada. 

Para  que  seja  verdadeiramente  o  balcão,  a  va- 
randa, n'uma  das  suas  formas  vulgares  e  sobretudo 
conventuaes,  falta  hoje,  simplesmente,  áquelle  ei- 
rado a  cobertura  mais  ou  menos  ligeira.  Teve-a,  e 
até,  ha  poucos  annos,  é  que  ella  foi  apeada  ou  cahiu. 

Nova  e  mais  demorada  inspecção  d'esta  parte  do 
edifício,  habilitam-nos  a  ampliar  a  descripção  da 


204 


nossa  primeira  visita.  Alli  se  construiu  realmente, 
no  século  xvni,  á  custa  de  uma  companheira  das 
Alcoforados,  o  chamado  dormitório  novo  que  algu- 
mas das  actuaes  habitantes  do  convento  conheceram 
ainda,  Foi  naturalmente  a  ruina  e  a  fria  incommo- 
didade  do  enorme  dormitório  velho,  que  fica  pró- 
ximo, a  oeste,  sobre  a  sombria  rua  da  Conceição, 
que  moveu  á  construcção  nova,  no  lanço  sul,  fran- 
camente aquecida  pelo  sol,  de  manhã  ao  occaso,  e 
podendo  abrir  ou  conservar  para  os  campos,  duas 
grandes  janellas,  uma  ao  fundo  e  a  leste,  e  a  ou- 
tra, a  um  angulo,  evidentemente  mais  antiga,  e  que 
conserva  ainda,  com  a  tradição  galante,  o  nome  de 
janella  de  Mertola. 

Na  cimeira  da  porta  do  recinto  pode  ler-se  que 
«esta  obra  fez  a  M.°  li.^  Madre  Brites  Angélica  na 
era  de  17?0». 

Não  é  curioso  que  exactamente,  alli,  nos  appareça 
este  nome  de  Brites  recordando-nos  uma  das  refe- 
rencias das  Cartas:  a  da  D.  Brites  que  insiste  com 
Marianna  para  ir  espairecer  ao  balcão?. . . 

Faria  a  reverenda  senhora  o  dormitório,  a  capella 
ou  o  altar,  á  direita,  de  que  restara  vestígios  e  onde 
parece  que  houve  um  retábulo  da  Senhora  da  En- 
carnação. Faria  a  porta  e  as  cellas  que  na  linha  do 
sul  deixaram  desafogada  e  livre  a  janella  tradicio- 
nal; apropriaria,  emfim,  ao  novo  destino,  o  mira- 
dourOj  o  recinto,  ou  fecharia  este  do  lado  interior, 
cobrindo-o. 

Mas  o  que  não  fez  foi  a  muralha  exterior  do 


203 


convento,  com  os  seus  gigantes  de  construcção  pri- 
mitiva que  adelgaçando-se,  como  de  costume,  á  al- 
tura do  terreno  elevado  que  sustentam  e  sobre  o 
qual  se  abrem  os  pequenos  quintaes  do  convento, 
continuam  a  acompanhar  a  parede  do  que  foi  dor- 
mitório novo. 

A  obra  de  Madre  Brites,  posterior  ao  episodio  das 
Cartas,  foi  como  eram  geralmente  estas  obras  de 
freiras,  um  simples  trabalho  de  adaptação. 

A  própria  e  anterior  galeria  que  lhe  dá  accesso, 
communicando  immediatamente  com  o  dormitório 
velho  e  outros  interiores,  está  indicando  a  preexis- 
tência do  terraço  ou  eirado  aberto  d'aquelle  lado 
para  onde  se  foram  estendendo  as  construcções  no- 
vas, entre  as  quaes,  já  o  dissemos,  «as  casas»  que 
Francisco  da  Costa  Alcoforado  fizera  ás  filhas. 

A  bem  dizer  a  ruina  da  cobertura,  que  não  re- 
sistiu, como  o  resto  da  construcção  e  como  a  da 
outro  dormitório,  denunciando  a  sua  natureza  de 
adaptação  barata,  restituiu  ao  sitio  a  feição  primi- 
tiva de  largo  eirado  ou  varanda  destinada  á  recrea- 
ção, ao  passeio,  ao  desafogo  da  população  enclau- 
surada do  século  xvn. 

Adaptando-o  a  dormitório,  conservou-se  a  cha- 
mada janella  de  Mertola  ou  transformou-se  n'ella 
um  rasgão  do  muro,  que  pouco  elevado  do  pavi- 
mento interior  parece  attestar  ainda  o  seu  primeiro 
destino  de  vulgar  miradouro. 

E  o  que  é  também  curioso  é  que  ella,  fechada  por 
largas  grades  de  ferro,  recentemente  reforçadas  por 


206 


estreita  reja  de  madeira,  e  dando  para  o  que  pode 
chamar-se  agora  o  Chiado  de  Beja,  tem  conservado 
não  somente  a  sua  tradição . . .  mas  a  sua  applica- 
ção  enamorada. 

Entrando  n'aquelle  recinto  e  approximando-nos 
da  janella  descripta,  a  allusão  da  pobre  Marianna 
ao  «balcão  d'onde  se  vê  Mertola»,  e  d'onde  os  olhos 
e  a  alma  se  lhe  foram  prender  um  dia, — «dia  fatal!» 
— no  gentil  capitão  francez,  impoz-se-nos  viva  e  ru- 
demente como  um  documento  decisivo. 

A  phrase  original  não  era  evidentemente  aquella. 

Mertola  não  se  vê  d'alli,  nem  de  nenhum  outro 
ponto  de  Beja,  não  por  causa  da  distancia, — 54  ki- 
lometros  para  o  sudoeste, — mas  pela  configuração 
do  terreno.  Quem  não  soubesse  isto,  quem  forjasse 
as  Cartas,  evitaria  uma  referencia,  além  de  tudo  des- 
necessária, que  desde  logo  poderá  prejudicar-lhe  o 
intento,  em  vez  de  o  servir. 

Mas  o  que  se  via,  e  o  que  se  vê  ainda,  o  que 
fica  aUi  em  frente,  a  dois  passos,  são  os  restos,  os 
severos  bastiões  das  antigas  portas  de  Mertola,  de 
todo  o  tempo,  como  hoje,  conhecidas  por  este  nome 
pela  simples  razão  de  ficarem  do  lado  d'aquella  villa 
e  darem  para  os  campos  e  estrada  entre  ella  e  Beja. 
É  como  a  outras  quatro  das  sete  portas  que  tinha 
Beja  se  chamava  e  chama: — portas  de  Évora,  de 
Aviz,  de  Moura,  de  Aljustrel.  Sabe-se  quanto  são 
vulgares  estas  denominações  nas  nossas  antigas  ci- 
dades muradas. 

Para  além  serpea,  atravez  dos  ferragiaes  e  dos 


207 


montes,  a  estrada  de  Mertola,  e  lá  ao  longe,  afun- 
dando-se  à  vista  e  logo  ondulando  de  novo  no  hori- 
zonte, esbate-se  o  território  da  phenicia  Myrtilis. 

A  religiosa  teria  escripto: — «á  varanda  d'onde 
se  vêem  as  portas  de  Mertola»,  ou  «ao  miradouro 
de  MertolaiD , —  e  o  traductor  tomando  naturalmente 
estas  portas  pelas  da  própria  villa,  ou  dispensan- 
do-se  de  alongar  a  referencia,  perfeitamente  indif- 
ferente  para  o  leitor  francez,  traduziria  singela- 
mente:— (de  balcon  d'ou  Von  voit  Mertolay>. 

Justa  e  intelligente  fora  a  inspiração  de  pôr  alli 
aquelle  «miradouro»,  e  o  panorama  que  devassa  não 
poderia  ser  mais  digno  de  que  n'elle  se  embebes- 
sem, sem  perigo,  em  horas  de  repouso  e  de  folga, 
€S  olhos  educados  na  contemplação  da  gloria  e  do 
poder  do  Eterno. 

A  cidade  não  se  expandira,  como  modernamente. 
ii"aquella  direcção,  a  ponto  de  ultrapassar  os  velhos 
muros  e  de  affrontar  o  devoto  recolhimento  das 
freiras. 

Adivinham-se  ainda,  lá  em  baixo,  os  campos  pla- 
nos e  assoalhados  em  que  ha  220  annos,  n'aquelle 
«dia  fatal»,  se  exercitavam  os  soldados  de  Chamilly 
ou  este  galopava,  cheio  de  mocidade  e  de  petulan-, 
cia,  á  frente  da  sua  companhia.  D'aquelle  lado  vol- 
tara elle,  talvez,  alegre  e  triumphante,  da  expedi- 
ção do  S.  Lucar.  D'ain  veriam  as  pobres  raparigas 
enclausuradas  manobrar  os  terços  com  os  seus  uni- 
formes variados  e  scintillantes ;  —  escarlates  uns, 
verdes  outros,  alguns  cobertos  de  passamanes  mui- 


208 


licores,  outros  ostentando  os  br  azoes  heralticos  dos 
generaes*, —  e  caracolando  em  volta,  e  exercitan- 
do-se  nas  cargas  impetuosas,  e  desnovelando-se 
como  longas  serpes  reluzentes,  as  companhias  de 
cavallos,  com  os  seus  bellos  oíTiciaes,  moços  quasi 
todos,  mais  ou  menos  fidalgos  todos,  cujos  olhares 
atrevidos  e  cúpidos  iriam  por  vezes  alvoroçar  extra- 
nhamente,  atravez  das  rejas  do  balcão,— se  é  que 
as  tinha  já, —  o  bando  das  pombas  do  Senhor. 

Este  turbilhão  de  força,  de  vida,  de  audácia;  esta 
onda  de  paixões  fortes,  vibrantes,  encandescentes; 
a  guerra  em  toda  a  sua  belleza  e  sem  nenhum  dos 
seus  horrores;  o  mundo,  a  sociedade,  o  homem  em 
toda  a  sua  grandeza : —  devia  ser  realmente  um  ex- 
traordinário e  allucinador  espectáculo  para  as  po- 
bres creaturas  cuja  mocidade  confrangia  e  estiolava 
monotonamente  na  fria  e  «solitária  contemplação» 
das  coisas  intangíveis  e  na  contenção  permanente, 
desnaturai,  tyrannica,  de  toda  a  sentimentalidade 
objectiva  2. 


1  O  Mercúrio  Portuguez. 

2  Por  curiosidade  daremos  os  nomes  de  algumas  compa- 
nheiras de  Marianna  n'aquella  epocha,  computando-lhes  as 
idades  pelas  indicações  dos  termos  conventuaes: — D.  Leonor 
de  Vilhena,  que  teria  20  annos,  Ignez  de  S.  José,  de  17,  en- 
trada menina  no  convento  e  que  «na  mocidade  estava  sempre 
doente», — Maria  dos  Serafins,  de  34  que  foi  muito  devota  de 
S.  Francisco  do  Carmo  e  «ficava  em  oração  mental  até  quasi 
amanhecer;» — D.  Francisca  d'Almeida  «inuy  próxima  para 
todas,» — diz  Peregrina  Alcoforado;  —  D.  Francisca  Freire. 


Si 


i). 


\  ,1. 


5  )^*4\;|i^'v|%''^>-'yí 


iítSI 


^t\^' 


209 


Marianna  Alcoforado  tinha  já  então  25  annos. 
Era  uma  mulher  moça,  provavelmente  formosa,  na 
plena  maturação  do  organismo,  do  temperamento, 
da  inteliigencia;  filha  de  uma  raça  forte  e  sadia, 
de  sentimentos  e  prosapias  fidalgas;  nascida  e  crea- 
da  no  meio  do  bulicio  da  guerra ;  respirando  desde 
o  berço  a  atmosphera  de  poderosa  actividade  e  de 
incontestável  prestigio  do  pae. 

Vô-se  bem  quanto  estamos  longe  das  recompo- 
siç(3es  litterarias  que  se  teem  tentado,  da  religiosa' 
portugueza. 

— «Imagine-se  sempre, —  diz  por  exemplo,  o  nos- 
so erudito  amigo  sr.  Theophilo  Braga, — uma  rapa- 
riga de  13  annos.» 


«tendo  o  eoraçào  de  pomba," — Luisa  Maria  de  Jesus,  de  18, 
(jue  disilludida  dizia  depois  que  «no  Coro  achava  todas  as 
suavidades  que  o  mundo  podia  dar»,  D.  Brites  Magdalena, 
de  23,  «sempre  doente  e  esmoler»,  a  rica  Seraphina  Pinheira 
de  Bulhão,  de  24,  D.  Michaella  dos  Anjos,  da  mesma  edade, 
(jue  se  arruinou  com  abstinências  e  tanto  era  uma  predesti- 
nada authentica  que  os  religiosos  .que  lhe  assistiram  á  morte 
verificaram  em  «repetidas  experiências»  que  o  corpo  lhe  fi- 
cara tlexivel  e  suava, — D.  Brites  Maria  de  Resende,  uma  vo- 
cação musical :—« desde  minina  cantou»  e  foi  grande  sabe- 
dora de  canto  ds  orgam»  perdendo  a  vista  á  força  de  estu- 
dar;— Ignez  dos  Seraphins,  que — «na  meninise  teue  algumas 
leuiandades  mas  nestas  sempre  Ds.  a  chamou,» — como  ou- 
tra, a  pequena  Constança  Evangelista  que  na  vida  espiritual 
buscou  emenda  «a  algumas  leuiandades  de  moça;» — D.  Bri- 
tes de  Brito,  que  foi  abadessa  e  teve  uma  «gloriosa  morte,'» 
— Isabel  do  Espirito  Santo  que  passou  a  vida  «a  ensinar  la- 
tim,»—  Guiomar  de  Jesus,  que  a  passou  a  «ensinar  assim  a 
F.  14 


210 


r.  Foi  exactamente  o  que  nunca  podemos  imaginar, 
lendo  as  Cartas,  e  foi  até  o  contrario  disto  que  co- 
meçámos por  estabelecer  como  assente  e  seguro 
quando  decidimos  avenlurar-nos  á  descoberta  di- 
recta, documental  da  mysteriosa  freira.  Por  uma 
inducção  physiologica  longamente  meditada  e  dis- 
cutida, que  nos  parece  irrecusável,  e  que,  pelo  me- 
nos o  êxito  confirmou,  estabelecemos  que  as  Cartas 
não  podiam  ter  sido  escriptas  e  sentidas,  ou  não 
poderiam  ter  sido  sentidas  como  foram  escriptas, 
por  uma  mulher  de  menos  de  vinte  ou  de  mais  de 
trinta  annos,  approximadamente. 

E  d'isto  mesmo  teve  o  instincto  o  illustre  escri- 
ptor  observando  que  as  Cartas,  «ditadas  por  um 


ler  como  de  tudo  o  mais,  e  foi  igrande  sabedora  de  canto- 
cham  6  de  órgão,» — a  ríspida  Brites  dos  Serafins,  que  gas- 
tava no  culto  a  sua  bella  tensa  de  30|í000  réis, —  Maria  de 
Santiago  que  «deo  de  si  grande  exemplo  livrando-se  de  toda 
a  correspondência  prejudicial,» — outra  Brites,  que  devemos 
notar  por  ter  a  idade  de  Marianna, —  D.  Brites  Francisca  de 
Noronha,  que  «viveo  sempre  com  grandissimo  temor  de  Deus,» 
foi  abbadessa  e  fez  a  tribuna  do  Santissimo  Sacramento,  na 
egreja, — Arehangella  Baptista,  grande  musica  e  cantora, — D. 
Marianna  da  Cunha,  que  fez  grandes  penitencias, — D.  Luiza 
Freire,  que  «sendo  pelo  seu  nascimento  illustre  nunca  nella 
se  experimentou  o  menor  indicio  de  soberba,» — Maria  da  As- 
sumpção, já  então,  como  a  anterior,  entrada  nos  40,  bastante 
rica,  «religiosa  de  muita  austeridade»  e  que  conservou  até  aos 
92  annos,  uma  «singular  memoria  das  cousas  antigas  do  con- 
vento», não  nos  contando  nenhumas, — Josepha  d'01iveira,  que 
morreu  com  100  annos,  em  1720,  tendo  «a  imagem  de  N.  S.  da 
Ous  cãs  Costas  q.  vae  na  procissão  por  sua  conta,»  etc. 


211 

temperamento  peninsular,  tem  a  paixão  dos  30  ân- 
uos.» 

É  geralmeote  n'aquelle  período,  feito  o  devido 
desconto  a  certas  variantes  conhecidas,  que  se  rea- 
lisa  o  que  poderemos  chamar  a  crise  da  maturação 
physlologica;  é  n'elle  que  se  expande,  completa  e 
vigorosa,  esta  evolução  simultânea  e  harmónica  das 
forças  moraes,  do  corpo  e  do  espirito,  chamada  a 
adolescência,  que  é,  como  observa  Miiller,  «a  edade 
das  dedicações  affeclivas.» 

— «Abre-se-nos  em  face  um  horizonte  immenso, 
—  accrescenta  o  grande  physiologista, — não  se  co- 
nhecem limites  ás  próprias  capacidades,  o  amor  é 
o  centro  dos  mais  nobres  sentimentos,  porque  es- 
tando terminado  o  desenvolvimento  intellectual,  o 
excesso  de  vida  orgânica  precipita-se  sobre  os  no- 
vos productos  da  geração. » * 

Faltava-nos,  porém,  fixar  uma  data,  surprehen- 
der  a  do  episodio  das  Cartas.  As  indicações  chro- 
nologicas  que  nos  offereciam  os  comraentadores  não 
eram  conformes  e  firmes,  algumas  eram  perfeita- 
mente phantasticas. 

Foi  nas  próprias  Cartas  que  procurámos  e  achá- 
mos essa  data,  indicada  com  uma  certa  precisão 
que  parece  impossível  ter  passado  desapercebida. 

Na  que  se  considera  a  segunda,  regista- se  a  no- 
ticia de  que  «a  paz  de  França  estava  feita».  Não  é 
necessário  uma  grande  investigação  histórica  para 


1  Man.  de  Phys.,  par  J.  Miiller,  etc.  2.*  ed.  r.  par  Littré. 

14* 


2i2 


v«r  que  essa  paz  era  a  que  terminou  rapidamente  a 
guerra  da  devolução,  pelo  tratado  de  Aix-le-Chapelle, 
em  2  de  maio  de  1668. 

É  sabido  que  o  episodio  decisivo  d'essa  guerra 
fora  a  busca  e  rápida  invasão,  em  pleno  inverno 
(fevereiro  1668),  de  Luiz  xiv  no  Franche  Comté,  em 
que  já  tomou  parte  Ghamilly,  que  pouco  antes  che- 
gara a  Portugal. 

Quando  o  nosso  enviado  Duarte  Ribeiro  de  Ma- 
cedo, que  partira  de  Lisboa  em  13  de  fevereiro  com 
a  noticia  de  termos  assignado  n'esse  dia  o  tratado 
com  a  Hespanha,  chegou  a  Paris  em  1  de  março, 
Luiz  XIV  estava  já  de  volta  em  St.  Germain,  e  a 
paz  podia  considerar-se  assegurada  *. 

A  noticia  devia  ter  chegado  aos  francezes  do 
exercito  do  Alemtejo  em  abril  ou  maio.  Havia  seis 
mezes  segundo  a  Carta  da  religiosa  que  esta  ne- 
nhuma recebera  do  seu  amado  capitão.  Este  teria 
partido,  pois,  nos  fins  de  1667.  Nem  poderia  ter 
partido  muito  antes  pois  que  outra  carta,  que  nas 
coUecções  impressas  vem  depois  d'aquella,  mas  que 
nos  parece  ser  evidentemente  um  pouco  anterior, 
— o  que  não  importa  por  agora, —  allude  a  «uma 
confidencia  molesta»  que  elle  fizera  á  rehgiosa. 
«cinco  ou  seis  meses  antes»,  estando  ainda  em  Por- 
tugal. 

N'esta  ultima  carta  ha  ainda  outra  indicação  pre- 


*  Obras  do  dr.  D.  R.  de  Macedo,  etc.  Lisboa,  1743. 


213 


ciosa: — a  de  que  «vae  por  estes  dias  fazer  um  an- 
uo» que  Marianna  se  entregara  ao  amante.  Deve 
ter  sido  no  começo  de  1667,  e  este  anno  e  o  de 
1666  constituem,  pois,  o  perido  de  desenvolvimento 
d'aquella  funesta  paixão. 

Convém  recordar  que  é  exactamente  n'este  pe- 
ríodo que  Chamilly  nos  apparece  no  Baixo-Alemtejo 
fazendo  as  campanhas  de  que  Beja  é  o  ponto  de 
partida  e.de  organisação  central.  Nomeado  capitão 
da  primeira  companhia  de  um  regimento  a  orga- 
nisar,  em  dezembro  de  1665,  no  anno  seguinte  faz 
parte  das  expedições  da  Andaluzia,  com  Balthazar 
Vaz  Alcoforado:  da  de  Paymogo,  em  junho,  e  da 
de  S.  Lucar,  em  agosto,  preparada  e  constituída 
em  Beja,  como  notámos  já.  Das  próprias  Cartas  vê- 
se  que  o  capitão  francez  sahira  d'alli  para  varias 
expedições. 

Nada  tem  pois  de  aventuroso,  antes  pode  com 
regular  segurança  fixar-se  o  começo  d'esses  amo- 
res em  1666,  e  em  abril  d'esse  anno  Marianna  de- 
via completar  26  annos. 

Fora  entregue  em  creança  á  clausura, — dizem-n'o 
as  Cartas  e  provam-n'o  os  nossos  documentos.  Pro- 
fessara provavelmente  aos  16  annos,  se  é  que  não 
antecipara  a  edade  canónica,  viciando  a  verdadeira, 
como  a  que  lhe  é  computada  no  termo  de  óbito  pode 
fazer  suspeitar. 

Fizera-se  mulher  alli,  abandonada  n'aquelle  mun- 
do extranho,  frio,  hostil  á  expansibilidade  e  á  com- 
municação  affectiva  da  adolescência.  • 


214 


Haviam-lhe  dado  a  companhia  de  uma  irmã, — 
creança  também, —  que  lhe  seria  pungente  recor- 
dação da  família  e  da  infância.  Outra,  a  companheira 
dos  seus  brinquedos  e  das  suas  aspirações  infantis, 
casara.  Marianna  fora  provavelmente  a  confidente 
dos  seus  amores. 

Os  irmãos  andavam  no  campo  ou  nos  estudos: 
—só  lhe  trariam  ás  grades  os  deslumbramentos  de 
uma  juventude  florente,  aventurosa. 

A  mocidade  delia,  recalcada  e  entorpecida,  dia 
em  dia,  na  perpetua  monotonia  d'aquella  morte  an- 
tecipada, chegava  tristemente  ao  seu  termo.  Quan- 
do a  malaventurada  ia  talvez  afundar- se,  como  tan- 
tas outras,  na  hysteria  beata,  e  apagar  «os  incên- 
dios» de  que  falam  os  doutores  mysticos,  no  sen- 
sualismo  solitário  da  visão,  appareceu-lhe  a  rece- 
ber-lhe  e  a  fixar-lhe  os  vagos  e  tumultuosos  impul- 
sos da  sua  exuberância  aífectiva,  a  figura  forte, 
moça,  petulante  de  um  homem  extranho,  aureolado 
pelo  prestigio  da  guerra  e  do  nome,  que  a  distin- 
guia entre  todas  as  companheiras,  que  lhe  segre- 
dava que  era  formosa  e  que  a  amava,  que  lhe  lan- 
çava aos  pés,  cortezão  e  apaixonado,  toda  a  sua 
grandeza,  a  sua  vida,  o  seu  futuro. 

— «Eu  era  moça,  era  crédula,  tinham-me  encer- 
rado desde  creança  n'este  convento,  não  vira  senão 
gente  desagradável,  nunca  ouvira  as  lisonjas  que  o 
Sr.  constantemente  me  disia;  parecia-me  dever-lhe 
os  attractivos  e  a  bellesa  que  me  achava  e  em  que 
me  fazia  reparar;  ouvira  diser  bem  de  si,  toda  a 


215 


gente  me  fallava  em  seu  abono. . .  e  o  senhor  tudo 
fasia  para  me  despertar  amor.» 
Nada  mais  natural  e  simples. 


IV 


É  claro  que  não  podemos  nem  queremos  recon- 
struir a  historia  intima  d'estes  amores.  Além  de 
que  fora  uma  triste  pretençlío  a  de  tentar  recom- 
por litterariamente  o  breve  idylio  que  redivive  nas 
Cartas  com  toda  a  vibrante  e  encantadora  natura- 
lidade da  sua  singeleza, — independente  d'ellas,  esse 
episodio  que  nada  tem  realmente  de  extraordiná- 
rio, sumiu-se  e  desappareceu  como  muitos  outros, 
certamente,  no  pequeno  meio,  além  de  tudo  agitado 
por  tantos  successos  e  preoccupações  absorventes, 
em  que  succedeu.  Se  não  deixou  de  dar  pasto  e 
escândalo  ás  palestras  e  á  maledicência  d'esse  meio, 
nem  pela  sua  natureza,  nem  pelas  circumstancias 
do  tempo,  fora  natural  e  fácil  que  deixasse  de  si 
circumstanciado  registo. 

Os  chronistas  conventuaes  isolando-se  nos  lou- 
vores e  no  piedoso  archivo  dos  casos  e  devoções 
beatas,  parecem  segregar  inteiramente  as  institui- 
ções de  que  falam  a  todo  o  movimento  exterior. 
Raramente,  e  apenas  em  rápidas  referencias,  allu- 


216 


dem  aos  successos  do  mundo  e  do  século,  como 
que  procurando  sistematicamente  esconder  e  cor- 
tar todas  as  relações,  as  mais  naturaes  e  necessá- 
rias até,  entre  a  sociedade  claustral  e  a  historia 
profana. 

Facilmente  se  comprehende,  porém,  que  a  situa- 
ção de  uma  cidade  fronteiriça,  constituída  em  grande 
centro  de  uma  renhida  e  aventurosa  campanha,  cheia 
de  movimento  bellico,  e  partilhando,  em  summa,  da 
profunda  agitação  social  e  politica  que  assoberbava 
todo  o  paiz,  não  poderia  deixar  de  fazer-se  sentir, 
forte  e  continuamente,  por  todos  os  modos,  n'essas 
sociedades  claustraes. 

Todo  aquelle  buUcio;  a  novidade  dos  sucessos, 
das  gentes,  e  dos  costumes;  as  preoccupações  e  al- 
voroços da  guerra  em  que  andavam  os  parentes  e 
conhecidos;  o  espirito  desabusado  da  multidão  ad- 
ventícia; as  novas  relações  das  famihas:  tudo  isso 
havia  de  desordenar  um  pouco,  de  encrespar,  mais 
ou  menos  intensamente,  a  severa  disciplina  da  vida 
conventual, — suppondo  que  ella  fosse  já  muito  se- 
vera,— fazendo  vibrar  os  sentimentos  e  alargar  as 
communicações  mundanas  que  a  ascese  devota  mal 
enfreava  e  continha. 

Aquella  «liberdade  das  grades»,  de  que  fala  de- 
soladamente  um  prelado,  não  seria  então  que  mais 
se  apertaria^  nem  «as  conversações  e  visitas,  os  tra- 
tos e  correspondências  continuadas»  tão  prudente 
quanto  inutilmente  prohibidas  pelas  Constituições, 
haviam  de  afrouxar  e  cobrir-se  com  maior  rigor 


217 


quando  uma  situação  extraordinária  mais  as  esti- 
mulava e  permittia.  E  que  não  era,  prova-o  o  pró- 
prio movimento  de  reacção  moralisadora  ou  beata, 
que  se  seguiu,  sob  o  nome  de  reforma. 

Chamilly  desempenhando  uma  comraissão  e  um 
posto  importante,  ostentando  um  nome  fidalgo,  pro- 
tegido pelo  general  governador  da  provinda,  natu- 
ralmente se  relacionou  com  as  principaes  famílias 
de  Beja,  e  uma  d'ellas  e  das  mais  estreitamente  li- 
gadas ás  coisas  e  aos  personagens  militares,  era, 
certo,  a  dos  Alcoforados.  Um  d"estes,  irmão  de 
Marianna,  vimol-o  já  occupar  uma  commissão  im- 
portante, a  de  capitão  de  cavallos,  como  Chamil- 
ly, nas  forças  do  Baixo  Alemtejo,  e  tomar  parte 
nas  operações  realisadas  d'aquelle  lado.  Uma  allu- 
são  das  Cartas  parece  denunciar  quaesquer  rela- 
ções entre  o  capitão  francez  e  um  irmão  de  Ma- 
rianna. 

Outras  referencias  indicam  que  os  amores  d'esta 
foram  percebidos  e  vivamente  contrariados,  como 
era  natural,  pela  familia  da  religiosa,  que  comtudo 
só  muito  tarde  saberia,— se  é  que  chegou  a  saber, 
—  toda  a  verdade  d'esses  amores. 

Está-nos  revelando  o  desgosto  e  o  escândalo  do- 
mestico o  silencio  que  se  faz  nos  papeis  e  relações 
da  familia,  acerca  de  Marianna, — silencio  apenas  in- 
terrompido pela  grata  e  carinhosa  lembrança  do 
testamento  da  irmã; — a  circumstancia  do  segundo 
irmão  lhe  não  confiar  as  filhas,  preferindo  para  ellas 
outro  convento; — a  súbita  resolução  do  irmão  mais 


218 


velho,  do  que  fora  camarada  de  Chamilly,  em  aban- 
donar fortuna  e  honras  para  se  afundar  na  obscu- 
ridade da  cleresia  sertaneja,  no  próprio  anno  da 
apparição  ruidosa  das  Cartas,  quando  as  primeiras 
edições  d'ellas  poderiam  chegar  ao  Alemtejo. 

No  próprio  convento  é  natural  que  embora  co- 
nhecida a  paixão  da  religiosa,  se  conservasse  por 
algum  tempo  ignorada  toda  a  crua  verdade  d'esses 
amores. 

Um  dia,  no  auge  do  desespero,  reprehendida  na 
sua  mundana  desolação  pela  «Mae», — diz  ella, — 
«a  principio  com  severidade,  depois  com  meigui- 
ce»,— Marianna  revela-lhe  talvez  essa  terrível  ver- 
dade. 

— «Parece-me  que  tudo  lhe  confessei  í . . . » 

Essa  «Mãe»  sabemos  já  agora  que  não  era  Leo- 
nor Mendes  que  tivera  a  fortuna  de  morrer  muito 
antes,  e  que  na  nossa  primeira  edição  nos  esqueceu 
que  morrera  para  Marianna, — era  n'isto  justo,  ao 
menos,  o  espirito  e  a  lettra  da  instituição, — desde 
o  dia  em  que  entregara  a  íilha  á  perpetua  clau- 
sura. 

A  «Mãe»  era  a  Madre,  a  Abbadeça,  a  velha  e 
severa  Prelada  da  Ordem,  a  que  as  rehgiosas  ti- 
nham de  reconhecer  e  chamavam  Mãe,  a  única  que 
muitas  d'ellas,  entrando  creanças  na  clausura,  como 
as  Alcoforados,  conheceriam  por  tal,  a  que  tinha 
o  direito  de  as  punir,  de  as  aconselhar  nos  mais 
Íntimos  movimentos  dos  seus  corações  e  das  suas 
vidas;  aquella  com  quem  na  hora  da  morte  haviam 


219 


de  «desapropriar-se», —  segundo  a  linguagem  con- 
ventual *. 

A  ella  confessaria  a  desolada  freira,  que  o  capitão 
francez  se  introduzia  no  convento,  que  a  elle  «toda 
se  entregara  sem  escrúpulo»,  sacrilegamente... 
— «Parece-me  que  tudo  lhe  confessei!. . .» 
Estava  já  bem  longe  o  desalmado  amante  1 
Para  este,  soldado  aventureiro,  em  terra  extra- 
nha,  de  rapaz  educado  na  vida  desabusada  da  cam- 
panha, aquelles  amores  deviam  ser  pouco  menos 
do  que  uma  aventura  nova,  uma  empreza  galante, 
em  que  os  impulsos  sensuaes  e  os  ócios  aborreci- 
dos dos  longos  aquartellamentos  em  pequena  terra 
provinciana,  desempenhariam  naturalmente  o  prin- 
cipal papel. 

Tinha  30  annos,  apenas,  mais  quatro  do  que  Ma- 
rianna,  era  um  rapaz  robusto  e  intrépido,  intelli- 
gencia  pouco  culta  e  coração  pouco  affeito  a  com- 
phcadas  paixões;  fizera-se  homem  na  guerra  como 


1  Ja  nos  causara  estranheza  a  singularidade  da  maiúscula 
com  que  logo  as  primeiras  edições  accentuavam  a  palavra; 
— «ma  Mère» — ,  escrevem  invariavelmente.  Mas  de  um  mais 
reflectido  exame  do  texto  e  do  movimento  psychieo  que  elle 
espelha,  salta  o  sentido  lógico  e  natural  d'elle.  A  referencia 
ao  incidente  da  confissão  de  Marianna  á  «Mãe»,  inclue-se  na 
allusão  aos  juizos  e  carinhosas  impertinências  do  meio  em  que 
ella  se  acha,  da  familia  claustral.  Da  outra,  da  do  século,  fa- 
lou antes,  e  então  falou  apenas  «dos  parentes  e  conhecidos>'. 
A  mãe  natural  morrera,  e  o  velho  pae  nada  saberia.  Pouco 
mais  tempo  viveu. 


220 


a  freira  que  um  dia  lhe  despertou  o  apetite,  se  fi- 
zera muliíer  na  clausura. 

Aos  22  annos  era  já  capitão  de  um  regimento  de 
cavallaria,  e  interrompida  a  sua  carreira  militar  pela 
paz  dos  Pyreneus  e  pelo  licenceamento  da  compa- 
nhia que  commandava,  a  campanha  de  Portugal  fôra 
para  elie  um  incidente,  uma  espécie  de  destaca- 
mento de  serviço  que  lhe  podia  assegurar  uma  pro- 
moção mais  rápida,  que  lhe  offerecia,  pelo  menos, 
uma  occupação  mais  activa  e  consoante  com  os  seus 
hábitos  e  com  o  seu  destino. 

A  simples  correspondência  apaixonada,  as  doces 
palestras  do  locutório,  os  requebros  e  delicadezas 
de  um  galanteio  innocente,  deviam  satisfazel-o  me- 
diocramente,  como  observa  Saint-Simon,  no  caso 
de  outro  oííicial  francez  que  se  desenfadava  do  ser 
viço  de  guarnição  ensinando  musica  a  uma  fidalga 
abbadeça  de  convento  provinciano. 

O  que  elle  queria,  o  que  elle  incutia  no  espirito 
alvoroçado  da  pobre  enclausurada,  como  o  supremo 
enlevo  de  dois  corações  amantes, — conta-o  ella  pró- 
pria,— era  «achar-se  a  sós  com  ella.y> 

Absorta,  deslumbrada,  subjugada  por  aquella  ex- 
traordinária aurora  que  se  abrira  subitamente  na 
humildade  e  na  tristeza  do  seu  destino,  a  desgra- 
çada cedeu. 

Foi  talvez  n'algum  d'aquelles  grandes  «Ímpetos 
de  amor»  que  abrazavam  irresistivelmente  as  suas 
homonymas  da  Esperança  e  do  Salvador, — narra-os 
quasi  pelas  mesmas  palavras; — foi  talvez  n'algum 


221 


d'aquelles  «incêndios»  extraordinários  em  ique,  no 
dizer  encantador  do  padre  Manuel  Bernardes,  a  glo- 
riosa Virgem  Santa  Gertrudes  querendo  unir-se  com 
o  Senhor  que  lhe  apparecia  em  figura  de  menino 
achava  que  o  espirito  se  lhe  embaraçava  na  cami- 
zinha  d'elle,  «porque  anceava  a  união  mais  imme- 
diata». 

Seria  de  mau  gosto  a  impiedosa  referencia  se  a 
intenção  não  fosse  simplesmente  procurar  reerguer 
o  facto  á  altura  d'aquella  sentimentalidade  ardente, 
mas  ingénua;  impetuosa  e  doida,  mas  profunda- 
mente idealista,  delicada,  honesta,  que  chora  c  vi- 
bra extranhamente  nas  Cartas. 

Ah,  aquelles  Ímpetos  irresistíveis  da  pobre  vir- 
gem enclausurada,  aquella  vontade  violenta,  fatal, 
que  toda  a  abrazava  ás  vezes  no  desejo  insano  de 
recolher-se  «ao  coração  do  Divino  Esposo»*, — 
aquella  necessidade  de  amar  e  de  ser  amada,  mas 
sobretudo  de  amar,  que  forma  o  fundo  da  lenda 
áurea  das  Predestinadas  e  das  Santas  da  Clausura, 
é  alguma  coisa  bem  mais  simples  e  bem  mais  sé- 
ria do  que  os  requintes  e  subtilezas  da  mystica  e 
da  rhetorica  dos  doutores  beatos  que  se  contorcem 
e  dementam  por  fugir  á  implacável  verdade  da  na- 
tureza e  da  vida ! . . . 

Não;  se  quizeramos  apenas  offerecer  estimulo  e 
pasto  ao  espirito  de  maledicência  superficial  e  bruta 


^  Frag.  da  vida  da  M.  R.  M.  Marianna  da  Purificação^  etc. 
Despos.  do  Espirito^  de  Soror  Marianna  do  Rosário,  etc. 


222 


que  pretende  fazer  da  historia  dos  conventos  sim- 
plesmente uma  historia  de  torpezas  e  de  artifícios 
hypocritas,  nâo  precisaríamos  ir  profanar  as  hyste- 
ricas  beatitudes  que  ficaram  registadas  nas  chroni- 
cas  da  devoção;  —  que  n'estas,  mesmo,  na  tradição 
e  na  historia,  nas  próprias  Constituições  conven- 
tuaes,  teriamos  revelações  de  sobejo  de  como  a  clau- 
sura fácil  e  frequentemente  se  abria  a  irrupções  e 
desordens  bem  menos  explicáveis  ou  bem  mais  es- 
candalosas do  que  a  denunciada  nas  Cartas! 

Marianna  teve  uma  confidente  d'estes  amores,  e 
é  claro  que  nos  não  esquecemos  de  procural-a.  Ci- 
tam-n'a  as  Cartas  com  o  nome  de  Dona  Brites,  desde 
a  primeira  edição,  assim  escripto  muito  correcta  e 
portuguezmente. 

Teve  realmente  Marianna  Alcoforado  umas  pou- 
cas de  companheiras  d'aquelle  nome,  e  uma  d'ellas, 
até,  que  positivamente  se  nos  revela  da  mesma  edade 
quasi.  É,  não  a  que  indigitámos  na  nossa  primeira 
investigação,  cuja  edade  não  podemos  descobrir, 
mas  Dona  Brites  Francisca  de  Noronha,  que  mor- 
reu em  8  de  março  de  1712  com  «70  e  tantos  an- 
nos»,  quando  Marianna  devia  ter  72.  Segundo  o 
respectivo  termo  obituário  «viveo  sempre  com  gran- 
díssimo temor  de  D.%  foi  abbadeça,  e  com  a  maior 
disposição  governou,  tanto  no  temporal  como  no 
espiritual.»  Além  de  intelligente,  rica,  foi  ella  que 
fez  a  tribuna  do  Santíssimo,  na  egreja,  conservando 
a  administração  da  obra,  além  do  seu  abbadessado. 
Sendo  fortemente  atacada  de  «dores  geraes», — diz 


223 


0  termo, — «foi  ás  Caldas  e  veio  sem  melhoria», 
poucos  annos  antes  de  morrer. 

Mas  houve  mais: 

D.  Brites  de  Brito,  que  morreu  em  27  de  de- 
zembro de  1693,  e  de  quem  D.  Peregrina  Alcofo- 
rado escreve  que  foi  também  abbadessa,  e  «sem- 
pre m.°  denota  do  SS.™"  Sacram.'°  a  q  se  atrebue 
a  glorioza  morte  q  teue  por  q  dia  do  Snr.  São  ioão 
evang.'^  logo  de  manhã  se  aparelhou  p.^  morrer 
com  tal  dispocição  q  a  todos  admirou.» 

D.  Brites  da  Magdalena,  que  morreu  em  1  de  se- 
tembro de  1714,  com  60  annos,  e  D.  Brites  Maria 
de  Rezende,  «muito  sabedora  de  canto  de  orgam», 
morta  em  18  de  julho  de  1700,  com  50  e  tantos: 
— ambas,  pois,  bastante  mais  novas  que  Marianna. 

E  ainda  outras  duas,  sem  dom, — Brites  dos  Se- 
rafins, que  morreu  em  23  de  janeiro  de  1700, — «já 
de  m.^^  jdade»,  e  que  «sendo  de  condiçam  rispida 
e  q  paresia  soberba  nosa  Snrã  lha  mudou  q  se  foy 
emmendando»; — e  Brites  da  Encarnação  morta  em 

1  de  março  de  1696, — «que  sendo  velhíssima*, — 
conta  ainda  D.  Peregrina  Alcoforado, — «esteue  the 
a  ultima  ora  com  o  seu  iuizo  e  sentidos  perfeitos 
aiudando  a  cantar  o  tantum  ergo  q.*^"  comungou  e' 
os  salmos  peneteciaes  q.^"  lhe  derão  a  S/^  un- 
ção.» 

Outra  citámos  já, — Brites  Angélica, —  mas  d'essa 
só  encontrámos  o  nome  sobre  a  porta, — curiosa 
coincidencial — da  que  devera  ser  o  miradouro,  a 
varanda,  «o  balcão  das  portas  de  Mertola»,  conver- 


224 


tido  por  ella  em  dormitório  novo.  Companheira  das 
Alcoforados  foi,  de  certo,  também,  pois  que  profes- 
sara antes  de  1732. 


Em  1667  a  guerra  com  a  Hespanha  começara  a 
afrouxar,  e  desde  1665  o  governo  de  Madrid  en- 
saiava, por  intermediação  da  Inglaterra,  negocia- 
ções de  paz,  reconhecendo  que  não  lograria  ven- 
cer a  independência  portugueza,  e  crescentemente 
embaraçado  por  novas  diíTiculdades  internas. 

Os  amores  da  religiosa,  chegados  ao  período  cri- 
tico do  seu  fatal  desenvolvimento,  teriam  assumido 
uma  certa  notoriedade  escandalosa,  e  o  capitão  fran- 
cez,  passados  os  primeiros  encantos  da  aventura, 
deveria  realmente  ter  começado  a  sentir  os  perigos 
de  a  protrahir,  tanto  mais  vivamente  quanto  a  cega 
e  ardente  paixão  da  pobre  Marianna  lhe  não  per- 
mittia  contar  com  um  desenlace  fácil,  tranquillo, 
banal. 

Esses  perigos  não  eram  apenas  da  natureza 
d'aquelles  que  o  capitão  podesse  aíírontar  com  a 
sua  reconhecida  intrepidez  e  com  a  destreza  da  sua 
espada.  Se  fosse  surprehendido  na  clausura,  se 
fosse  denunciado  como  violador  d'ella  e  seductor 


22o 


de  uma  religiosa,  além  de  tudo  filha  de  uma  famí- 
lia considerada,  influente,  em  excellentes  relações 
com  o  novo  soberano  portuguez,  não  lhe  valeria  de 
muito,  provavelmente,  a  sua  condição  de  ofíicial  fran- 
cez  nem  o  patrocínio  de  Schomberg,  quando  exa- 
ctamente uma  e  outro  iam  perder  bastante  da  sua 
importância  com  a  approximação  da  paz. 

No  começo  da  segunda  metade  de  1667  vimos  já 
que  se  pedia  com  singular  insistência  o  afastamento 
de  Beja,  da  cavallaria  franceza,  e  ao  terminar  esse 
anno,  segundo  as  indicações  das  Cartas,  o  amante 
da  freira  sahia  bruscamente  de  Portugal,  pretex- 
tando ir  servir  o  seu  rei  n'uma  nova  campanha  e 
ter  recebido  uma  carta  da  família. 

— «Um  navio  partia  . .  escrevera-te  a  família. . . 
a  honra  obrigava-te  a  abandonar-me . . .  Devias  ir 
servir  o  teu  rei. . . » — conta  a  religiosa. 

Esta  família,  segundo  outra  referencia,  era  um 
irmão  e  uma  cunhada. 

Realmente  a  família  de  Chamilly  podia  então  con- 
siderar-se  reduzida  ao  irmão  mais  velho,  Hérard 
Bouton,  governador  do  castello  de  Dijon,  onde  Cha- 
milly nos  apparece  em  seguida,  e  á  cunhada,  mu- 
lher doeste  Bouton,  Carlota  Le  Conte. 

A  nova  campanha  vimos  já  qual  era.  A  morte  de 
Fllippe  IV,  a  situação  em  que  elle  deixara  a  velha 
monarchia  hespanhola,  o  pretexto  da  devolução  do 
domínio  dos  Paizes  Baixos  aos  filhos  do  primeiro 
leito,  por  consequência  á  mulher  de  Luiz  xiv,  in- 
terrompiam e  trancavam  definitivamente  aquella 

F.  13 


226- 

paz,  nunca  perfeitamente  consolidada,  que  a  poli- 
tica vangloriosa  e  demasiado  italiana  de  Mazarin 
suppunha  ter  perpetuado.  Em  1667  Luiz  xiv  e  Tu- 
renne  invadiam  triumphantemente  o  Flandres. 

A  occasião  era  excellente  para  fazer  reentrar  o 
nosso  capitão  nos  quadros  do  exercito  francez,  li- 
vrando-o  do  escândalo  e  dos  perigos  da  aventura 
amorosa  em  que  se  embarcara.  Comtudo  elle  não 
parte  logo.  Manifestamente  a  urgência  que  depois 
allegava  não  se  impozera  tão  fortemente  ainda. 

Em  setembro,  e  muito  provavelmente  em  outu- 
bro, Chamilly  conserva-se  em  Portugal,  posto  «o  seu 
rei»  se  batesse  já  em  Flandres. 

Feita,  porém,  a  primeira  incursão;  quando  o  in- 
verno interrompera  a  campanha,  e  o  governador 
hespanhol  confiado  n'elle  recusara  arrogantemente 
o  armistício  "proposto;  quando,  como  conta  Voltaire, 
a  corte  se  divertia  em  Saint-Germain  e  as  tropas 
tinham  recolhido  aos  seus  aquartelamentos, — Luiz 
xív  preparava  no  maior  segredo  a  surpreza  d'aquella 
espécie  de  passeio  militar  que  lhe  entregou  Besan- 
çon^  Salins,  Dole,  todo  o  Franche-Gomté.  Um  dos 
homens  que  indubitavelmente  entraram  no  segredo 
d'essa  investida  foi  o  irmão  de  Chamilly,  governa- 
dor de  Dijon,  ponto  escolhido  para  a  reunião  e  par- 
tida da  nova  expedição. 

É  só  então  que  Chamilly  deixa  o  nosso  paiz,  e  é 
permittido  suppor  que  o  deixa  um  pouco  clandes- 
tinamente, pois  não  se  encontra  noticia  ou  registo, 
como  de  outros  officiaes  francezes,  antes  e  depois, 


227. 

apparece,  de. que  solicitasse  e  obtivesse  auctoriza-; 
çâo  ou  vénia  do  governo  portuguez. 

Deixa  a  sua  companhia,  e  parte,  muito  provavel- 
mente, nos  fins  de  1667.  É  duvidoso  até  que  viesse 
embarcar  em  Lisboa. 

Recordemos  ainda  esta  circumstancia  curiosa: — 
um  diploma  firmado  por  Luiz  xiv  em  Saint-Germain- 
en-Laye,  n'este  mesmo  anno  de  1067,  inas  em  que 
o  logar  do  mez  se  conserva  em  branco,  nomeia  Noel 
Bouton,  designando-o  pela  primeira  vez  por  «mar- 
quez  de  Chamilly,  mestre  de  campo  de  um  regi- 
mento de  cavallaria  a  organisar  e  capitão  da  pri- 
meira companhia  constituída  por  80  maitres  non 
compris  les  officiers.y) 

No  começo  de  fevereiro  de  1668,  quando  Luiz 
xiv  partindo  subitamente  de  Saint  Germain  acom- 
panhado do  duque  de  Enghien,  o  filho  de  Conde, 
se  coUoca  á  frente  da  expedição  secretamente  reu- 
nida em  DijoU;,  Chamilly  está  já  alli,  com  o  irmão 
e  toma  parte  na  rápida  campanha  que  determina 
inesperadamente  «a  paz  da  França»  a  que  se  re- 
fere a  reUgiosa. 

É  forçoso  confessar  que  se  o  capitão  das  Cartas , 
não  fosse  realmente  Noel  Bouton,  teria  sido ...  a 
sua  sombra. 

Como  é  sabido,. as  Cartas  são  todas  escriptas  de- 
pois que  o  capitão  francez  sahiu  de  Portugal. 

Exprimem  os  pesares  da  ausência,  as  afflicções 
do  abandono  da  pobre  freira,  os  desesperos  e  os 
terrores,  as  lancinantes  saudades  e  angustiosas  quei- 

io  * 


228 


xas  de  Marianna  em  lucta  com  a  terrivel  verdade 
da  sua  situação.  Lucta  extraordinária  em  que  se 
sente  o  espirito  e  o  coração  da  desgraçada  apegan- 
do-se  desesperadamente  ás  esperanças  que  se  des* 
fazem,  ás  recordações  que  os  ferem,  á  própria  ob- 
sessão apaixonada  que  se  dissolve  e  esvae,  afun- 
dando-os  rapidamente  na  consciência  do  trope  ma- 
logro que  os  surprehendeu  e  trahiu. 

Pouco  depois  da  partida  do  capitão,  a  guerra  de- 
clina, annuncia-se  a  paz  com  a  Hespanha,  os  auxi- 
liares estrangeiros  dispõem-se  a  deixar  o  paiz. 

Em  13  de  fevereiro  de  1668  a  paz  estava  feita,, 
a  8  de  maio  os  quatro  regimentos  de  cavallaria 
franceza  tinham  entregado  os  seus  cavallos,  e  pouco 
depois  toda  a  tropa  estrangeira  sob  o  commando 
de  Schomberg  partia  de  Portugal  chegando  á  Ro- 
chella  a  13  de  junho. 

Estava  perdida  para  a  pobre  religiosa  toda  a  es- 
perança no  regresso  do  amante.  Elle  próprio  se  en- 
carregara de  desilludil-a  completamente.  Depois  de 
quaesquer  pequenas  missivas, —  frias  e  rápidas,  se- 
gundo ella  conta, — escriptas  muito  provavelmente 
antes  de  deixar  para  sempre  Portugal,  não  voltara 
a  escrever-lhe.  Terminada  a  expedição  do  Franche- 
Comté,  longe  de  pensar  em  volver  aos  braços  da 
desolada  religiosa,  resolveu  talvez  pôr  termo  áquella 
importuna  correspondência  d' ella,  áquella  obsessão 
para  elle  certamente  incomprehensivel  e  incommo- 
da,  fazendo  perceber  á  apaixonada  freira,  cortez 
mas  claramente,  a  situação. 


229 


Foi  isto  naturalmente  que  o  moveu  a  escrever- 
Ihe  as  cartas  a  que  responde  a  ultima  de  Marian- 
na,  esta  enviada  provavelmente  por  mão  de  algum 
d'aquelles  ofSciaes  francezes  confidentes  dos  amo- 
res do  capitão  e  da  religiosa,  a  que  ella  allude. 

Cremos  pois  que  podemos  fixar  entre  dezembro 
de  1667  e  princípios  de  junho  de  1668  o  periodo 
d'esta  correspondência. 

A  vida  de  Chamilly,  depois  da  sua  estada  em 
Portugal,  é  conhecida.  Terminada  a  guerra  da  de- 
volução, ficara  n'uma  situação  análoga  á  que  de- 
pois da  paz  dos  Pyrenéos  o  movera  a  vir  tomar 
parte  na  campanha  de  Portugal.  A  guerra  tinha  de 
ser  o  seu  officio  e  o  seu  futuro. 

Em  20  de  setembro  de  1668  partia  com  a  ex- 
pedição de  Cândia,  segundo  documento  indicado  por 
Asse,  sob  o  titulo  de  «marquez  de  Saint-Léger»,  e 
como  ((marechal  des  logís»  da  companhia  de  mos- 
queteiros commandada  por  Maupertis.  N'esse  anno, 
segundo  o  sr.  Beauvois,  recebia  elle  com  o  nome 
de  «marquez  de  Chamilly»  a  ordem  cretense  do 
Santo  Anjo  da  Guarda. 

As  Cartas  da  religiosa  eram  já  conhecidas  ou  cir- 
culavam traduzidas  e  em  copia,  como  diz  Barbin, 
pois  que  este  pedia  e  obtinha,  no  mez  seguinte,  em 
28  de  outubro  d'aquelle  anno,  privilegio  régio  para 
a  sua  publicação. 

Publicava-as  quando  o  heroe  reentrava  em  França. 

Chamilly  demorou-se  pouco  em  Cândia; — «ficou 
n'esla  ilha, — diz  o  sr.  Beauvois, — até  19  de  janeiro 


â30 


de  1669,  á  volta  foi  juntar-se  a  seu  irmão  Hérard, 
tjue  commandava  um  corpo  de  exercito  no  ducado 
de  Luxemburgo,  era  nomeado  coronel  do  regimento 
■de  Borgonha  (8  julho  1669),  e  ia  fazer  guarnição 
em  Dunkerque.» 

Não  nos  alongaremos  mais  na  sua  biographia. 
Recordaremos  apenas  que  em  1677  casava  com  uma 
filha  de  João  Jacques  de  Bouchet,  senhor  de  Ville- 
fix;  que  em  1703  era  feito  marechal  de  França,  e 
que  morria  em  8  de  janeiro  de  1715  com  79  annos 
de  edade  e  pouco  menos  do  que  imbecil,  segundo 
conta  Saint-Simon.  Este  que  o  conheceu  de  perto 
e  que  a  elle  se  refere  muitas  vezes,  fecha-lhe  a 
biographia  como  expozemos  atraz.  Por  occasião  da 
elevação  d'elle  a  marechal  de  França,  diz: 

— «Entre  muitos  commandos  que  teve  durante 
a  guerra  da  Hollanda,  o  governo  de  Graves  illus- 
trou-o  por  aquella  admirável  defeza  (1674)  de  mais 
de  quatro  mezes,  que  custou  16:000  homens  ao 
príncipe  de  Orange,  pelo  que  mereceu  elogios,  ele. 
— Era  um  homem  alto  e  grosso,  o  melhor  homem 
do  mundo,  o  mais  bravo,  o  mais  cheio  de  honra, 
mas  tão  estúpido  e  pesado  que  não  se  comprehende 
como  podesse  ter  algum  talento  para  a  guerra.» 

É  escusado  lembrar  que  Saint-Simon,  como  Du- 
elos, outro  contemporâneo, — dizem,  como  coisa  sa- 
bida e  corrente, —  e  Saint-Simon,  particularmente, 
.deveria  sabel-o  do  próprio  Chamilly, — que  fora  este 
o  capitão  dos  amores  e  das  Cartas  da  religiosa  por- 
tugueza. 


231 


VI 


Sobre  a  desolada  Marianna  é  que  depois  do  amo- 
roso episodio,  como  antes  d'elle,  tem  continuado  a 
pesar  a  mais  completa  obscuridade,  que,  insistimos 
em  dizer,  mãos  estranhas  procuraram  systematica- 
mente  tornar  irreductivel  á  curiosidade  indiscreta, 
e  também,  como  continuaremos  a  ver,  pouco  pre- 
sistente,  dos  investigadores. 

Mas  uma  vez  entrados  no  caminho  que  só  uma 
sentimentalidade  indolente  ou  piegas  pode  taxar  de 
impiedosa  e  inútil  profanação,  não  desistimos  de 
arrancar  a  essa  obscuridade  injusta  toda  aquella 
existência  mallograda  de  mulher  intelligente  e 
amante. 

É  claro  que  mais  de  uma  vez  tivemos  de  pôr  de 
parte  certas  preoccupações  e  preconceitos  littera- 
rios. 

Como  naturalmente  nos  teria  acontecido  não  en- 
contrarmos o  nascimento  de  Marianna  se  a  tivésse- 
mos imaginado  ampriina  e  moça»  de  15  annos,  le- 
ríamos de  desistir  de  acertar  com  ella  no  obituário 
conventual,  «morta  de  amor»  logo  depois  d^aquella 
funesta  paixão,  como  reclamaria  a  lenda  romanesca 
tantas  vezes  contrariada  e  desmentida  pela  physio- 
logia  e  pelos  factos. 


232 


Foi  ainda  a  leitura  meditada  das  Cartas  que  d'esta 
vez  também  nos  guiou  um  pouco. 

Certo,  a  idéa  do  suicidio  relampea  uma  vez  no 
espirito  altribulado  da  religiosa.  Outra  indicação 
mais  séria  era  a  das  «muitas  enfermidades»  que  ella 
dizia  soíTrer,  a  da  «pouca  saúde  que  lhe  restava.» 
Curiosa  coincidência: — fomos  mais  tarde  encontrar 
confirmada  essa  indicação,  como  vae  ver-se,  preci- 
samente no  termo  de  óbito  da  desgraçada. 

Mas  outras  revelações  nos  offereciam  as  Cartas 
que  nos  estimulavam  a  não  desistir  da  investigação, 
deante  da  falta  de  obituários  conventuaes  anterio- 
res a  1690,  e  de  quaesquer  documentos  dos  annos 
próximos  a  1668,  em  que  podessemos  encontrar  a 
religiosa.  Eram,  por  exemplo,  a  própria  energia  in- 
tensa e  persistente  que  ella  revela  no  seu  amor; — 
a  profunda  espiritualidade,  deixem-nos  exprimir  as- 
sim, que  a  envolve  e  levanta  até  nas  situações  e  nas 
recordações  mais  escabrosas,  como  quando  allude 
aos  momentos  passados  nos  braços  do  amante; — 
era  ainda  a  influencia  do  meio,  tão  pronunciada  já 
que  até  na  phrase,  na  maneira  de  pintar  os  enle- 
vos e  Ímpetos  do  seu  enamorado  espirito,  a  Ma- 
rianna  da  Conceição  se  exprime  frequentemente 
como  a  sua  homonyma  da  Esperança,  quando  esta 
descreve  ingénua  e  singellamente  ao  confessor  os 
raptos  e  volúpias  da  ascese  mystica;— era  final- 
mente a  ultima  Carta,  que^  ainda  descontada  a  con- 
tenção intencional,  a  cada  momento  interrompida, 
traduz  com  soffrivel  nitidez  que  uma  grande  revo- 


233 


lução  se  operou,  vae  feita  e  quasi  triumphante  no 
espirito,  talvez  no  orgulho,  na  dignidade  profunda- 
mente offendida  d'aquella  mulher,  e  que  uma  von- 
tade firme,  resoluta,  vae  recalcar,  se  não  puder  ex- 
tinguir, a  funesta  e  mallograda  paixão. 

O  testamento  da  irmã,  Maria  Alcoforado,  veiu  de- 
nunciar-nos  que  Marianna  vivia  ainda  em  1676,  oito 
annos  depois  da  ultima  carta,  quando  Chamilly  ia 
fazer  em  França  o  seu  casamento  de  conveniência, 
que,  melhor  do  que  a  defeza  de  Graves,  e  do  que 
as  campanhas  de  Portugal,  de  Cândia,  da  Hollanda, 
o  havia  de  conduzir  aos  mais  altos  postos. 

Segundo  as  Cartas,  Marianna  fora  feita  porteira, 
ou,  mais  propriamente,  uma  das  porteiras  do  con- 
vento, nos  principios  de  1668.  Porventura  procura- 
vam distrahil-a,  arrancal-a  á  escandalosa  obsessão, 
com  as  occupações,  com  as  responsabilidades,  um 
pouco  também  com  as  liberdades  do  cargo. 

É  curioso, — parece-nos  até  particularmente  si- 
gnificativo,— que  Marianna,  filha  de  uma  das  prin- 
cipaes  e  mais  influentes  famílias  em  Beja  e  no  con- 
vento da  Conceição,  uma  das  mais  antigas  religio- 
sas d'elle,  não  nos  appareça  depois  desempenhando 
algum  cargo  mais  elevado  e  propriamente  de  elei- 
ção canónica  e  geral,  quando  vemos  a  irmã  mais 
nova,  escrivã  e  abbadessa,  e  as  sobrinhas  gradua- 
das n'outras  commissões  conventuaes. 

Comtudo  o  nome  de  Marianna  Alcoforado  appa- 
rece-nos  em  1709,  n'uma  eleição  abbadessial,  renhi- 
damente contraposto  ao  de  outra  freira,  9  annos 


Í234 


mais  moça, — D.  Joanna  Vellosa  de  Bulhão, — que 
só  por  poucos  votos  mais  consegue  ser  proclamada 
abbadessa  por  Fr.  Diogo  de  S.  João  Baptista,  «se- 
cretario n'esta  eleição.» 

Adivinha-se  uma  d'aquellas  luctas,  como  que  uma 
recalcada  revolta,— tão  vulgares  nos  conventos. — E 
de  que  as  houve  na  Conceição,  temos  o  testemu- 
nho da  própria  Peregrina  Alcoforado,  que  nos  fala 
do  «mutim  das  grades»  e  das  «alterações  do  coro», 
por  causa  da  reforma. 

O  acto  tem  uma  certa  solemnidade  imponente. 
Passa-se  em  30  de  julho  de  1709.  Preside  por  de- 
legação do  reverendo  padre  provincial,  o  pregador 
e  secretario  da  Província  franciscana,  e  assistem 
como  testemunhas  dois  leitores  de  theologia  e  qua- 
lificadores do  Santo  Officio,  o  vigário  do  mosteiro, 
outro  pregador,  e  o  guardião  do  convento  de  S. 
Francisco,  de  Beja.  C©lhem-se  cento  e  nove  votos, 
sendo  um  o  do  presidente  e  os  mais  das  freiras 
professas.  Recahe  um  em...  Nossa  Senhora  da 
Conceição.  Marianna  Alcoforado  obtém  48  e  a  sua 
competidora  consegue  apenas  mais  10.  * 

No  triennio  anterior,  ou  em  1706,  um  só  voto  se 
atrevera  a  lembrar  Marianna  para  abbadessa. 

Depois  d'isto  não  conseguimos  encontrar  o  nome 
(la  pobre  religiosa  senão  no  termo  da  sua  morte, 


1  D.  Joanna  Velloso  morreu  em  25  de  outubro  de  1719, 
com  70  annos.  Diz  o  termo: — «foi  seis  annos  Abb.*  fasendo 
a  sua  obrigasão  com  grande  zelo,  padeseo  repetidas  infrinii- 
dades  q  toleraua  com  grande  pasiensia ...» 


235 


mas  esse  documento  pode  dizer-se  que  nos  recom- 
põe a  vida  d'ella  depois  do  episodio  das  Cartas. 

Profundamente  abalada  na  saúde,  soffrendo  aquei- 
las  «continuas  infermidades»  a  que  as  Cartas  allu- 
dem  já,  e  cuja  historia  physiologica  talvez  não  fosse 
muito  aventuroso  suppor, —  Marianna  acabou  por 
afundar-se  na  ascese  devota,  entregando-se  a  gran- 
des penitencias,  menos  porventura  na  esperança  de 
conquistar  o  Céo,  do  que  para  recalcar  e  extinguir 
o  brazeiro  da  sua  funesta  paixão. 

A  resistência  vital  dos  Alcoforados  fel-a  vegetar 
longamente. 

No  primeiro  livro  Das  religiosas  defuntas  do  Real 
Convento  da  Conceição  de  Beja,  começado  em  1692 
e  cujo  ultimo  termo  é  de  1732,  a  madre  escrivã  D. 
Antónia  Sophia  Baptista  d' Almeida  regista  summa- 
riamente  a  vida  e  a  morte  de  aMadre  Dona  Ma- 
rianna Alcanforada^ . 

Morreu  em  28  de  julho  de  1723,  de  edade,  diz 
erradamente  o  termo,  de  87  annos.  Tinha  83,  e  pelo 
menos  60  e  tantos  de  freira. 

E  a  piedosa  escrivã  accrescenta,  que — «todos  gas- 
tou no  serviço  de  Deus»,  que  cumpria  as  suas  obri- 
gações, que  «era  muito  exemplar»  e  que  «ninguém 
teve  queixa»  d'ella  ^(porque  era  muito  benigna  para 
todasy> . 

— <í  Trinta  annos,  fez  ásperas  penitencias-» , — con- 
tinua o  termo,  calando  d'esta  vez  a  explicação, — 
apadeceu  grandes  enfermidades  e  com  muita  confor- 
midade, DESEJANDO  TER  MAIS  QUE  PADECER.» 


236 


Singular  coincidência: — 56  annos  antes  dizia  ella 
ao  amante: — «Faze-me  padecer  mais  ainda  1. . .» 

Não  é  uma  piírase  banal,  commum,  insignifica- 
tiva, — é  uma  phrase  typica,  a  expressão  inconsciente 
de  um  estado  ou  de  um  caracter  physiologico^  tra- 
duzindo admiravelmente  a  necessidade  de  certas  al- 
mas ardentes,  ingenuamente,  implacavelmente  de- 
dicadas, de  sentir  que  vivem,  que  existem,  que  con- 
tinuam no  objecto  do  seu  amor,  até  por  se  senti- 
rem repelidas  ou  maltratadas  por  elle.  A  indiffe- 
rença,  a  compaixão,  a  franqueza  leal  do  abandono, 
é  que  lhes  seriam  intoleráveis.  Não  diz  também  a 
desgraçada? 

— «. .  .houvera  suportado  a  sua  aversão. . .  Ao 
menos  sentir-me-hia  aíTrontada  por  um  sentimento 
vivo.  Mas  a  sua  indifferença  é  me  insuportável . . . 
Abomino  a  sua  franquesa.» 

Parece  que  os  próprios  textos  estão  ironicamente 
reagindo  contra  toda  a  tentativa,  como  a  do  sr.  Beau- 
vois,  de  contrariar  a  verdade  histórica  das  Cartas. 

Quando  sentiu  a  morte,  Marianna — «pediu  todos 
os  sacramentos  os  quaes  recebeu  em  seu  juiso  per- 
feito dando  muitas  graças  a  Deus  pelos  haver  re- 
cebido, e  assim  acabou  com  signaes  de  predesti- 
nada, falando  até  á  ultima  hora.» 

Como  Heloísa,  sobrevivera  ao  amante,  menos  tem- 
po, comtudo,  e  como  ella,  mas  bem  mais  desditosa 
do  que  ella,  encerrara-se,  não  com  a  memoria  e 
com  as  cinzas  queridas  do  homem  que  amara,  mas 
com  a  dôr  e  a  vergonha  da  sua  malograda  paixão. 


237 


nas  ausleridades  e  nas  penitencias,  no  exemplo  e 
no  recolhimento  da  mais  severa  vida  clauslral. 

Foi  assim,  amortalhando-se  na  fatalidade  do  seu 
destino,  que  ella  procurou  aquelle  «estado  mais 
tranquillo»  que  se  promettia  na  ultima  Carta. 

Mas  em  1723  essas  Cartas  corriam  o  mundo,  tra- 
duzidas em  diversas  linguas,  reproduzidas  em.  suc- 
cessivas  edições,  e  quem  pode  aíTirmar  que  alguma 
não  fosse  um  dia  sacudir  brutalmente  o  coração  e 
o  espirito  da  desgraçada  nessa  mesma  tranquilli- 
dade  tumular  em  que  ella  procurava  afogal-os? 

A  própria  campanha  da  Restauração  accrescen- 
tara  consideravelmente  as  nossas  relações  littera- 
rias  com  a  França,  e  natural  é  que  os  ofíiciaes  fran- 
cezes  deixassem  no  Alemtejo,  onde  por  tantos  annos 
estiveram,  amizades  e  correspondências  que  se  não 
trancassem  de  súbito. 

O  destinatário  das  Cartas  fizera-se  acompanhar 
de  dois  creados  portuguezes;  um  d'eiles  até  apa- 
rece nos  com  o  mesmo  nome  de  um  creado  de  Baltha- 
sar  Vaz, — o  companheiro  de  Chamilly, —  em  16G9, 
quando  este  se  faz  padre. 

E  no  inventario  de  um  filho  de  Miguel  da  Cunha 
Alcoforado,  o  irmão  de  Marianna,  que  recolhe  e 
herda  o  morgadio,  encontra- se  esta  verba: 

— «Mais  dusentos  Livros  franceses  avaliados  em 
cincoenta  mil  reis.»* 


1  Segundo  o  sr.  Theophilo  Braga,  n'um  índex  dos  livros  pro- 
liibidos  pela  Mesa  Censória  no  terceiro  quartel  do  século  xviii 


238 


O  que  é  certo  é  que  o  êxito  mais  ruidoso  e  in- 
tenso das  Cartas  se  dá  ainda  em  vida  de  Marianna 
e  na  de  muitos  que  conheceriam  o  escandaloso  epi- 
sodio ou  que  poderiam,  e  teriam  o  maior  interesse 
em  desmentii-o.  Perto  de  cincoenta  edições  se  ti- 
nham succedido  e  espalhado. 

Em  vez  porém  de  qualquer  reacção  ou  de  qual- 
quer contradicta, —  e  mais  em  Portugal  succedem-se 
também,  abundantemente,  as  chronicas  dos  conven- 
tos,— faz-se  um  grande  silencio  em  volta  do  nome 


encontram-se  as  Cartas  Portiiguezas.  O  illustre  escriptor  sup- 
põe,  por  isso,  que  fosse  por  esse  tempo  que  se  introduzissem 
em  Portugal.  Nós  suppomos  que  a  prohibição  prova  exacta- 
mente ...  que  já  estavam  introduzidas.  Deviam  tel-o  sido,  ainda 
no  século  xvir. 

Encontrámol-as  também  prohibidas  n'um  indice  do  celebre 
Conselho  Aulico  do  antigo  império  germânico,  impresso  em 
Vienna  d' Áustria: — Catalogus  Lihroruma  Commissione  Aulica 
Prohibitorum. —  Vindobonae.  Typis  Joan.  Thom.  de  Trettnsm, 
ete.— 1765. 

As  edições  comminadas  a  pag.  98,  99,  são : 

Lettres  d'amour  d'une  Religieuse  Poríiigaise,  eíc.  a  la  Haye, 
1693  in  12. 

— Lettres  Portugaises,  avec  íes  réponses,  ele.  à  Lyon,  1695, 
in  12. 

É  curioso  que  apezar  da  sua  extraordinária  publicidade, 
não  as  encontremos  no  grande  numero  de  Índices  expurga- 
torios  anteriores  e  posteriores  a  esta  data,  que  temos  podido 
consultar  na  Bibliotheca  Nacional  de  Lisboa,  com  o  amável 
auxilio  do  nosso  bom  e  erudito  amigo  sr.  Gabriel  Pereira,  di- 
gno bibliothecario. 

A  indicação  relativa  á  bibliotheca  francezados  Alcoforados, 


239 


da  pobre  freira,  e  até  da  sua  prestigiosa  familia,  e 
desapparece  aquella  n'uma  obscura  penitencia  de 
30  annos,  que  não  consegue  resgatar  e  vencer  esse 
silencio. 

De  uma  freira  d'aquelle  convento  e  d'aquelle  tem- 
po,—  «cujo  nome  se  ignora» — conta  Fr.  Jeronymo 
de  Bellem  que  vira  «o  demónio  em  figura  tão  hor- 
renda e  feia  como  elle  próprio,  todo  coberto  de  teias 
de  aranhas  e  como  chorando  inconsolavelmente.» 

— «Pondo  os  olhos  a  serva  de  Deus  naquelle  hor- 
roroso expectaculo,  llie  dice: — Para  que  me  apare- 
ces, besta  infernal,  e  para  que  choras,  se  em  ti  não 
ha,  nem  pôde  haver  penitencia?» 


eneontrámol-a  n'um  dos  papeis  do  sr.  Azevedo,  de  Portale- 
gre:— 1768  I  Dos  Erdeiros  de  loaquim  Miguel  da  Cunha  Alco- 
forado que  faleseo  |  em  esta  cidade  de  Beja  em  os  \  dois  dias  do 
mez  de  lunho  de  mil  e  \  setecentos  e  sesenta  e  outto  \  annos. — 
É  a  viuva,  D.  Maria  Clara  Francisca  Xavier  de  Albuquerque 
Gastei -Branco,  que  requer  a  liquidação,  em  5  de  agosto  de 
1768,  dizendo  que  seu  marido  foi  administrador  «de  um  mor- 
gado denominado  dos  Alcoforados»  que  por  sua  morte  passou 
«para  um  transversal  Francisco  da  Costa  Alcoforado,  da  villa 
de  Beringel,»  com  o  qual  tem  contratado  fazer  descripção  e 
partilha  amigável  do  casal  para  da  terça  do  marido  se  tirar  a 
«tersinha»  a  annexar  ao  iLorgado.  A  verba  vem  no  artigo : 
Roupas  de  linho ! 

E  mais  tarde,  no  testamento  d'aquella  senhora,  em  Porta- 
legre, a  2  de  agosto  de  1798  (notas  do  tabellião  José  Pereira 
Mourato),  diz-se: 

— «Item  deixo  a  meu  compadre  Francisco  Gomes  Coelho, 
da  cidade  de  Beja,  a  livraria  francesa  que  elle  tem  em  seu 
poder.» 


240 


Quem  sabe  se  não  foi  Marianna  Alcoforado,  ve- 
lha e  beata,  já,  quem  viu  algum  dia  este  lamurienlo 
demónio  sob  a  figura  de  um  capitão  de  cavallaria 
dos  tempos  da  Restauração? 


VTI 


Duas  palavras  sobre  a  nossa  edição  das  Cartas. 

Pelo  que  importa  á  sua  traducção  franceza,  posto 
que  a  consideremos,  como  toda  a  gente,  litteraria- 
mente  pouco  feliz,  pensamos,  como  o  abbade  de 
Saint-Léger,  que  o  melhor  que  podemos  fazer  é 
conserval-a  e  adoptal-a  tal  qual  é,  por  isso  que  per- 
dido o  original  só  com  ella  havemos  contar. 

Além  de  que  os  próprios  defeitos  da  traducção, 
derivados  evidentemente  do  caracter  litteral  d'ella 
constituem  de  certo  modo  um  merecimento  sob  o 
aspecto  puramente  critico. 

Não  hesitamos  porém  em  fazer  uma  pequena  al- 
teração na  ordem  em  que  se  succedem  nas  diver- 
sas edições  as  Cartas  da  religiosa,  porque  o  estudo 
meditado  e  comparativo  d'ellas,  na  forma  e  no  fundo, 
parece-nos  revelar  irrecusavelmente  que  essa  or- 
dem não  corresponde  á  successão  natural  das  si- 
tuações e  dos  factos  que  ellas  exprimem,  e  não  foi, 
em  summa,  a  ordem  em  que  ellas  se  succederam. 


241 


Pouco  depois  da  publicação  do  nosso  primeiro  tra- 
balho, um  critico  francez,  que  evidentemente  o  não 
conhecia,  chegava  a  esta  mesma  conclusão,  posto 
que  a  ordem  que  julgou  restabelecer  não  fosse  a 
mais  feliz.  *■  Mas  o  que  é  mais  curioso  é  que  n'uma 
edição  que  só  agora  podemos  examinar, — na  de 
KleíTer,  de  1821,  — acabamos  de  encontrar  justifi- 
cada e  restabelecida  a  ordem  que  indicáramos! 

A  primeira  carta  responde  aos  últimos  protes- 
tos de  amor,  á  ultima  despedida  do  capitão  francez, 
quando  abandona  Portugal,  talvez  antes,  quando 
abandona  Beja. 

Exprime  as  primeiras  impressões,  as  primeiras 
maguas, —  as  que  a  religiosa  sente  e  as  que  ella 
imagina  que  deve  sentir  o  amante. 

Marianna  suppõe-n'o  já  em  França;  é  certamente 
para  alli  que  as  dirige. 

Sente-se  profundamente  abatida;  a  desconfiança 
recomeça  já  a  atlribular-lhe  o  espirito,  mas  está 
longe  de  comprehender  toda  a  situação;  espera  ainda 
que  o  amante  voltará  breve. 

Um  dos  irmãos  proporciona-lhe,  inconsciente- 
mente, de  certo,  um  ensejo  de  escrever-lhe. 

Deve  ser,  como  já  vimos,  Balthazar  Vaz  Alcofo- 
rado, seu  companheiro  nas  expedições  da  Andalu- 


1  Maurice  Paléologue:  Les  lettres  d'amour  de  la  religieuse 
portiigaíse. — Bevue  des  deux  mondes,  t.  95,  15  de  outubro  de 
1889. — Elle  quer  que  a  4.^  fosse  a  1.",  e  a  3.''  a  4.%  sendo  a 
2.%  de  maio  de  1668. 

F.  16 


242 


zia,  e  que  se  teria  encarregado  de  qualquer  re- 
messa, de  qualquer  incumhencia,  na  partida,  evi- 
dentemente brusca,  do  capitão  francez. 

Não  pode  haver  duvida: — esta  carta  é  a  primeira 
das  cinco. 

Deve  ter  sido  escripta  ainda  nos  fins  de  1667: — 
talvez  pouco  depois  da  partida,  em  novembro  ou 
dezembro. 

Mas  é  logo  na  segunda  que  se  encontra  a  refe- 
rencia «á  paz  de  França»,  e  é  n'esta  ainda  que  a 
religiosa  se  queixa  de  terem  passado  seis  mezes 
sem  receber  carta  alguma  do  amante. 

Se  fora  realmente  a  segunda  que  ella  escrevera, 
a  queixa  parecera  contradictoria,  pois  que  também 
n'esse  longo  praso  a  religiosa  não  teria  escripto,  ou 
tel-o-hia  feito  uma  só  vez,  apenas.  Além  de  que, 
n'esse  caso,  as  duas  cartas  que  se  seguem  teriam 
sido  escriptas  quando,  feita  a  paz  com  a  Hespanha, 
os  nossos  auxiliares  francezes  abandonavam  já  o 
Alemtejo  e  a  esperança  no  regresso  do  capitão  de- 
veria estar  pouco  menos  que  inteiramente  perdida. 

Como  notámos  atraz,  a  noticia  da  «paz  de  França» , 
a  que  a  carta  allude,  só  podia  chegar  ao  Alemtejo 
em  abril  ou  maio  de  166S. 

Não  é  pois  a  segunda  carta  que  a  religiosa  es- 
creveu a  que  apparece  como  tal  nas  edições. 

A  forma,  a  expressão  d'ella,  comparada  com  a 
das  seguintes,  acaba  por  dissipar  todas  as  duvidas. 

O  tom  geral  é  de  desesperança,  de  desalento 
completo. 


ã43 


A  pobre  religiosa  vê  claro  na  situação,  ou,  mais 
propriamente,  esta  impõe-se-lhe.  Enlouquece  de  de- 
sespero. Sente  que  foi  indignamente  burlada.  Pro- 
cura apegar-se  ainda  á  sua  illusão,  é  certo,  mas  a 
realidade  fatal  sobreleva-se-lhe,  implacável. 

A  noticia  da  paz  da  França  relampea-lhe  no  es- 
pirito como  derradeira  esperança,  que  ella  mal  se 
atreve  a  balbuciar. 

Cremos  que  esta  carta  é  que  é  a  quarta.  Seria 
talvez  escripta  em  maio.  * 

Parece  evidente  que  as  duas  que  se  lhe  seguem 
foram  escriptas  anteriormente. 

A  terceira  abre  exactamente  pelas  primeiras  es- 
peranças da  religiosa,  ou  pelas  ultimas  promessas 
do  capitão,  ao  partir. 

— «Esperava  que  me  escrevesses  de  lo  ias  as  ter- 
ras por  onde  passasses;  que  seriam  longas  as  tuas 
cartas»,  etc. 

A  considerada  como  quarta  regista  as  primeiras 
novas  transmittidas  pelo  capitão  ao  tenente  da  sua 
companhia,  e  por  este  á  religiosa,  da  viagem  para 
França  e  da  arribada  do  navio  que  o  conduzia. 

Allude-se  a  pequenas  cartas  frias  e  apressadas 
do  amante,  provavelmente  antes  de  embarcar,  ou 
quando  ainda  em  terra  portugueza,  pois  que  n'essa 
mesma  carta  a  religiosa  diz: 

— «Bem  desgraçada  sou  se  nenhuma  occasião  ti- 


1  Como  a  computou,  também,  o  critico  francez  da  Revue  des 
deiix  mondes,  depois  de  nós. 

16* 


244 


vesle  para  me  escrever  depois  da  tua  partida,  e 
mais  desgraçada  ainda  se,  tendo-a,  o  não  fizeste.» 

Recorda  os  pretextos  d'essa  partida  e  allude  á 
«confissão  molesta»  que  havia  «cinco  ou  seis  me- 
zes»  lhe  fizera  o  capitão,  de  uns  amores  que  tivera 
em  França  antes  de  vir  a  Portugal. 

É  também  n'esta  carta  que  a  pobre  freira  re- 
corda que  «vae  fazer  um  anno  que  toda  se  lhe  en- 
tregou. » 

O  próprio  confronto  dos  movimentos  Íntimos,  que 
se  traduzem  e  exprimem  com  singular  relevo  nas 
diversas  cartas,  confirma  que  a  successão  d'ellas  foi 
casualmente  alterada  na  sua  copia  ou  na  sua  publica- 
ção, e  seria  uma  prova,  a  mais,  de  que  ellas  não 
foram  a  obra  de  um  bel  espnt  que  as  forjasse . 

A  quarta  carta  entrou  no  logar  da  segunda  e  esta 
no  d'aquella.  A  nossa  correcção  hmita-se  a  desfa- 
zer esta  troca. 

O  que  acabamos  de  expor  e  uma  leitura  refle- 
ctida dos  textos  hão  de  dar-nos,  esperamos,  in- 
teira razão. 

Se  pode  haver  logar  para  preferencias  nas  cinco 
estrophes  d'este  encantador  poema,  a  quinta  pode 
dizer-se  que  vale  todas  as  outras.  Chega  a  parecer 
incrível  que  se  podesse  suppor  forjada  por  qual- 
quer bel  espiit  de  uma  litteratura  superficial  e  sce- 
ptica  aquella  primorosa  crystallização  de  uma  alma 
de  mulher  intelligente  e  apaixonada,  que  se  ergue 
do  abatimento  da  sua  deshonra  e  da  sua  desprezada 
paixão,  com  todo  o  orgulho  da  ingénua  honestidade 


245 


do  seu  erro,  com  toda  a  altiva  superioridade  do  seu 
coração  delicado  e  leal,  fazendo  do  desprezo  do  bruto 
€  sensual  seductor  a  primeira  «disciplina»  cem  que 
vae  começar  a  expiação  da  própria  vergoaha. 

Ah,  não  serão  de  mais,  não,  «trinta  annos  de  ás- 
peras penitencias»,  de  ílagellações  e  de  jejuns,  para 
lavar  aquellas  formosas  e  delicadas  carnes,  aquelle 
sangue  generoso  e  fidalgo,  do  contacto  com  o  sol- 
dado estúpido  e  desabusado. 

Esta  quinta  epistola,  ou  a  ultima,  abre  com  uma 
phrase  que  nos  parece  ter  passado  desapercebida, 
e  que,  pouco  intelligivel  para  o  leitor  francez,  en- 
cerra para  nós  uma  nova  indicação  da  originalidade 
portugueza  das  cartas. 

A  religiosa  começa  por  dizer  ao  desalmado  amante 
que  espera  fazer-lhe  conhecer  «pela  differença  dos 
termos  e  da  maneira  d'esta  carta»  que  está,  emfim, 
bem  convencida  de  que  elle  a  não  ama  já  e  de  que 
ella  deve  deixar  de  amal-o. 

Depois,  na  traducção  franceza,  essa  differença, 
não  só  dos  termos,  mas  da  (ímaneiray> ,  é  perfeita- 
mente inapercebivel. 

A  religiosa  começa,  continua  e  termina,  tratando 
o  amante,  com  o  qual  definitivamente  rompe,  da 
mesma  maneira  pronominal  porque  o  tratou  sem- 
pre. 

Mas  o  vous  francez  traduz  naturalmente,  n  este 
caso,  dois  tratamentos  pronominaes  portuguezes 
caracteristicamente  differentes. 

Nas  primeiras  quatro  cartas  esse  tratamento  seria 


246 


o  que  é  de  uso  commum,  familiar,  popular,  entre 
nós  em  relações  intimas:— o  nosso  tu, — tratamento 
que  não  tem  exactamente  as  mesmas  applicações 
sociaes  e  de  uso  geral  do  seu  correspondente  gram- 
matical  francez. 

É  verdade  que  temos  o  vós  de  tradição  clássica, 
muito  abusada,  por  signal,  mas  além  de  que  tal 
tratamento  destoaria  do  caracter  das  relações  e  da 
situação  que  as  Cartas  exprimem,  textos  análogos, 
contemporâneos,  repellem-n'o. 

Na  ultima  carta,  rompendo  as  relações  e  a  corres- 
pondência com  o  capitão  francez,  verberando  dura- 
mente o  procedimento  d'elle,  a  religiosa  não  usaria 
o  mesmo  tratamento,  a  mesma  maneira  pronomi- 
nal, mas  outra  mais  consoante  no  uso  e  na  expres- 
são portugueza  com  a  nova  situação  definida  por 
aquella  carta. 

Tratal-o-hia  «na  terceira  pessoa»,  ou  empregan- 
do pronominalmente  a  palavra  senhor,  espécie  de 
idiotismo  da  nossa  lingua,  que  o  traduclor  francez 
não  podia  caracterisar  e  verter  senão  ainda  pelo 
vous. 

Na  traducção  franceza  a  «maneira», — mais  pro- 
priamente o  tratamento, —  e  não  o  «estylo»,  como 
traduziu  Sousa  Botelho,— é  sempre  o  mesmo: — 
wus, — nem  podia  deixar  de  ser. 

No  original  porluguez  esse  tratamento  não  podia 
ser,  ou  não  era  natural  que  fosse,  o  mesmo  na  inti- 
midade e  no  rompimento  dos  dois  amantes,  e  logo 
ao  abrir  a  quinta  carta  a  religiosa  exprimiiia  real- 


247 


mente  na  «diííerença  dos  termos  e  da  maneira»,  a 
differença  das  situações. 

Para  um  portuguez  aquella  phrase  é  prefeita- 
mente  clara. 

Comtudo,  dos  poucos  traductores  portuguezes 
que  teem  tido  as  Cartas,  uns  adoptam  em  todas  o 
tratamento,  pouco  natural  e  próprio  nas  quatro  pri- 
meiras, de  vós,  outros  o  de  tu,  completamente  ex- 
temporâneo e  illogico  na  quinta.  Se  tivessem  pen- 
sado um  pouco  na  primeira  phrase  d'esta,  ter-se- 
hiam  recordado  logo  dos  usos  e  idiotismos  prono- 
minaes  da  língua.* 

Leva-nos  isto  naturalmente  a  considerar  o  pro- 
blema da  traducção,  ou  da  restituição  portugueza 
das  Cartas,  seguramente  menos  simples  do  que  a 
questão  da  sua  versão  franceza. 


1  Devemos  aqui  uma  observação, —  que  a  bem  dizer  é  um 
agradecimento, —  a  dois  dos  mais  illusfres  e  amáveis  criticos 
da  nossa  primeira  edição. 

—  «O  senhor!  o  senhor! — exclama  a  notabilissima  escri- 
ptora,  a  sr.^  D.  Maria  Amália,  reparando  no  tratamento  que 
adoptámos  para  a  ullima  carta: — «é  de  uma  vulgaridade  e 
de  um  plebeismo  atroz  este  tratamento.»  Seria  illogico  o  tu. 
— «mas  antes  isso !  antes  um  tu  illogico  do  que  um  senhor 
tão  mal  soante.» 

E  o  sr.  Conde  de  Ficalho,  outro  escriptor  de  eleição, — 
nota  também  que — «esta  alteração  levou  a  umas  formas  de 
dizer  menos  naturaes  e  á  repetição  de  uma  expressão  destoante: 
o  senhor.» 

Mas,  perdão  :  —  é  exactamente  a  vulgaiidcMe,  o  plebeismo^ 


2Í8 


Na  falta  irremediável, — al'ás  prefeitamente  natu- 
ral,—do  texto  original,  o  que  importa,  parece-nos, 
é  procurar  surprehender  e  fixar  a  idéa,  o  senti- 
mento, o  drama  sensorial,  a  alma,  em  summa,  que 
se  espelha,  atravez  da  versão  franceza,  n'essas  Car- 
tas; o  que  as  teem  feito  viver  dois  séculos;  o  que 
ha  de  fazel-as  comprehender  e  amar  por  muitos 
mais,  em  diversas  linguas,  e  apesar  da  dicção  pou- 
co li  Iteraria  da  primeira  versão; — não  a  forma,  a 
linguagem,  o  que  desappareceu,  o  que  passou,  o 
que  só  poderá  recompor-se  por  artificio  pretencioso 
e  inútil.  Sabemos  bem  que  entre  nós  se  pensa  ain- 
da,— e  ha  ainda  quem  o  pratique, — que  para  ten- 
tar reviver,  no  romance  ou  no  drama,  por  exem- 
plo, um  episodio,  uma  situação  histórica,  uma  so- 
ciedade desapparecida,  o  melhor  que  ha  a  fazer  é 
pôr  na  bocca  dos  personagens  uma  linguagem  ar- 
ehaica,  mais  ou  menos  eruditamente  engenhada, 


ou,  o  que  no  caso  sujeito  vale  o  mesmo : — a  forma,  a  maneira 
usual,  popular,  corrente,  do  tratamento,  na  situação  denuncia- 
da, que  havia  de  procurar-se  para  ser. . .  natural.  Pouco  lit- 
teraria,  talvez,  mas  até  por  isso  mais  natural  ainda.  Mal  soante 
não ;  destoante  decerto,  porque  o  próprio  texto  logo  ás  pri- 
meiras linhas  adverte  que  ha  de  destoar  na  maneiri  e  nos  ter- 
mos, para  bem  fazer  comprehender  a  diíTerença  das  situações, 
mas  não  destoante  da  verdade,  da  naturalidade  da  situação 
creada  e  definida,  que  perante  esta  é  que  seria  absurdamente 
destoante  o  tratamento ...  da  anterior. 

Quando  muito,  repetimos,  poderíamos  ter  adoptado  o  vos, 
além  de  tudo,  n'este  caso  menos  expressivo. 


249 


que  no  fim  de  conlas  pode  bem  ter-se  como  certo 
que  não  foi  a  linguagem  d'elles, —  a  do  tempo,  co- 
mo costuma  dizer-se, — que  os  reduz  a  uma  espé- 
cie de  títeres,  que  lhes  tira,  a  elles  e  ás  situações, 
toda  a  vida  e  toda  a  naturalidade  communicativa  e 
própria. 

Mas  além  de  que  o  expediente  nos  parece  por 
demais  retardatário  e  inútil,  o  nosso  livro  é  sim- 
plesmente um  processo,  e  a  nossa  tráducção  das 
Cartas  não  se  oíTerece  como  exemplar,  menos  ain- 
da como  restituição.  Como  um  nosso  erudito  ami- 
go, já  falleeido,  que.  encarregado  de  redigir  uma 
mensagem  solemne  ao  Chefe  da  Egreja,  se  deu  ao 
extraordinário  trabalho  de  a  fazer  toda  com  phra- 
ses  dos  Livros  Santos,  poderamos,  embora  com  me- 
nos brilhante  êxito,  vasar  em  dizeres  clássicos  por- 
tuguezes  da  segunda  metade  do  século  xvii  toda 
aquella  sentimentalidade  revolta  e  ardente  da  po- 
bre freira  apaixonada.  Estamos  persuadidos  que 
seria  o  mais  seguro  meio. . .  de  não  recompor  as 
Cartas,  e  o  que  mais  nos  afastara  da  sua  redacção 
inicial. 

Exactamente  como  o  processo  diametralmente 
opposto,  ou  a  despreoccupação,  por  dizer  assim  sys- 
tematica,  absoluta,  das  formas,  da  maneira  da  ex- 
pressão linguistica  do  tempo,  que  ainda  quando  po- 
desse  imprimir  ás  Cartas  uma  feição  litteraria  mais 
communicativa,  por  mais  nossa,  por  mais  moderna, 
seria  á  custa  da  sua  verdade,  da  sua  naturalidade 
própria  que  é  o  que  cumpre  procurar  na  recon- 


250 


strucção  d'ellas,  porque  é  o  seu  grande  e  original 
merecimento.  * 

Outro  processo  havia  ainda. 

Mal  podem  contar  se  até  hoje  quatro  edições  por- 
tuguezas,  e  logo  a  primeira  é  de  Filinto  Elysio,  um 
mestre  da  lingua,  e  toda  ella  torneada  áquella  ma- 
neira tão  peculiar  d'elle,  tão  castiça  e  tão  estimada 
dos  puristas,  tão  artificiosa,  tão  falsa.  Começa  logo 
por  esta  phrase: — «Considera,  amores  meus,  quão 
pouco  previsto  foste  que  a  ti  mesmo,  com  engano- 
sas esperanças  te  trahiste,  e  a  mim  comtigo. . .» 

Quem  gostar  tem-n'a  em  duas  edições. 

Outra,  é  a  do  Morgado  de  Matheus,  um  bene- 
mérito das  nossas  leltras,  e  o  primeiro  escriptor 
portuguez  que  tentou,  com  intelligente  e  sincera 
paixão,  arrancar  ao  injusto  desleixo  e  esquecimento 
dos  seus  conterrâneos  a  mysteriosa  figura  da  He- 
loisa  portugueza. 

A  terceira,  incompleta,  é  a  de  Lopes  de  Mendon- 
ça, um  dos  temperamentos  litterarios  mais  bem  fa- 
dados para  semelhante  empreza. 

A  quarta  foi  a  de  um  pobre  moço  talentoso  e 
poeta,  prematuramente  fenecido  n'uma  obscuridade 
injusta:— ^Domingos  José  Ennes. 

Teriamos  nós  o  direito  de  nos  apropriarmos  de 
algumas  d'estas  traducções? 


1  É  o  que  me  permitto  objectar  a  outro  reparo  da  sr.=  D.  Ma- 
ria Amália,  quando  graciosamente  se  arrelia  por  certas  phra- 
ses: — <•  sentimento  querefusas»,— «comoés  tyranno!» — «mo- 
ções», etc. 


231 


Teríamos,  mas  não  quizemos.  Qualquer  d'ellas 
satisfaria, —  mais  ou  melhor, —  o  leitor.  Nenhuma 
nos  satisfaria,  porém,  e  como  os  primeiros  preju- 
dicados seremos  nós,  hão  de  relevar-nos  o  que  hou- 
ver de  impertinente  na  tentativa  de  uma  retraduc- 
ção  nova,  perfeitamente  despreoccupada  de  outra 
idéa  que  não  seja  a  de  uma  trasladação  compre- 
hensivel,  fiel, —  se  pode  dizer-se  assim. 

O  que  faremos,  não  por  falsa  modéstia,  menos 
ainda  por  orgulhosa  confiança,  mas  por  lealdade,  é 
nas  passagens  mais  formosas,  ou  mais  difficeis, 
oíTerecermos  à  escolha  do  leitor  as  diversas  ver- 
sões, até  para  que  não  deixemos  de  recordar  o  ca- 
racter especial  do  nosso  trabalho  e  a  intenção,  sim- 
plesmente critica,  d'elle. 


III 


AS  CARTAS 


Porque  o  começar  a  sahir  ella 
do  fogo,  he  o  que  mais  a  es- 
calda, visto  por  experiência 
que  o  arder  nelie  viva,  era  o 
seu  refrigério. 

P.  Manoel  Bernardes,  Seg. 
pari.  do  Pão  partido  em 
pequeninos.  —  Lisboa. — 
1708,  p.  184. 


Considera,  meu  amor,  como  foste  excessivamente 
descuidado! 

Ai  mal  aventurado! — Trahiram-te  esperanças  fe- 
mentidas e  com  ellas  me  enganaste. 

Uma  paixão  em  que  bordavas  tantos  deleitosos 
projectos  só  pode  dar-te,  agora,  um  mortal  deses- 
pero, apenas  comparável  á  crueldade  d'esta  ausên- 
cia. 

E  ha  de  este  desterro  para  o  qual  todo  o  re- 
quinte da  minha  dôr  não  acha  um  nome  assas  fu- 
nesto, privar-me  para  sempre  de  embeber-me  n'es- 
ses  olhos  em  que  via  tanto  amor  e  que  me  fizeram 
conhecer  enlevos  que  me  enchiam  de  contentamento, 
que  eram  tudo  para  mim,  que  emfim  me  abastavam 
a  vida?* 


1  A  phrase  na  versão  franceza  é :  « . . .  et  qui  me  faisaient 
connaitre  des  mouvements  qui  me  comblaient  de  joie,  qui  me 
tenaient  lieu  de  tout,  et  qui  enfin  me  siijfisaienL»  Está-se  a  adi- 


256 


Os  meus  olhos  é  que  perderam  nos  teus  a  única 
luz  que  os  animava.  Só  lhes  restam  lagrimas,  nem 
eu  lhes  tenho  dada  outro  emprego  senão  o  de  cho- 
rar continuamente  desde  que  sube  que  estavas  re- 
solvido a  um  apartamento  para  mim  tão  insupporta- 
vel  que  cedo  me  fará  morrer. 

E  comtudo  parece-me  que  tenho  o  quer  que  seja 
de  enamorado  apego  ás  magoas  de  que  tu  só  és  a 
causa. 

Consagrei-te  a  vida  desde  que  em  ti  descança- 
ram  meus  olhos,  e  sinto  em  sacrificar-t'a  um  mys- 
tico  prazer. 


vinhar  o  esforço  de  uma  comprehensão  e  traducção  lilteraU 
Mas  o  suffire  francez  oíTereee  difliculdades  conhecidas  e  dis- 
cutidas já,  creio  que  por  Teixeira  de  Vasconcellos,  á  traduc- 
ção 8  á  correspondência  portugueza.  Qual  seria  a  phrase  da 
religiosa  á  qual  o  traductor  francez  fez  corresponder  o  suffire  f 

Filinto  Elysio  poupou-se  á  difficuldade,  e  traduziu : 

« . . .  e  que  me  assignalavam  movimentos  de  que  bebia  o 
meu  coração  tanta  alegria,  movimentos  que  eram  para  mim 
tudo ;  pois  que  para  mais  nada  me  ficavam  desejos. » 

E  Sousa  Botelho,  verteu : 

«...  e  que  me  faziam  conhecer  aífectos  que  enchiam  meu 
peito  d'alegria,  que  eram  tudo  para  mim,  tudo  supriam  e  em- 
fim  me  satisfaziam.» 

Pareceu-nos  que  poderíamos  evitar  o  circumloqnio,  sem 
mutilar  o  texto,  traduzindo  o  sufftre  pelo  nosso  velho  e  clás- 
sico abastar. — «Fartar  ou  abastar  a  alma  com  a  graça  divina,» 
—  diz  Paiva  de  Andrade. 

É  um  erro  suppor-se  obsoleta  a  palavra  que  é  vulgar  ainda 
na  locução  popular. 


257 


Mil  vezes  ao  dia  te  procuram  meus  cançados  sus- 
piros e  não  me  trazem,  os  tristes,  outro  allivio  a 
tantas  tribulações  do  que  o  aviso  cruamente  sincero 
da  minha  desventura  que  me  não  consente  uma  es- 
perança e  me  repete  a  todos  os  instantes: — «deixa, 
deixa  de  consumir-te  em  vão,  infeliz  Marianna!  deixa 
de  anhelar  um  amado  que  não  tornarás  a  ver,  que 
passou  o  mar  para  te  fugir,  que  está  em  França  no 
meio  dos  prazeres,  que  não  pensa  um  momento  nas 
tuas  penas,  que  te  dispensa  de  todos  estes  trans- 
portes, que  nem  sabe  agradecer-fos.» 

Mas  não. 

Não  posso  resolver-me  a  cuidar  tão  mal  de  ti. 
Sou  muito  interessada  em  justificar-te.  Nem  quero 
imaginar  que  me  tenhas  esquecido! . . . 

Não  sou  eu  já  bem  desgraçada  sem  me  torturar 
com  falsas  suspeitas? 

Porque  hei  de  esforçar-me  em  apagar  da  memo- 
ria todos  os  desvelos  com  que  te  esmeravas  em  me 
provar  amor? 

Ai  tanto  me  deleitavam  elles  que  bem  ingrata 
fora  se  não  te  amasse  ainda  com  os  mesmos  ar- 
robamentos  em  que  a  minha  paixão  me  enlevava 
quando  lograva  os  testemunhos  da  tua. 

Como  é  possível  que  lembranças  de  tão  doces 
momentos  se  tenham  tornado  tão  amargas?  E  que 
contra  toda  a  natureza,  sirvam  somente  agora  para 
dilacerar-me  o  coração? 

Pobre  d'elle!  A  tua  ultima  carta  pol-o  n'um  es- 
tado singular:  taes  saltos  me  dava  no  peito  que 

F.  17 


^58 


parecia  forcejar  por  arrancarse  de  mim  e  voar 
para  ti.* 

Tão  quebrantada  fiquei,  de  todas  estas  moções 
violentas  que  por  mais  de  Ires  horas  estive  de  todo 
alienada  dos  sentidos.  ^ 

Era  como  se  me  defendesse  de  voltar  á  vida  que 
devo  perder  por  ti,  já  que  para  ti  a  não  posso  con- 
servar. 

Com  bem  pesar  tornei  a  mim. 

Regalava-me  sentir  que  morria  de  amor,  e  sen- 


1  Filinto  traduz : — « ...  tão  sensíveis  abalos  padeceo  que 
cuidei  que  lidava  em  separar-se  de  mim,  para  te  ir  buscar». 

E  Sousa  Botelho : — « . .  .as  suas  palpitações  foram  tão  sen- 
síveis que  pareciam  como  esforços  para  separar-se  de  mim  e 
reunir-se  a  ti.« 

Ora  por  aquelle  tempo,  a  dois  passos  da  nossa  religiosa,  a 
sua  homonyma,  freira  como  ella,  Marianna  da  Purificação, 
descrevia  uma  situação  análoga  da  seguinte  maneira. — «Isto 
me  succede  muitas  vezes,  que  toes  suo  os  saltos  e  baques  que 
dá  a  coração  no  peito  que  o  ouço  com  os  ouvidos  corporaes, 
e  desejo  abrir  o  peito  com  as  minhas  próprias  mã.os  e  deixal-o 
voar  para  onde  elle  quer  e  deseja  tanto,  mostrando  que  não  quer 
viver  em  mim  senão  no  seu  centro  que  he  o  meu  Divino  Es- 
poso." Frag.  da  prod.  vida,  etc.  por  Fr.  Caetano  do  Vene. — 
Lisboa,  1747. 

2  Podíamos  traduzir  simplesmente: — perdi  os  sentidos. — 
Mas  não  era  assim  que  se  dizia  então  nos  conventos  e  trata-se 
de  uma  d'aquellas  «suspensões  dos  sentidos»,  d'aquelles  «ra- 
ptos e  extasis»  tão  vulgares  na  chronica  conventual. 

«...  que  de  todo  a  tinha  alienado  dos  sentidos» — diz  em 
caso  semelhante  Fr.  António  d'Almada. 


259 


tia-me  bem,  flnalmente,  por  ver  cessar  de  flagel- 
lar-me  a  alma  a  dor  da  tua  ausência. 

Depois  d'estes  abalos  tenho  soffrido  muitas  en- 
fermidades S  mas  posso  eu  viver  sem  males  em 
tanto  que  não  te  vir? 

Supporto-os  sem  murmurar  pois  que  de  ti  pro- 
vêem. 

Coitada  de  mim !  é  esta  a  recompensa  que  me  dás 
de  te  haver  tão  carinhosamente  amado? 

Não  importa. 

Estou  decidida  a  adorar-te  toda  a  vida  e  a  não 
querer  a  mais  ninguém. 

Digo-te  que  farás  bem,  egualmente,  em  não  amar 
outra. 

Porventura  poderia  contentar- te  uma  paixão  me- 
nos ardente  do  que  a  minha? 

Encontrarias  talvez  mais  formusura, — e  comtudo 
dizias-me  outr'ora  que  eu  era  bonita, — mas  não  en- 
contrarias, nunca,  tanto  amor. . .  e  tudo  o  mais  é 
nada. 

Não  enchas  as  tuas  cartas  de  coisas  inúteis,  e  não 
me  digas  mais  que  me  lembre  de  ti. 

Eu  não  posso  esquecer-te,  e  não  me  esqueço,  tão 
pouco,  de  que  ma  fizeste  esperar  que  virias  passar 
algum  tempo  comigo. 


1  «Après  ces  aceidens,  j'ay  eu  beaucoup  de  diílerentes  in- 
dispositions.» — Traduzíramos : — «indisposições»,  mas  «acha- 
ques», «enfermidades»,  é  que  são  as  palavras  usadas  eeonsa- 
gradas  na  linguagem  conventual,  bem  como  «abalos.» 

17* 


260 


Ai  porque  não  queres  tu  passar  comigo  toda  a 
tua  vidaf 

Podesse  eu  sahir  d'este  aborrecido  convento,  que 
não  esperaria  em  Portugal,  não,  que  se  cumprissem 
as  tuas  promessas ! .  • . 

Iria,  sem  escrúpulos,  procurar-te  e  seguir-te  e 
amar-te  por  toda  a  parte. 

Não  ouso  mesmo  pensar  que  fosse  possível. 

Não  quero  nutrir  uma  esperança  que  me  daria 
algum  allivio,  e  não  quero  entregar-me  senão  ás 
penas  d'este  infortúnio. 

Confesso -te,  porém,  que  a  occasião  que  meu  ir- 
mão me  proporcionou  de  te  escrever  me  fez  um 
alvoroço  alegre  e  suspendeu  por  um  momento  o 
desespero  em  que  vivo.* 


1  O  sr.  Theophilo  Braga  reconstroe  assim  a  passagem :  «No 
meio  da  sua  aíllição  todos  conheciam  que  aquella  paixão  a 
matava;  foi  desde  esse  instante  que  sua  mãe  lhe  fallou  com 
bondade;  disseram-lhe  que  escrevesse  ao  coide . . .  N'aquelle- 
tempo  não  havia  as  communicações  do  correio ;  as  cartas  iam 
por  mão  própria.  O  irmão  offereceií-se-Ihe  para  fazer  chegar  ás- 
mãos  de  Chamilly  uma  carta.»  Ora  além  de  que  não  é  isto  que 
as  cartas  dizem,  não  poderia  ser  realmente  o  que  acontecesse, 
Marianna  allude  mesmo  ás  perseguições  que  soífreu  dafamilia 
por  causa  do  que  esta  julgaria  então,  apenas,  se  não  ficou  jul- 
gando sempre,  um  simples  galanteio.  O  próprio  escriptor  sup- 
põe  que  Chamilly  tivesse  partido  porque  «temeria  também  o 
punhal  dos  Alcoforados»  que  aliás  usavam  espada  e  não  pu- 
nhal. Como  podemos  suppor  que  alguém,  e  muito  particular- 
mente a  família,  o  irmão,  não  o  Miguel,  mas  o  Balthazar  Vaz, 
concorresse  directa  e  conscientemente  para  alimentar  aquella 


261 


Gonjuro-te  que  me  digas  porque  te  empenhaste 
em  enfeitiçar-me  tanto,  sabendo  bem  que  terias  de 
abandonar-me  um  dia? 

Ai,  porque  tanto  te  encarniçaste  em  fazer-me  des- 
graçada? 

Porque  não  me  deixaste  tranquilla  no  meu  con- 
vento? 

Fizera-te  eu  algum  mal? 

Mas  perdoa,  meu  amor. 

De  nada  te  culpo. 

Nem  estou  em  condição  de  tirar  vingança  de  ti, 
e  accuso  somente  o  rigor  do  meu  destino. 

Também...  separando-nos,  parece-me  que  nos 
fez  todo  o  mal  que  poderíamos  receiar  d'elle. 

Não  conseguirá  separar  os  nossos  corações: — o 
amor  que  pode  mais  do  que  elle  uniu-os  para  toda 
a  vida.* 


paixão  sacrílega  da  religiosa?  Das  Cartas  vemos  que  Marianna 
sabia  bem  para  onde  e  como  havia  de  escrever.  O  tenente  da 
companhia  de  Chamiljy  e  outros  officiaes  francezes,  iam  falar- 
Ihe  d'elle  e  offereciaiii-lhe,  quando  partiam  os  seus  serviços. 
A  nossa  hypothese  parece-nos  mais  verosimil.  Balthazar  Alco- 
forado, official  também,  dar-se-hia  naturalmente  com  Cha- 
milly.  Á  partida  brusca  d'este  encarregar-se-hia  de  lhe  enviar 
quaesquer  eíYeitos.  Em  summa,  inconscientemente  proporcio- 
naria á  irmã  uma  oceasião  de  escrever-lhe  além  das  que  ella 
evidentemente  tinha. 

1  Esta  bella  phrase :  — ^Tamour  qui  est  plus  puissant  que  lui, 
les  a  unis  pour  toute  notre  vie»,— foi  assim  reconstruída  por 
FiHnto: — «que  mais  poderoso  que  o  fado  é  o  deos  Amor  e  elle 
é  quem  nos  uniu  até  á  morte!»  O  «fado»,  o  <Deus  Amor»!... 


262 


Se  algum  interesse  tens  pela  minha,  escreve-me 
muitos  vezes. 

Bem  te  mereço  que  tenhas  algum  cuidado  em  me 
informar  do  estado  do  teu  coração  e  da  tua  vida. 

Ah,  sobretudo . . .  vem  ver-me. 

Adeus:  não  posso  resol ver-me  a  largar  este  pa- 
pel para  que  vá  cahir-te  nas  mãos. 

Quizera  ter  eu  essa  ditai 

Que  loucura  a  minha !  Bem  sei  que  não  é  possí- 
vel. 

Adeus:  não  posso  mais. 

Adeus. 

Ama-me  sempre. 

E  faze  padecer,  mais  ainda,*  a  tua  pobre  Ma- 
rianna. 


II 


O  teu  tenente  acaba  de  dizer-me  que  uma  tor- 
menta te  fizera  arribar  ao  Algarve. 

Beceio  que  tenhas  soíTrido  muito  no  mar,  e  esta 
apprehensão  tão  vivamente  me  absorveu  que  não 
tenho  pensado  em  todas  as  minhas  penas. 


1  Caracteristicamente  conventual,  como  tantas  outras,  esta 
phrase  ou  esta  idéa.  Vide  p.  23S. 

2  É  a  4."  das  edições  anteriores. 


263 


Imaginas  acaso  que  o  teu  tenente  se  interesse^ 
mais  do  que  eu,  no  que  te  succede? 

Porque  está  elle  melhor  informado,  e,  em  summa, 
porque  não  me  tens  escripto? 

Bem  infeliz  sou  se,  para  o  fazer,  não  tens  tido 
occasião  alguma,  desde  que  partiste,  e,  mais  ainda, 
se,  tendo-a,  não  me  escreveste. 

São  desconformes  a  tua  injustiça  e  a  tua  ingra- 
tidão; mais  me  pesara,  porém,  que  ellas  te  acar- 
reassem alguma  desgraça. 

Prefiro  que  fiquem  sem  castigo,  a  que  me  vin- 
guem. 

Resisto  a  todas  as  mostras  que  deveriam  conven- 
cer-me  de  que  não  me  amas,  e  sinto-me  bem  mais 
disposta  a  abandonar-me  cegamente  á  minha  pai- 
xão, do  que  ás  razões  que  me  dás  de  me  lastimar 
da  tua  frieza. 

Quantas  mortificações  me  terias  poupado  se  as 
tuas  maneiras  fossem  tão  remissas  nos  primeiros 
dias  em  que  te  vi,  como  me  teem  parecido  desde 
algum  tempo!. . . 

Mas  quem  não  se  illudira  com  tantos  extremos  e 
quem  os  não  tivera  por  sinceros? 

Quanto  custa  e  tarda  que  nos  resolvamos  a  sus- 
peitar da  lealdade  dos  que  amamos! 

Eu  bem  vejo  que  a  menor  desculpa  te  satisfaz, 
e  sem  que  te  dês  ao  incommodo  de  a  engenhar,  o 
amor  que  te  tenho  serve-te  tão  fielmente  que  nem 
posso  consentir  em  julgar-te  culpado,  senão  para 
gosar  o  ineffavel  prazer  de  te  justificar  eu  própria  I 


264 


Consumiste-me  com  a  porfia  dos  teus  galanteios, 
abrazaste-me  com  os  teus  transportes,  enfeitiçaste- 
me  com  as  tuas  finezas,  renderam-me  os  teus  jura- 
mentos, seduziu  me  a  minha  inclinação  violenta,  e 
as  continuações  destes  princípios  *  tão  ledos  e  tão 
felizes  não  são  mais  do  que  lagrimas,  cançados  sus- 
piros, uma  funesta  morte,  sem  que  eu  possa  encon- 
trar-lhes  remédio! 

Certo,  logrei  não  imaginadas  delicias,  amando-te, 
mas  custam-rae  agora,  bem  desmedidas  penas. 

São  sempre  excessivas  todas  as  moções  que  me 
«ausas. 

Se  tivera  resistido  obstinadamente  ao  teu  amor, 
e  se  te  houvera  dado  qualquer  motivo  de  pezar  e 
de  ciúme  para  mais  te  inflammar  e  prender; — se 
tivesses  notado  em  mim  qualquer  esquivança  artifi- 
ciosa;— se  eu  tivesse  querido,  em  summa,  oppor 
a  minha  razão  à  inclinação  natural  que  para  li  me 
impellia,  e  que  logo  me  fizeste  perceber, — embora 
as  minhas  diligencias  tivessem  sido  inúteis,  sem  du- 
vida;— poderias  então  castigar-me  severamente  e 
abusar  do  teu  poder  sobre  mim,  com  mostras  de 
justiça. 

Mas  pareceras-me  digno  do  meu  amor,  antes  que 
me  houvesses  dito  que  me  amavas,  mostraste-me 
uma  grande  paixão,  senti-me  deslumbrada,  e  aban- 
donei-me  a  amar- te  perdidamente. 


1  «Quão  venturosos  fossem  os  signaes  cl'estes  santos  princí- 
pios..."— (Desposorios  do  Esipirito.) 


263 


Não  estavas  cego,  como  eu:— porque  me  deixaste 
cahir  n'esta  misera  condição  em  que  agora  me  vejo? 

Que  querias  tu  fazer  de  todos  os  meus  enlevos, 
que  não  poderiam  deixar  de  te  ser  importunos  no 
seu  mesmo  exaggero? 

Sabias  perfeitamente  que  não  havias  de  ficar  para 
sempre  em  Portugal. 

Porque  me  quizeste  escolher  para  me  tornar  tão 
desgraçada  ? 

Encontrarias,  sem  duvida,  n'esta  terra  qualquer 
mulher  mais  formosa  com  a  qual  gostasses  os  mes- 
mos prazeres,  pois  que,  somente,  os  grosseiros  pro- 
curavas*;— que  te  amasse  fielmente  emquanto  es- 
tivesses com  ella;— que  o  tempo  podesse  consolar 
da  tua  ausência,  e  que  tivesses  deixado  sem  aleivo- 
sia  e  sem  crueza. 

Este  teu  comportamento  é  mais  de  um  tyranno 
acirrado  em  perseguir-me  do  que  de  um  amante  que 
só  deve  pensar  em  captivar. 

Ai,  porque  tratas  com  tanto  rigor  um  coração 
que  é  teu? 

Vejo  muito  bem  que  és  tão  fácil  em  te  deixares 
mover  contra  mim,  como  eu  o  fui  em  me  deixar 
convencer  em  teu  favor. 

Sem  precisar  valer-me  de  todo  o  meu  amor,  e 
sem  querer  saber  se  terias  feito  por  mim  alguma 
coisa  de  extraordinário,  eu  teria  resistido  facilmente 


1  <f . . .  avee  laquelle  vous  eussiez  eu  autant  de  plaisir,  puis- 
que  vous  n'eii  cherchiez  que  de  grossierso . 


266 


a  muito  melhores  razões  do  que  podem  ser  as  que 
te  moveram  a  deixar-me. 

Ter-me-hiam  parecido  muito  fracas,  e  nenhumas 
haveria  que  tivessem  podido  arrancar-me  de  junto  a  ti. 

Mas  quizeste  aproveitar  os  primeiros  pretextos 
que  se  offereciam  para  voltares  a  França. 

Partia  um  navio. 

Porque  não  o  deixaste  partir? 

Escrevera-te  a  familia. 

Não  sabes  tu  as  perseguições  que  soíTri  dos  meus? 

A  tua  honra  obrigava-te  a  deixar-me. 

Cuidei  eu  da  minha? 

Tinhas  de  ir  servir  o  teu  rei. 

Se  quanto  dizem  d'elle  é  verdade  não  tem  ne- 
cessidade alguma  do  teu  auxilio  e  haver-te-hia  dis- 
pensado d'elle. 

Ai  que  ventura  a  minha  se  juntos  houvéssemos 
passado  a  vida! 

Mas  já  que  era  fatal  que  uma  cruel  ausência  nos 
apartasse,  creio  que  devo  comprazer-me,  ao  me- 
nos, em  não  ter  sido  infiel,  e  não  quizera,  porquanto 
ha  no  mundo,  ter  praticado  uma  acção  tão  negra. 

Gomo  f  pois  conhecestes  o  fundo  do  meu  coração 
e  da  minha  ternura,  e  podeste  resolver-te  a  dei- 
xar-me para  sempre,  e  a  expor-me  aos  terrores  de 
que  não  te  lembres  mais  de  mim . . .  senão  para 
me  sacrificar  a  uma  nova  paixão?! 

Sei  bem  que  te  amo  como  uma  doida. 

Não  me  queixo  comtudo  de  toda  esta  fúria  insana 
do  meu  coração. 


267 


Costumei-me  ás  suas  tribulações,  e  não  poderia 
viver  sem  este  prazer  a  que  me  apego  de  te  amar 
no  meio  de  mil  penas. 

Mas  atormenta-me  sem  cessar  o  enojo  e  o  des- 
gosto que  tenho  por  tudo . . . 

A  minha  familia,  as  minhas  amizades,  este  con- 
vento, tudo  se  me  tornou  insupportavel 

É-me  odioso  quanto  sou  obrigada  a  ver,  quanto 
é  mister  que  eu  faça. 

Tão  ciosa  me  sinto  da  minha  paixão,  que  me 
parece  que  todas  as  minhas  acções,  que  todos  os 
meus  deveres  te  pertencem. 

Sim,  tenho  escrúpulos  em  não  empregar  em  ti 
todos  os  momentos  da  minha  vida. 

Que  faria,  coitada  de  mim,  sem  tanto  ódio  e  sem 
tanto  amor,  quaes  me  enchem  o  coração?! 

Poderia  acaso  sobreviver  ao  que  incessantemente 
me  absorve,  para  levar  uma  vida  tranquilla  e  des- 
cuidada ? 

Ai  que  não  poderia,  não,  conformar-me  com  esse 
vácuo  e  com  essa  indifferença. 

Toda  a  gente  tem  reparado  na  completa  mudança 
do  meu  génio,  das  minhas  maneiras,  da  minha  pes- 
soa. 

Minha  Mãe  falou-me  n'isto,  a  principio  com  aspe- 
resa,  depois  com  algum  carinho.  * 

Nem  sei  o  que  lhe  respondi. 


1 « . . .  ma  Mére, . . . » — a  Mãe  conventual,  a  Madre,  por  exce- 
lência, a  Abbadeça.  Vid.  pag.  218. 


268 


Creio  que  lhe  confessei  tudo. 

As  freiras  mais  severas  compadecem  se  do  meu 
estado.  Move-as  a  uma  certa  contemplação,  a  uma 
certa  piedade  por  mim. 

A  todos  commove  o  meu  amor,  só  tu  persistes 
ii'uma  profunda  indifferença,. . .  sem  me  escreveres 
senão  cartas  frias,  cheias  de  repetições,  metade  do 
papel  em  branco,  dando  grosseiramente  a  conhecer 
que  morres  por  terminal-as . . . 

Dona  Brites  tanto  me  amofinou  n'estes  dias  pas- 
sados, por  me  fazer  sahir  do  quarto,  que  julgando 
distrahir-me  lá  me  levou  a  passeiar  na  varanda 
d'onde  se  vêem  as  portas  de  Mertola'. 


1  Explicámos  já  largamente  esta  passagem.  O  texto  franeez 
é: — «Elle  me  mena  promener  sur  le  balcon  d'ou  Von  voit  Mer- 
tola.» 

Filinto  traduz  :  «me  levou  a  passear  á  varanda  d'onde  se 
avista  Mertola.» 

Sousa  Botelho  —  «levou-me  á  varanda  donde  se  vê  Mertola.» 

Theophilo  Braga  interpreta  (Est.  da  Id.  Med.J: — «no  mi- 
rante do  mosteiro  d'onde  se  avista  Mertola.» 

J.  Ennes,  verte : —  «levou  me  ao  eirado  d'onde  se  avista  Mer- 
tola». 

P.  Chagas,  traduz  também: — «levou-me  á  varanda  d'onde 
se  vê  Mertola»,  mas  foi  o  primeiro  que  observou  que  era  «im- 
possível que  Marianiia  Alcoforado  dissesse  isto.» — De  nenhum 
ponto  de  Beja», — accrescenta, —  «se  vê  Mertola  que  fica  na 
margem  direita  do  Guadiana  a  40  kil.  de  distancia.  E  comtudo 
sente-se  que  a  phrase  não  é  apocrypha,  é  simplesmente  mal  in- 
terpretada. Uma  das  fachadas  do  convento  fica  voltada  para 
o  Guadiana,  e  se  não  fossem  a  distancia  e  as  ondulações  do 


269 


Fui,  e  logo  me  assaltou  uma  lembrança  cruel  que 
me  fez  chorar  todo  o  resto  do  dia. 

Trouxe-me  outra  vez  para  o  quarto,  e  lancei-me 
sobre  a  cama,  reflectindo  nas  poucas  mostras  que 
vejo  de  me  curar  um  dia.  O  que  me  fazem  por  al- 
liviar-me,  acirra  a  minha  dôr,  e  nos  próprios  remé- 
dios acho  razões  particulares  para  me  affligir. 

Vi-te,  por  alli,  passar,  muitas  vezes,  com  ares 
que  me  enfeitiçaram,  e  eslava  n'aquelie  miradouro, 
no  dia  fatal  em  que  comecei  a  sentir  os  primeiros 
eflfeitos  da  minha  desventurada  paixão. 

Parecia-me  quereres  agradar-me,  posto  não  me 
conhecesses  ainda. 

Persuadi-me  que  havias  reparado  em  mim,  entre 
todas  as  minhas  companheiras. 

Imaginei  que  quando  passavas,  estimavas  bem 
que  te  visse  melhor,  e  que  admirasse  a  tua  des- 
tresa  e  o  teu  garbo  quando  fazias  caracolar  o  ca- 
vallo. 

Toda  me  assustava,  se  o  obrigavas  a  fazer  algum 
passo  difficil. 

Emfim,  intimamente  me  interessava  em  todas  as 
tuas  acções. 


terreno,  das  janellas  do  convento  da  Conceição  podia  certa- 
mente ver-se  Mertola.» 

A  observação  abona  o  fino  espirito  litterario  do  illustre  es- 
criptor, — sente-se,  realmente  que  a  phrase  não  é  apocrypha, — 
mas  a  explicação  vimos  já  que  era  outra.  O  que  é  curioso  é 
que  melhor  acertasse  a  traducção  ingleza  de  Bowles: — «on 
ttie  balcony  ichich  looks  totcards  Mertola.» 


270 


Sentia  já  que  não  me  eras  indifferente  e  tomava 
para  mim  quanto  fazias. 

Ai  que  em  demasia  conheces  as  continuações 
d'estes  começos,  e  embora  nada  tenha  a  poupar- 
me,  não  devo  lembrar-fas  com  receio  de  fazer-te 
mais  culpado,  se  é  possivei,  do  que  tens  sido,  e  de 
ter  de  reprehender-me  por  tantas  diligencias  inú- 
teis para  que  me  fosses  fiel. . . 

Não  o  serás,  não! 

Posso  esperar  porventura  das  minhas  cartas  e 
dos  meus  lamentos  o  que  o  meu  amor  e  o  meu 
abandono  não  poderam  contra  a  tua  ingratidão? 

Estou  bem  certa  da  minha  desventura. 

O  teu  comportamento  injusto  não  me  deixa  a  me- 
nor razão  para  d"elle  duvidar,  e  tudo  devo  receiar 
pois  que  me  deixaste. . . 

Acaso  só  para  mim  terás  encantos  e  não  se  ele- 
varão em  ti  outros  olhos? 

Creio  que  me  não  pesará  que  os  sentimentos  de 
outras  justifiquem,  de  algum  modo,  os  meus,  e  vê 
tu  a  contradicção  d'esta  alma!  quereria  que  todas  as 
mulheres  de  França  te  achassem  adorável,  e  que 
nenhuma  te  amasse,  e  que  não  te  agradasse  ne- 
nhuma. 

É  ridícula,  é  impossível  esta  idéa,  sei. 

Mas,  demais  tenho  experimentado  que  não  és  ca- 
paz de  uma  grande  affeição  e  que  poderás  bem  es- 
quecer-me,  sem  nenhum  auxiUo  e  sem  que  te  obri- 
gue a  isso  uma  nova  paixão. 

Talvez  quizesses,  comtudo,  ter  algum  pretexto 


271 


rasoavel.. .  É  verdade  que  eu  seria  mais  desgra- 
çada, mas  tu  serias  menos  criminoso. 

Vejo  que  permanecerás  em  França,  sem  grandes 
prazeres,  n'uma  inteira  liberdade. 

Retem-te  a  fadiga  de  uma  grande  viagem,  al- 
guma pequena  conveniência,  e  o  receio  de  não  po- 
deres corresponder  aos  meus  ardentes  transportes. 

Ai  não  o  receies! 

Contentar-me-hei  em  ver- te  de  tempo  a  tempo, 
e  em  saber  somente  que  estamos  na  mesma  terra. 

Mas  illudo-me  naturalmente,  e  quem  sabe  se  não 
te  haverá  enleado  mais  do  que  as  minhas  finezas, 
o  rigor  e  a  esquivança  d'alguma  outra ! 

Será  possível  que  mais  te  inflammem  os  maus 
tratos  ? 

Antes,  porém,  de  te  empenhares  n'uma  grande 
paixão  pensa  bem  no  excesso  das  minhas  penas,  na 
incerteza  dos  meus  projectos,  na  contradicção  das 
minhas  cartas,  nas  minhas  confianças,  nos  meus 
desesperos,  nas  minhas  saudades,  no  meu  ciúme. . . 

Olha  que  vaes  soffrer  muito  1 

Conjuro-te  que  aprendas  n'este  exemplo  que  te 
estou  dando,  e  que,  ao  menos,  não  te  seja  inútil 
quanto  padeço  por  ti. 

Fizeste-me  ha  cinco  ou  seis  mezes  uma  confissão 
molesta: — disseste-me  muito  francamente  que  ama- 
ras uma  senhora  no  teu  paiz. 

Se  é  ella  quem  te  impede  de  voltar,  dize-m'o, 
sem  escrúpulo,  para  que  eu  não  me  consuma  ainda 
mais. 


272 


Ampara-me  por  ora  um  resto  de  esperança,  e- 
preferira,  se  ella  não  deve  reanimar-me,  perdel-a 
inteiramente  e  perder-me,  eu,  com  ella. 

Manda-me  o  retrato  d'essa  senhora  com  algumas^ 
das  suas  cartas. 

Conta-me  o  que  ella  te  diz. 

Acharei  n'isso,  talvez,  motivos  para  me  consolar 
ou  para  mais  padecer. 

Não  posso  continuar  n'este  estado,  e  não  ha  mu- 
dança que  não  me  seja  benéfica. 

Quereria  possuir  também  o  retrato  de  teu  irmãa 
e  de  tua  cunhada*. 

Tudo  o  que  te  é  alguma  coisa,  me  é  caro.  Sin- 
to-me  inteiramente  devotada  a  quanto  te  respeita. 
Não  me  deixei  nenhuma  disposição  de  mim  pró- 
pria. 

Momentos  ha  em  que  me  parece  que  me  resigna- 
ria até  a  servir  submissamente  a  que  amas. 

Tanto  me  teem  quebrantado  os  teus  maus  tratos 
e  os  teus  desprezos  que  ás  vezes  nem  me  atrevo  a 
pensar  em  que  possa  ter  ciúmes  de  ti,  com  receio 
de  desagradar-te,  e  chego  a  cuidar  que  é  a  maior 
impertinência  d'este  mundo,  permittir-me,  eu,  fa- 
zer-te  censuras. 


1  Hérard  Bouton  e  Catherina  Le  Conte  Nonant.  Lembrare- 
mos que  Hérard  era  governador  de  Dijon  onde  se  organisou. 
no  começo  de  1668  a  expedição  ao  Pranche  Comté,  de  que  já, 
fez  parte  Chamilly,  chegado  de  Portugal. 


273 


Convenço-me  muitas  vezes  de  que  não  devo  ex- 
primir-te  amargamente,  como  faço,  sentimentos  que 
refusas. 

Ha  muito  que  um  oílicial  espera  por  esta  carta. 

Fizera  o  firme  propósito  de  t'a  escrever  por  ma- 
neira que  a  podesses  ler  sem  aborrecimento.  Mas 
bem  extravagante  vae  ella  já;  devo  encerral-a. 

Ai  que  me  não  sinto  com  forças  para  o  fazer.  Pa- 
rece-me  que  te  falo,  quando  estou  escrevendo-te, 
e  que,  de  algum  modo,  estás  commigo. 

A  primeira  que  te  escrever  não  será  tão  extensa 
nem  tão  importuna.  Podes  abril-a,  com  esta  cer- 
teza que  te  dou. 

Seguramente,  não  devo  falar  te  de  uma  paixão 
que  te  desgosta,  e  não  te  falarei  mais  n'ella. 

D'aqui  a  poucos  dias  vae  fazer  um  anno  que  toda 
me  entreguei  a  ti,  sem  recato. 

Muito  ardente  e  muita  sincera  me  parecia  a  tua 
paixão,  nem  por  sombras  poderá  cuidar  que  tanto 
enojo  te  causassem  os  meus  favores  que  te  obri- 
gassem a  fazer  quinhentas  léguas  e  a  expor-te  aos 
perigos  do  mar  para  te  alongares  de  mim. 

De  ninguém  poderia  esperar-se  tal. 

Deverias  lembrar-te  do  meu  pudor,  da  minha 
confusão,  da  minha  vergonha,  mas,  ai  de  mim!  de 
nada  te  lembras  que  possa  a  teu  pesar,  obrigar-le 
a  amar-me. 

O  oíficial  que  deve  levar-te  esta  carta,  pela  quarta 
vez  me  manda  dizer  que  precisa  partir. 

Gomo  está  apressado! 

F.  18 


274 


Abandona,  sem  duvida,  n'esta  terra,  alguma  des- 
graçada!. . . 

Adeus. 

Mais  me  custa  a  fechar  esta  carta,  do  que  te  cus- 
tou deixar-me,  talvez  para  sempre. 

Adeus. 

Não  me  atrevo  a  dar-te  mil  nomes  d'amor,  nem 
a  entregar-me,  sem  constrangimento,  a  todos  os 
meus  Ímpetos. 

Amo-te  mil  vezes  mais  do  que  a  vida  e  mil  ve- 
zes mais  do  que  penso. 

Como  me  és  querido  e  como  me  és  tyranno! 

Não  me  escreves ... 

Não  pude  cohibir-me  de  te  dizer  isto,  outra  vez! 

Vou  recomeçar,  e  o  official  que  se  vá  embora. 

Que  importa?  Que  parta.  . . 

Escrevo  mais  para  mim,  do  que  para  ti. 

Busco  apenas  aliviar  este  coração. 

Também,  o  comprimento  d'esta  carta  vae  met- 
ter-te  medo. . . 

Não  a  lerás. 

Que  fiz  eu  para  ser  tão  desditosa?! 

E  porque  me  envenenaste  assim  a  vida? 

Ah  porque  não  nasceria  eu  bem  longe  d'esta 
terra. 

Adeus;  perdoa-me. 

Não  me  atrevo  já  a  a  pedir-te  que  me  ames. 

Yê  a  que  me  reduziu  o  meu  destino ! . . . 

Adeus. 


275 


III 


Que  será  de  mim?  e  que  queres  tu  que  eu  faça? 

Quão  longe  me  vejo  de  quanto  imaginava ! 

Esperava  que  me  escrevesses  de  todas  as  terras 
por  onde  passasses,  e  que  longas  cartas  eu  contava 
receber ! . . . 

Que  alimentarias  a  minha  paixão  com  a  espe- 
rança de  tornar  a  ver-te! 

Que  uma  absoluta  confiança  na  tua  fidelidade  me 
daria  algum  allivio,  e  que  ficaria  assim,  n'uma  con- 
dição supportavel,  sem  extremas  inquietações. 

Formara  até  uns  leves  projectos  de  pôr  todo  o 
esforço  de  que  fosse  capaz  em  curar-me,  se  po- 
desse  saber  com  toda  a  certeza  que  me  havias  es- 
quecido. 

A  tua  ausência,  alguns  toques  de  devoção,  o  re- 
ceio natural  de  arruinar  inteiramente  a  pouca  saúde 
que  me  resta  com  tantas  vigílias  e  com  tantas  mor- 
tificações, a  escassa  esperança  da  tua  volta^  a  frieza 
do  teu  amor,  os  teus  últimos  adeuses,  a  tua  par- 
tida fundada  em  mal  forjados  pretextos,  mil  outras 
considerações  ainda  que  não  podem  ser  mais  ra- 
soaveis,...  nem  mais  inúteis,  pareciam  offerecer- 
me,  se  o  quizesse,  um  refugio  seguro. 

Não  tendo  emfim  que  batalhar  senão  contra  mim 

18# 


276 


própria,  não  podia,  certo,  desconfiar.de  todas  as 
minhas  fraquezas,  nem  prever  tudo  quando  padeço 
agora. 

Ai  de  mim,  como  sou  digna  de  lastima  por  não 
poder  dividir  comtigo  as  minhas  penas,  e  por  me 
ver  só,  inteiramente  só,  em  tanta  desventura! 

Mata-me  esta  idéa.  Morro  de  terror  ao  pensar 
que  nunca  sentirias  verdadeiramente  o  intimo  en- 
levo dos  nossos  prazeres. 

Ai  simt  conheço  agora  a  falsidade  de  todos  os 
teus  transportes. 

Atraiçoavas-me  todas  as  vezes  que  me  dizias  que 
o  teu  supremo  encanto  era  estar  a  sós  commigo. 

Só  ás  minhas  persiguições  devo  os  teus  arrobos 
e  os  teus  arrebatamentos. 

Fizeras  a  sangue  frio  o  propósito  d'esíe  incêndio 
em  que  me  abrazaste  toda  *. 

Não  consideravas  a  minha  paixão  senão  como 
uma  victoria,  e  o  teu  coração  nunca  foi  profunda- 
mente penetrado  por  ella. 


1  «Em  hiia  parte  diz  :  sempre  o  meu  coração  estáluia  braza 
viva,  &  em  outra  parte :  Dous  annos  ha  que  trago  uma  braza 
viva  no  coração;  aonde  he  de  notar,  que  sendo  o  fogo  em- 
blema do  amor,  não  explica  a  serva  de  Deos  o  seu  aíTeeto  pela 
chamma  de  labareda,  senão  pelo  fogo  da  braza,  porque  a  la- 
bareda o  mesmo  ar  inconstante  que  a  faz  crescer,  a  pode  tam- 
bém apagar,  &  o  amor  a  quem  se  houver  de  dar  titulo  de  fino, 
não  ha  de  ser  labareda,  que  com  qualquer  mudança  de  tempo 
se  possa  apagar;  ha  de  ser  braza  em  quem  o  fogo  continua- 
mente persevere».  Desp.  do  Esp.,  ete. 


277 


Mas  não  és  tu  muito  desgraçado  e  não  terás  bem 
pouca  delicadeza  d'alma  pois  que  não  soubeste  go- 
sar  de  outra  maneira  os  meus  enamorados  enlevos  ? 

E  como,  se  não  fosse  assim,  seria  possível  que 
com  tanto  amor  eu  não  tenha  podido  fazer-te  com- 
pletamente feliz? 

Choro  por  amor  de  ti  as  inexgotaveis  delicias  que 
perdeste. 

Porque  fatalidade  não  quizeste  logral-as?*  Ai, 
que  se  as  conhecesses  verias  que  são  bem  mais 
doces,  sem  duvida,  do  que  a  de  me  haveres  enga- 
nado, e  terias  experimentado  que  se  é  muito  mais 
feliz,  e  que  se  sente  alguma  coisa  mais  deleitosa 
em  amar  violentamente. . . ,  do  que  em  ser  amado. 

Não  sei  nem  o  que  sou,  nem  o  que  faço,  nem  o 
que  desejo. 

Dilaceram-me  mil  commoções  contrarias. 

Pode  imaginar-se  mais  misera  condição? 


iPilinto:  —  «Penoso  estou  (a  teu  respeito)  que  te  não  lo- 
grasses de  infinidade  de  prazeres  que  te  vinhão  á  mão,  se  ama- 
ses  como  devias ...» 

E  Sousa  Botelho,  litteralmente: — «Lamento,  por  amor  de 
ti  somente,  as  deleitações  infinitas  que  perdeste. . .,  porque 
fatalidade  não  quizeste  desfructal-as». 

Lembra-nos  uma  phrase  de  Frei  António  de  Almada,  grande 
doutor  n'estas  finezas:' — «Eis  aqui  como  voava  este  devoto 
espirito . . . ,  mas  como  não  havia  de  andar  alienada  das  crea- 
turas.  . .  húa  alma  que  tão  a  meude  costumava  gostar  as  de- 
licias d'estes  celestes  logros?  Oh  quanto  ganha  quem  assim 
sabe  amar  &  quanto  perde  quem  não  sabe  amar  assim!» 


278 


Amo-te  perdidamente,  e  poupo-me  muito,  talvez, 
nâo  me  atrevendo  a  desejar  que  te  attribulem  os 
mesmos  Ímpetos  de  amor. 

Matar-me-hia,  ou,  se  o  não  fizesse,  morreria  de 
pena  se  me  certificasse  que  não  tinhas  repouso  al- 
gum, que  a  tua  vida  era  só  desespero  e  loucura, 
que  choravas  inconsolavelmente,  e  que  tudo  te  era 
odioso. 

Não  me  dão  as  forças  para  as  minhas  maguas, 
como  poderia  supportar  ainda  as  que  me  dariam 
as  tuas,  mi!  vezes  em  mim  mais  penetrantes? 

Mas  não  posso  também  resolver-me  a  desejar  que 
me  não  tragas  no  pensamento,  e  para  dizer-te  toda 
a  verdade  tenho  um  furioso  ciúme  de  quanto  possa 
dar-te  contentamento,  de  quanto  possa  regalar-te  o 
coração,  de  quanto  possa  comprazer-te  em  França. 

Não  sei  porque  te  escrevo. 

Vejo  bem  que  apenas  terás  compaixão  de  mim, 
e  eu  não  quero  a  tua  compaixão. 

Enojo-me  de  mim  própria  quando  reflicto  em  tudo 
que  te  sacrifiquei. 

Perdi  a  reputação. 

Expuz-me  á  maldição  dos  meus,  á  severidade  das 
leis  d'esta  terra  para  com  as  religiosas,  á  tua  in- 
gratidão, que  m.e  parece  a  maior  das  desgraças. 

E  comtudo  sinto  implacavelmente  que  os  meus 
remorsos  não  são  sinceros,  que  eu  quereria  do 
fundo  d"alma  ter  por  amor  de  ti  affrontado  maiores 
perigos^  e  que  me  assoberba  um  prazer  funesto  em 
ter  aventurado  a  minha  vida  e  a  minha  honra. 


279 


Tudo  quanto  tinha  de  mais  precioso  não  deveria 
pol-o  á  tua  disposição? 

Dize  se  não  devo  sentir-me  bem  satisfeita  por 
tel-o  empregado  como  fiz. 

Parece-me  até  que  ainda  não  estou  contente  com 
as  minhas  penas  e  com  o  excesso  do  meu  amor, 
embora,  coitada  de  mim !  não  possa  fazer  conta  de 
que  esteja  contente  de  ti. 

Vivo. . .,  infiel  que  sou!  e  faço  tanto  para  con- 
servar a  vida  como  para  a  perder. 

Ai,  morro  de  vergonha ! . . .  mas  então  o  meu 
desespero  está  só  nas  minhas  cartas?! 

Se  te  amasse  ^tanto,  tanto  como  te  hei  dito  mil 
vezes,  não  estaria  morta  de  ha  muito? 

Tenho-te  enganado. 

Tu  é  que  deves  queixar-te  de  mim.  Ai,  porque 
não  te  queixas,  meu  amor?! 

Vi-te  partir,  não  posso  esperar  que  te  veja  vol- 
tar, e  comtudo  respiro! 

Atraiçoei-te. 

Imploro-te  que  me  perdões. 

Mas,  não;  não  me  perdoes,  supplico-te. 

Trata-me  duramente. 

Não  te  pareça  que  os  meus  sentimentos  sejam 
bastante  violentos. 

Sê  mais  difficil  de  contentar. 

Dize-me  que  queres  que  eu  morra  de  amor  por  ti. 

Exoro-te  a  que  me  dês  este  soccorro  para  que  eu 
vença  a  fraqueza  do  meu  sexo  e  acabe  com  todas  es- 
tas irresoluções  por  um  acto  de  verdadeiro  desespero. 


280 


Um  fim  trágico  obrigar-te-ha  a  pensar  muitas  ve- 
zes em  mim. 

A  minha  memoria  ser-te-ha  cara,  e  commover- 
te-lia  porventura  esta  morte  extraordinária. 

Não  vale  mais  do  que  o  estado  a  que  me  redu- 
ziste? 

Adeus. 

Como  eu  quizera  nunca  te  haver  visto! 

Triste  de  mim!  que  sinto  vivamente  a  impostura 
d'esta  idéa,  e  conheço,  mal  a  exprimo,  que  estimo 
bem  mais  ser  desventurada,  amando-te,  do  que  não 
te  haver  visto  jamais! 

Resigno-me,  pois,  sem  murmurar,  ao  meu  mau 
destino,  porque  foste  tu  que  não  quizeste  fazel-o 
melhor. 

Adeus.  , 

Promette-me  lastimar-me  carinhosamente  se  eu 
morrer  de  magua,  e  que  ao  menos  a  vehemencia 
da  minha  paixão  te  dê  o  desgosto  e  a  repulsão  de 
tudo. 

Esta  consolação  me  basta,  e  se  é  fatal  que  para 
sempre  te  abandone,  quizera  ao  menos  não  te  dei- 
xar a  outra. 

Não  serias  refinadamente  cruel  se  te  servisses  do 
meu  desespero  para  te  fazeres  mais  amado,  e  para 
te  vangloriares  de  ter  incendido  a  maior  paixão  que 
houve  no  mundo? 

Adeus,  mais  uma  vez. 

Escrevo-te  cartas  muito  longas,  sei. 

Não  tenho  attenção  comtigo. 


284 


Peço -te  que  me  perdões  e  ouso  esperar  que  te- 
rás alguma  indulgência  para  com  uma  pobre  louca, 
que  o  não  era,  sabes  bem!  antes  que  te  amasse. 

Adeus. 

Parece-me  que  te  falo  de  mais  d'este  estado  in- 
supportavel  em  que  me  encontro. 

Mas  agradeço-te,  do  fundo  do  coração,  as  mor- 
tificações qne  me  causas,  e  aborreço  a  tranquilli- 
dade  em  que  vivia  antes  de  conhecerte ^ 

Adeus. 

A  minha  paixão  cresce  okcada  instante. 

Ai,  quantas  cousas  tinha  a  dizer-te  ainda ! 


IV 


Certo,  que  é  uma  grande  violência  que  faço  aos 
sentimentos  do  meu  coração,  diligenciar  ainda,  es- 
crevendo-te,  fazer-t'os  comprehender. 

Gomo  eu  fora  feliz  se  bem  os  podesses  avaliar 
pela  vehemencia  dos  teus! 

Mas  não  posso  fiar-me  em  ti,  e  não  posso  tam- 
bém deixar  de  dizer-te,  bem  menos  vivamente  do 


1  — < . . .  porque  o  mortificar-se  era  gosto  para  seu  coração, 
&  o  padecer,  allivio  para  a  sua  alma«.  Desp.  do  Esp.,  ete. 

2  É  a  2.^  das  outras  edições. 


282 


que  sinto,  que  não  devias  mortificar-me  tanto,  com 
este  esquecimento  que  me  enlouquece  e  que  é  até 
uma  vergonha  para  ti. 

É  muito  justo,  ao  menos,  que  atures  os  lamen- 
tos d'esta  desolação  que  eu  previ  logo,  vendo-te  re- 
solvido a  deixar-me. 

Sei  muito  bem  que  me  illudi  pensando  que  te- 
rias para  commigo  um  proceder  mais  leal  do  que  é 
costume,  porque,  em  summa,  o  excesso  do  meu 
amor  parece  que  me  devera  pôr  acima  de  todas  e 
quaesquer  suspeitas  e  que  merecia  mais  fidelidade 
que  a  de  ordinário  se  encontra. 

Mas  a  disposição  em  que  estavas  de  me  trahir, 
venceu  a  justiça  que  devias  a  quanto  fiz  por  ti. 

Não  deixaria  de  ser  malaventurada  se  me  amas- 
ses apenas  por  eu  te  amar. 

Quizera  dever  tudo,  somente,  á  tua  expontânea 
inclinação. 

Mas  como  estou  longe  d'isto,  que  até  são  passa- 
dos seis  mezes  sem  receber  de  ti  uma  só  carta ! 

Attribuo  todos  estes  infortúnios  á  cegueira  com 
que  me  abandonei  a  amar-te. 

Não  devera  prever  que  as  minhas  deleitações 
acabariam  mais  cedo  do  que  o  meu  amor? 

Poderia  esperar  que  ficasses  toda  a  vida  em  Por- 
tugal e  que  renunciasses  á  tua  fortuna  e  *io  teu 
paiz  para  só  cuidares  em  mim? 

As  minhas  penas  não  podem  ler  allivio,  e  a  lem- 
brança de  quanto  gosei  enche-me  agora  de  deses- 
pero. 


283 


Pois  todos  os  meus  anhelos  serão  malogrados,  e 
nunca  mais  te  verei  no  meu  quarto,  em  todo  aquelle 
ardor,  com  todo  aquelle  arrebatamento  que  mos- 
travas?! 

Coitada  de  mim  que  me  illudo,  e  que  demais  co- 
nheço agora  que  todos  aquelles  enlevos  que  me  ene- 
briavam  a  cabeça  e  o  coração  eram  em  ti  apenas 
excitados  por  alguns  prazeres,  e  logo  se  extinguiam 
com  elles. 

Fora  necessário  que  n'esses  momentos  de  su- 
prema felicidade,  eu  podesse  implorar  em  meu  soc- 
corro  a  razão  para  moderar  o  funesto  excesso  das 
minhas  delicias  e  para  que  me  fizesse  antever  quanto 
padeço  agora. 

Mas  entregava-me  toda,  a  ti,  meu  amor,  e  não 
me  achava  em  condição  de  cuidar  no  que  teria  de 
envenenar  o  meu  contentamento,  quando  gostava 
plenamente  as  mostras  ardentes  da  tua  paixão. 

Deleitava-me  muito  sentir-te  commigo  para  que 
pensasse  em  que  um  dia  te  apartarias  de  mim. 

Lembra-me,  comtudo,  de  te  haver  dito  algumas 
vezes  que  me  fazias  desgraçada,  mas  estes  terro- 
res desvaneciam-se,  rápidos,  e  sentia  gosto  em  sa- 
crificar-fos,  abandonando  me  ao  encanto  e  á  alei- 
vosia  dos  teus  protestos. 

Vejo  claramente  qual  poderia  ser  o  remédio  para 
todas  as  minhas  penas. 

D'ellas  me  livrara,  logo  que  deixasse  de  te  amar. 
Mas  ai  de  mim!  que  remédio!. . . 

Não.  Prefiro  sofifrer  mais  ainda  do  que  esquecer-te. 


284 


E  depende  isto  de  mim? 

Se  nem  posso  reprehender-me  de  ter  imaginado, 
um  momento  que  fosse,  não  continuar  a  amar-te  I... 

Que  ainda  mais  digno  de  dó  és  tu,  do  que  eu, 
porque  mais  vale  penar  quanto  soffro,  do  que  go- 
sar  os  languidos  prazeres  que  hão  de  dar-le  as  tuas 
amantes  de  França. 

Não  invejo  a  tua  indifferença,  e  fazes-me  lastima. 

Desafio-te  a  esquecer-me  inteiramente. 

Prézo-me  de  te  haver  posto  em  estado  de  não  te- 
res, sem  mim,  senão  prazeres  imperfeitos,  e  sou 
mais  feliz  do  que  tu  porque  mais  occupada  ando 
d'este  amor. 

Fizeram-me,  ha  pouco,  porteira  do  convento. 

Todas  as  pessoas  que  me  falam,  julgam-me  louca. 
Não  sei  o  que  lhes  respondo,  e  é  necesario  que  as 
freiras  estejam  tão  doidas  como  eu  para  me  julga- 
rem capaz  d'algum  emprego. 

Gomo  invejo  a  sorte  de  Manoel  e  de  Francis- 
co!... * 

Porque  não  estou  eu,  como  elles,  sempre  com- 
tigo? 

Haver-te-hia  seguido,  e  certo,  haver-te-hia  ser- 
vido mais  extremosamente. 


1  — «Deux  petits  laquais  Portugais»  —  notam  as  primeiras 
edições.  No  termo  de  dotação  para  clérigo,  de  Balthasar  Al- 
coforado, em  1669,  e  no  testamento  de  Peregrina  em  1676, 
appareee  como  testemunha  um  Manoel  Jorge,  creaio  d'aquelle 
e  depois  de  Miguel  da  Cunha  Alcoforado. 


285 


Nada  appeteço  n'esle  mundo,  senão  ver-te. 

Ao  menos,  lembra-te  de  mim. 

Contento-me  com  a  tua  lembrança,  mas  nem  te- 
nho a  certeza  delia! 

Não  limitava  a  tão  pouco  as  minhas  esperanças, 
quando  te  via  todos  os  dias,. . .  ensinaste-me  bera 
a  submetter-me  a  tudo  quanto  queres. 

Não  me  arrependo,  comtudo,  de  te  haver  ado- 
rado. 

Regala-me  que  me  seduzisses.* 

A  tua  ausência  rigorosa,  talvez  eterna,  não  di- 
minue  em  nada  a  violência  do  meu  amor. 

Quero  que  toda  a  gente  o  saiba;  Ucío  faço  d'elle 
mysterio;  preso-me  de  ter  feito  tudo  o  que  fiz,  por 
ti,  contra  toda  a  espécie  de  decoro.^ 


1  Heloísa,  a  abbadessa  do  Paracleto,  escrevia  também : — 
«Pour  moi,  qui  ai  trouvé  tant  de  plaisir  àvous  aimer,  je  sens 
bien.  malgré  moi,  queje  ne  pour r ai  jamais  me  repentir  de  1'avois 
gonté,  ni  cesser  d'en  jouir  autant  qu'il  m'est  possible,  en  les 
rappelant  dans  ma  mémoire. . . 

«Dans  le  lieux  les  plus  saints,  jusqu'aux  pieds  des  autels, 
je  porte  le  souvenir  criminei  de  nos  plaisirs  passes,  j'en  fais 
toujours  mon  occiípation,  et  loin  de  gémir  de  m'ètre  laissée  sé- 
duire,  je  soupire  de  les  avoir  perdus ...» 

2  Vid.  nota  anterior  a  respeito  de  Heloísa, 

E  Marianna  da  Purificação,  a  mystica  contemporânea  da 
Alcoforado;  escrevia:  —  «He  tão  grande  o  fogo  que  arde  em 
meu  peito,  que  me  parece  me  sinto  estar  ardendo,  sem  poder 
valer-me,  e  desejo  deitar  de  mim  todas  as  roupas,  e  assim  ando 
adyando,  e  desejando  voar  por  esse  mundo  a  apregoar  este 
amor,  que  com  tanta  força  arde  em  meu  peito  e  coração». 


286 


Em  nada  mais  faço  consistir  a  minha  honra  e  a 
minha  religião  do  que  em  amar-te  perdidamente, 
toda  vida,  já  que  comecei  a  amar-te. 

Não  te  digo  estas  coisas  para  te  obrigar  a  escre- 
ver-me. 

Ai  não  te  constranjas! 

Não  quero  de  ti  senão  o  que  expontaneamente 
venha,  e  regeito  todas,  todas,  as  mostras  de  amor 
a  que  possas  escusar- te. 

Sentirei  gosto  em  desculpar-te  porque  talvez  te- 
nhas prazer  em  não  te  dares  ao  incommodo  de  es- 
crever-me,  e  sinto  uma  profunda  disposição  para 
te  perdoar  todas  as  faltas.* 

Um  oílicial  francez  teve  a  caridade  de  me  falar, 
esta  manhã,  de  ti,  por  mais  de  três  horas. 

Disse-me  que  a  paz  de  França  estava  feita. ^ 

Sendo  assim  não  poderias  vir  ver-me,  e  levar-me 
para  França? 

Mas  não  o  mereço.  Faze  o  que  te  aprouver. 

O  meu  amor  não  depende  já  da  maneira  por  que 
me  tratares. 

Desde  que  partiste  não  tive  um  só  momento  de 
saúde,  nem  sinto  allivio  senão  em  repetir  o  teu  nome 
mil  vezes  ao  dia.^ 


1  Andava  já  aquella  alma  tão  cheia  de  desejos  de  padecer 
que  o  achar  que  padecer  era  ter  de  que  gostar.  Desp.  do  Esp. 

2  A  que  pôz  termo  á  guerra  da  devolução,  e  foi  sanecionada 
pelo  tratado  de  2  de  maio  de  1668. 

3  — «Filha,  a  tua  enfermidade  não  a  sabem  curar  as  creatu- 
ras,  eu  só  te  posso  curar». — Callemos  agora  aqui  outras  pa- 


287 


Algumas  freiras  que  sabem  o  estado  lastimoso 
era  que  me  lançaste,  falam-me  de  ti  muitas  vezes. 

Saio  o  menos  possível  do  meu  quarto  •  onde  tan- 
tas vezes  viesie,  e  estou  sempre  a  contemplar  o 
teu  retrato  que  me  é  mil  vezes  mais  querido  do 
que  a  vida. 

Dá-me  isto  algum  allivio  mas  dá-me  também  muita 
magoa,  quando  penso  que  talvez  não  te  veja  mais. 

Como  será  possível  que  não  torne  a  ver-te  ?! 

Abandonar-me-hias  para  sempre? 

Mata-me  esta  idéa. 

A  tua  pobre  Marianna  não  pode  mais. 

Sinto-me  desfallecer  ao  acabar  esta  carta. 

Adeus.  Adeus. 

Tem  piedade  de  mim. 


lavas,  que  o  Divino  Amante  lhe  disse,  que  como  se  escreve 
isto  para  os  olhos  de  todos  não  é  razão  esponhamos  a  que  in- 
terprete mal  as  palavras  de  Deus  algum  entendimento  menos 
versado  nas  coisas  do  espirito.  Concluiu  o  Senhor  a  sua  pra- 
tica, declarando  á  serva:  Que  aquella  doença  que  padecia, 
era  força  &  eífeito  de  amor.  Não  vês  (foram  as  ultimas  razões) 
que  te  feri  hum  dia  de  amor  &  causou  em  ti  tal  eífeito  que 
bastou  para  enfermarte?»  Desp.  do  Esp. 

1  O  texto  francez  diz  sempre  chambre.  Filinto  tem  o  cuidado 
de  traduzir  umas  vezes  quarto  e  outras  aposento.  Sousa  Bo- 
telho começa  a  traduzir  cella,  e  o  erro — porque  realmente  o 
é, — generalisou-se.  Se  a  religiosa  tivesse  escripto  cella,  o  tra- 
ductor  francez  saberia  encontrar  o  correspondente  exacto. 
Como  já  expozemos  atraz,  as  Alcoforados  não  tinham  cellas 
tinham  casas. 


288 


Escrevo-lhe  pela  ultima  vez  e  espero  fazer-lhe 
perceber  na  differença  dos  termos  e  na  maneira 
d'esta  carta/  que  logrou  convencer-me,  finalmente, 
de  que  não  me  amava  já,  e  que  assim,  também, 
devo  deixar  de  o  amar. 

Enviar-lhe-hei,  pois,  pelo  primeiro  portador  que 
haja,  quanto  de  si  me  resta. 

Não  receie  que  lhe  torne  a  escrever. 

Nem  serei  eu  quem  escreva  o  seu  nome  na  en- 
commenda. 

Encarreguei  de  tudo  D.  Brites. 

A  bem  diíferentes  confidencias  a  habituara  eu... 

Os  cuidados  d'ella  ser-me-hão  menos  suspeitos 
do  que  os  meus. 

Ella  tomará  as  precauções  necessárias  para  que 
eu  fique  certa  de  que  o  senhor  recebeu  o  retrato  e 
as  pulseiras  que  me  dera. 

Quero  porém  que  saiba  que  me  sinto  ha  dias 
perfeitamente  disposta  a  queimar  e  a  despedaçar 


1  Vid.  pag.  245  e  respectiva  nota  acerca  do  tratamento  ado- 
ptado. 


289 


todos  os  penhores  do  seu  amor,  que  tão  queridos 
me  eram. 

Tenho-lhe  revelado  tanta  fraqueza  que  natural- 
mente não  acreditara  que  eu  podesse  tornar-me 
capaz  d'esse  extremo,  não  é  verdade? 

Prefiro  pois  gcstar  toda  a  peoa  que  tive  em  se- 
parar-me  d'elles,  e  fazer-lhe  sentir,  ao  menos,  este 
pequeno  despeito. 

Confesso-lhe,  para  vergonha  minha  e  sua,  que 
me  achei  mais  presa,  do  que  quero  contar-lhe,  a 
estas  bagatellas,  e  que  senti  que  me  eram  nova- 
mente precisas  todas  as  minhas  reflexões  para  me 
separar  de  cada  objecto,  quando  mesmo,  me  com- 
prazia de  não  me|importar  já  comsigo.* 

Mas,  em  summa,  com  tão  boas  razões  como  as 
que  lhe  devo,  consegue-se  sempre  chegar  ao  cabo 
do  que  se  quer. . . 

Puz  tu  do  nas  mãos  de  Dona  Brites.  Quantas  la- 
grimas me  custou  isto ! . . . 

Depois  de  mil  penas  e  mil  contradições,  que  não 


1  O  texto  francez  diz : — «Je  vous  avoíie  à  ma  houte  &  à  la 
vôtre,  que  je  me  suis  trouvée  plus  attachée  que  je  ne  veux 
vous  le  dire  à  ces  bagatelles»,  etc. 

Filinto  traduz: — «Com  vergonha  minha  t'o  confesso,  que 
me  sinto,  mais  do  que  eu  quizera,  aífeiçoada  a  essas  ninha- 
rias, e  que  precisava  de  todas  as  mingas  reflexões,  para  me 
descartar  d'ellas  uma  por  uma  no  instante  mesmo  em  que  eu 
me  dava  por  desnamorada  de  ti». 

Será  castiço  e  galante,  mas  advinha-se  a  pitada  de  rapé  fun- 
gada pachorrentamente  pelo  purista,  torneando  o  periodo. 

F.  19 


290 


imagina  e  de  que  certamente  não  lhe  darei  conta, 
exorei  d'esta  que  não  me  falasse  mais  n'aquelles 
objectos,  que  m'os  não  tornasse  a  dar,  ainda  que 
eu  liie  pedisse  para  os  contemplar  outra  vez,  e  que, 
emfim,  llios  enviasse  sem  me  prevenir  sequer. 

Não  conheci  bem  o  excesso  do  meu  amor  senão 
quando  quiz  empregar  todas  as  diligencias  para  me 
curar  d'elle,  e  creio  que  nem  ousaria  tental-o  se  ti- 
vesse podido  prever  tantas  difficuldades  e  tamanha 
violência. 

Estou  convencida  que  sentiria  moções  menos  pe- 
nosas, amando-o,  ingrato  como  é,  do  que  deixan- 
do-o  para  sempre. 

Vi  que  me  era  menos  caro  do  que  a  minha  pai- 
xão, e  tive  magoas  desconformes  em  combatel-a, 
depois  aiiída  que  os  ruins  procedimentos  do  senhor 
o  tornaram  para  mim  odioso. 

O  orgulho  natural  do  meu  sexo  não  me  ajudou  a 
tomar  quaesquer  resoluções  contra  si. 

Triste  de  mim  í 

Soffri  os  seus  despresos;  houvera  supportado  a 
sua  aversão ;  devorara  commigo  o  ciúme  que  me 
tivesse  inspirado  a  sua  aíTeição  por  outra. 

Ao  menos,  sentir-me-hia  aíTrontada  por  um  sen- 
timento vivo! . . . 

Mas  a  sua  indifferença  é-me  insupportavel. 

Os  seus  impertinentes  protestos  de  amizade,  e 
as  ridículas  finezas  da  sua  ultima  carta,  fizeram- 
me  ver  que  o  senhor  recebera  todas  as  que  lhe  es- 
crevi, e  que  nenhuma  impressão  lhe  causaram. 


291 


E. . .  leu-as.  . . 

Ingrato ! 

Muito  doida  sou  em  amofinar-me  ainda  por  não 
poder  regosijar-me  de  que  não  lhes  tivessem  che- 
gada ás  mãos;  de  que  não  lh'as  tivessem  entregue! 

Abomino  a  sua  franqueza.* 

Pedi-lhe  porventura  que  me  dissesse  sinceramente 
a  verdade? 

Porque  não  havia  de  deixar-me  a  minha  paixão?! 

Bastava  que  me  não  escrevesse. 

Não  me  era  suíTiciente  a  desgraça  de  não  ter  po- 
dido obrigal-o  a  ter  algum  trabalho  em  enganar- 
me,. . .  e  de  já  não  poder  desculpal-o?. . . 

Saiba  que  me  convenço  de  que  é  indigno  de  to- 
dos os  meus  sentimentos,  e  que  agora  conheço  to- 
das as  suas  ruins  quahdades. 

Mas  se  quanto  fiz  pelo  senhor  pode  merecer-lhe 
que  tenha  alguma  consideração  pelos  favores  que 
lhe  peça,  imploro  lhe  que  não  torne  a  escrever-me, 
6  que  me  ajude  a  esqudcel-o  inteiramente. 


1  O  texto  franeez  diz :  « Je  deteste  votre  bonne  foi,  vous 
avois  je  prié  de  me  mander  sincerement  la  verité,  que  ne  me 
laissiez  vous  ma  passion»,  etc. 

Filinto  que  conhecia  mais  as  finezas  do  estylo  do  que  as 
do  amor,  traduziu  desleixadamente  : 

«A  tua  boa  fé  I  E  oh  quanto  a  detesto  eu !  O  que  eu  só  te 
pedia  era  que  me  escrevesses  com  sinceridade.  Porque  me  não 
deixavas  entregue  ao  meu  aífecto?» 

Um  disparate.  Melhor  comprehendeu  Sousa  Botelho : 

«Detesto  a  tua  lhaneza...  Porventura  tinha-te  pedido  de 
me  participares  singelamente  a  verdade  ? . . . » 

19# 


292 


Se  mostrasse,  frouxamente  que  fosse,  que  tivera 
algum  pesar  em  ler  esta  carta, . . .  poderia  talvez 
acredital-ol. . . 

Talvez  também  a  sua  confissão  e  o  seu  contricto 
abalo  me  fizessem  pena  e  me  incitassem,. . .  e  tudo 
poderia  inflammar-me  de  novo. 

Por  piedade  lhe  peço  que  não  se  importe  cora  a 
minha  vida.  Destruiria,  sem  duvida,  todos  os  meus 
projectos,  de  qualquer  forma  que  quizesse  intro- 
metter-se  n'ella. 

Não  quero  saber  o  resultado  d'esta  carta.  Não 
perturbe  o  estado  que  me  preparo. 

Parece-me  que  pode  dar-se  por  satisfeito  com  os 
males  que  me  causou,  fosse  qual  fosse  o  intento 
que  formara  de  me  desgraçar. 

Não  me  arranque  á  minha  incerteza.  Espero  fa- 
zer d'ella,  com  o  tempo,  alguma  coisa  parecida  com 
a  paz  do  coração. 

Prometto-lhe  não  o  odear.  Desconfio  muito  de 
sentimentos  violentos  para  que  me  aventure  a  esse. 

Não  duvido  de  que  encontrasse  n'esta  terra  um 
amado  mais  fiel,...  mas  quem  poderá  fazer-me 
amar?! 

Poderá  acaso  enlevar-me  a  paixão  de  outro  ho- 
mem? Que  poude  no  senhor  a  minha?. . . 

Não  experimentei  já  que  um  coração  amante  nunca 
pode  esquecer  o  que  primeiro  lhe  revelou  os  trans- 
portes de  que  era  susceptível  e  que  não  conhecia? 
—  que  todas  as  suas  intimas  moções  ficam  enlea- 
das no  Ídolo  que  para  si  creou? — que  as  suas  pri- 


293 


meiras  idéas  e  que  as  suas  primeiras  feridas  não 
podem  curar- se  e  esquecer? — que  todas  as  paixões 
que  se  oíTereçam  em  seu  soccorro  e  que  forcejem 
por  enchel-o  e  reanimal-o,  lhe  promettem  vãmente 
uma  sensibilidade  que  elle  não  pode  rehaver  mais? 
— que  todas  as  deleitações  que  busca,  sem  nenhum 
desejo  de  as  encontrar,  servem  apenas  para  fazer- 
Ihe  sentir  profundamente  que  nada  é  tão  caro  co- 
mo a  lembrança  das  suas  penas  ?f 

Porque  me  fez  conhecer  a  imperfeição  e  os  amar- 
gores de  um  affecto  que  não  deve  durar  eternamen- 
te, e  os  tormentos  que  acompanham  um  amor  vio- 
lento quando  não  é  reciproco? 

E  porque  é  que  uma  inclinação  cega  e  um  destino 
cruel  se  afervoram  de  ordinário  em  determinar-nos 
por  aquelles  que  só  a  outras  seriam  sensíveis? 

Quando  mesmo  podesse  esperar  qualquer  recrea- 
ção em  novas  relações,  e  que  encontrasse  um  co- 
ração leal  que  me  quizesse,  tenho  tanto  dó  de  mim 
própria  que  sentiria  grandes  escrúpulos  em  lançar 
o  homem  mais  infimo  no  estado  a  que  o  senhor  me 
reduziu . . . 

E  embora  não  tenha  que  lhe  guardar  respeitos, 
não  poderia  resolver-me  a  uma  desforra  tão  crua, 
quando  mesmo  ella  dependesse  de  mim,  por  uma 
mudança  que  não  prevejo. 

Procuro  n'este  momento  desculpal-o,  e  compre- 
hendo  bem  que  uma  freira  não  é  nada  amável,  de 
ordinário. 

Parece-me  comtudo  que  se  os  homens  podessem 


294 


ter  mão  na  razão  quando  escolhem  os  seus  amores, 
mais  se  inclinariam  a  ellas  do  que  ás  outras  mu- 
lheres. 

Nada  as  impede  de  pensar  incessantemente  na 
sua  paixão;  não  as  distrahem  mil  coisas  que  no  sé- 
culo absorvem  e  consomem  os  corações. 

Quer-me  parecer  que  não  será  muito  agradável 
ver  as  amadas,  sempre  dislrahidas  por  mil  frivo- 
lidades, e  é  preciso  ter  bem  pouca  dehcadeza  de 
alma  para  soíTrer  sem  raiva  que  ellas  não  falem  se- 
não de  reuniões,  de  atavios,  de  passeios. 

Està-se,  sem  cessar,  exposto  a  novos  ciúmes, 
porque,  emfim,  ellas  são  obrigadas  a  attenções,  a 
complacências,  a  conversas  com  todos. 

Quem  pode  assegurar  que  não  sintam  prazer  al- 
gum em  todos  esses  lances,  ou  que  soffram  sem- 
pre desgostosas  e  de  má  vontade  os  maridos?!... 

Ah!  como  ellas  devem  também  desconfiar  de  um 
amante  que  não  lhes  toma  conta  rigorosa  de  tudo, 
e  que  acredita,  facilmente  e  sem  mquietação,  o  que 
lhes  dizem; — que  tranquilla  e  confiadamente  as  vê 
sujeitas  a  todos  aquelles  deveres  da  sociedade! 

Mas  não  intento  provar-lhe  com  boas  razões  que 
deveria  amar-me.  Péssimos  meios  são,  e  bem  me- 
lhores empreguei  eu  que  não  me  aproveitaram!... 

Conheço  muito  bem  o  meu  destino  para  diligen- 
ciar vencel-o. 

Serei  infeliz  toda  a  minha  vida. 

Não  o  era  já  quando  todos  os  dias  o  via? 

Morria  de  susto  de  que  não  me  fosse  fiel. 


295 


Queria  vel-o,  todos  os  momentos,  e  não  era  pos- 
sível. 

Atribulava-me  o  perigo  que  o  senhor  corria  en- 
trando no  convento. 

Não  vivia  quando  estava  na  guerra. 

Desesperava-me  por  não  ser  mais  formosa  e  mais 
digno  do  senhor. 

Murmurava  da  modéstia  da  minha  condição. 

Receiava  muitos  vezes  que  a  affeição  que  parecia 
ter  por  mim  podesse  de  algum  modo  prejudical-o.* 

Parecia-me  que  o  não  amava  bastante. 

Atemorisava-me,  por  si,  a  cólera  dos  meus  pa- 
rentes. 

Estava,  emfim,  n'um  estado  tão  lamentoso  como 
aquelle  em  que  hoje  vivo. 

Se  me  tivesse  dado  algumas  provas  da  sua  pai- 
xão depois  que  se  foi  de  Portugal,  teria  eu  feito  to- 
dos os  esforços  por  sahir  d'aqui. 


1  As  phrases  francezas  são : 

— nje  murmurais  contre  la  médiocrité  de  ma  condition;  je 
croyais  souvent  que  Tattachement,  que  vous  paraissiez  avoir 
pour  moi,  vous  potirrait  faire  quelque  íort». 

Filinto  Elysio  traduziu: — «murmurava  da  minha  mediana 
fidalguia,  dava-me  temores  crer  que  te  seria  nociva  a  affeição 
que  me  mostravas  t,  ] 

Sousa  Botelho  interpretou: — «murmurava  contra  a  medio- 
cridade da  minha  tondição ;  imaginava  muitas  vezes  que  o  amor 
(jue  parecias  ter  por  mim  poderia  de  algum  modo  prejudicai'- 
teo. 

E  o  sr.  Theophilo  Braga: — «Eu  murmurava  contra  a  me- 
diocridade da  minha  condição,  julgava  muitas  vezes  que  a  af- 


296 


Ter-me-hia  disfarçado  para  ir  ter  com  o  senhor. 

Ai,  que  teria  sido  de  mim  se  não  se  tivesse  im- 
portado commigo  quando  eu  chegasse  a  França!... 

Que  escândalo!  que  desatino!  que  cumulo  de 
vergonha  para  a  minha  família,  que  me  é  tão  cara 
depois  que  o  não  amo,  ao  senhor! 

Já  vê  que  a  sangue  frio  conheço  como  era  pos- 
sível ser  ainda  mais  desgraçada  do  que  me  fez! 

Falo-lhe  razoavelmente;  ao  menos,  uma  vez  na 
vida. 

Como  deve  agradar-lhe  esta  moderação ! . . . 

Como  deve  agora  ficar  contente  commigo!.. . 

Não  quero  sabel-o. 

Pedi-lhe  já  que  não  me  escreva,  e  peço-]h'o  ou- 
tra vez. 

Nunca  consideraria,  um  pouco,  na  maneira  por 
que  me  tratou?. . . 


feição  que  parecia  terdes  por  mim  vos  causaria  algum  desai- 
re». 

E  J.  Ennes: — «revoltava-rae  contra  a  mediocridade  do  meu 
nascimento,  pensava  também  que  a  nossa  ligação  vos  poderia 
causar  prejuizo». 

Para  nós  aquella  «mediocridade  de  condição >>  allude,  sim- 
ples e  naturalmente,  á  condição  de  freira,  e  de  freira  francis- 
cana, de  uma  pequena  cidade  da  província,  o  que  nos  parece 
bem  mais  natural  e  conforme  com  as  revelações  dos  docu- 
mentos do  que  attribuil-a  á  inferioridade  de^iascimento  e  de 
fidalguia.  Tão  fidalgos,  senão  mais  do  que  os  Bouton,  eram 
os  Alcoforados,  e  nem  como  freira  e  franciscana  Marianna 
deixou  de  usar  o  Dom,  que  então  era  ainda  uma  caracterís- 
tica genealógica. 


297 


Não  pensaria,  nunca,  era  que  me  deve  mais  obri- 
gações do  que  a  ninguém  no  mundo  ?  1 

Amei-o,  doidamente. 

Como  despresei  tudo ! . . . 

O  seu  procedimento  não  é  de  um  homem  de 
bem. 

É  preciso  que  tivesse  por  mim  uma  aversão  na- 
tural para  que  não  me  amasse  perdidamente.* 

Deixei-me  fascinar  por  bem  somenas  qualidades. 

Que  fizera  o  senhor  que  devesse  encantar-me? 

Que  sacriíicios  praticou  por  mim? 


i  O  texto  francez  diz : 

— «Votre  procede  n'est  point  d'un  honnête  homme.  II  faut 
que  vous  ayez  eu  pour  moi  de  Taversion  naturelle,  puisque 
vous  ne  m'avez  pas  aimé,  éperdument*. 

Filinto  traduz  garridamente : — «Não  procedes  como  honrado, 
e  demostras  acerca  de  mim  natural  aversão,  pois  que  ás  per- 
didas me  não  arnaste». 

Sousa  Botelho: — «O  teu  procedimento  não  é  de  um  homem 
honrado ...  A  não  teres  tido  aversão  natural  para  mim,  era 
forçoso  que  me  amasses,  descomedidamente». 

O  sr.  Theophilo  Braga: — «O  vosso  procedimento  não  é  de 
um  homem  capaz». 

E  o  sr.  Pinheiro  Chagas: — «O  vosso  procedimento  não  è 
de  homem  de  prol.  Por  força  que  me  consagraes  uma  natural 
aversão,  logo  que  me  não  amaes  loucamente». 

J.  Ennes: — •■'Não  vos  dá  honra  o  vosso  procedimento,  é  ne- 
cessário que  eu  vos  inspire  uma  aversão  natural,  senão  seria 
forçoso  que  vos  inspirasse  um  louco  amor». 

Mas  porque  não  havemos  de  traduzir  litteral  e  chãmente  a 
phrase  ? 

Cremos  que  é  a  melhor  maneira  de  nos  approximarmos  do 


298 


Não  procurava  mil  outros  prazeres? 

Renunciou,  acaso,  ao  jogo  e  á  caça? 

Não  era  o  primeiro  a  partir  para  a  guerra  e  não 
era  o  ultimo  a  voltar  d'ella? 

Expunha-se  loucamente,  por  mais  que  eu  lhe  ti- 
vesse pedido  que  por  amor  de  mim  se  poupasse. 

Não  procurou  os  meios  de  ficar  em  Portugal, 
onde  era  estimado. 

Uma  carta  de  seu  irmão  fel-o  partir,  sem  hesitar 
um  momento. 

E  não  sube  eu  que  durante  a  viagem  conservou 
a  melhor  disposição  do  mundo? 

É  forçoso  confessar  que  devia  odial-o  mortal- 
mente. 

Ai,  fui  eu,  bem  sei,  que  sobre  mim  attrahi  todas 
estas  desgraças ! . . . 


original,  com  tanta  mais  razão  que  na  versão  franceza  se  adi- 
vinha em  cada  linha  o  esforço  de  verter  palavra  a  palavra 
esse  original,  e  que  o  próprio  movimento,  a  própria  situação 
psychica  que  na  carta  se  espelha,  é  a  de  uma  comprehensão 
viva,  profunda,  de  um  proceder  vil,  infame,  da  parte  do  se- 
duetor.  Já  nas  cartas  anteriores  se  revela  mais  de  uma  vez 
que  á  fina  e  intelligente  sentimentalidade  da  religiosa  não  pas- 
sara desapercebida  a  curta  intelligencia  e  os  grosseiros  senti- 
mentos do  amante,  A  preoccupação  litteraria  dos  traductores 
enfraquece  e  esbate  a  apostrophe  indignada  da  religiosa.  O 
que  ella  sente,  e  o  que  ella  n'uma  explosão  da  sua  consciên- 
cia revoltada  lhe  diz,  é  que  o  procedimento  d'elle  é  baixo, 
despresivel,  indigno.  A  phrase  é  mais  uma  bofetada  do  que 
um  lamento.  O  sangue  e  a  prosápia  dos  Alcoforados,  ou  mais 
propriamente  a  fina  e  intelligente  sentimentalidade  da  mulher 
relampea  na  desolada  humilhação  da  freira. 


299 


Costumei-o  logo  a  uma  grande  paixão,  com  ex- 
cessivo ingenuidade,  e  é  necessário  artificio  para 
nos  fazermos  amarl* 

É  necessário  procurar  com  geito  os  meios  de  in- 
flammar: — o  amor,  por  si,  apenas,  não  gera  o 
amor. 

O  senhor  fez  melhor:  — queria  que  eu  o  amasse, 
e  como  formara  este  desígnio  nada  haveria  que  não 
fizesse  por  conseguil-o. 

Ter-se-hia  até  resolvido  a  amar-me,  se  tivesse  pre- 
cisado dMsso!. . . 

Mas  reconheceu  bem  que  podia  vencer  esta  em- 
preza,  sem  paixão,  e  que  não  tinha  necessidade 
d'ella. 

Que  perfídia! 

Julgou  então  que  havia  de  impunemente  enga- 
nar-me?  f 

Pois  se  algum  acaso  o  trouxer  de  novo  a  esta 
terra,  declaro-lhe  que  o  entregarei  á  vingança  dos 
meus  parentes.^ 


1  Filinto: — «. . .  desde  logo  te  acostumei  a  uma  desmedida 
aíTeição  (e  de  tão  boa  fé!)  Arte  é  precisa  para  se  dar  a  que- 
rer», etc.  Preferimos  a  retraducção  litteral: — »il  faut  de  l'ar- 
tiíice  pour  se  faire  aimer»,  etc. 

2  Esta  phrase  suggere  ao  sr.  Theophilo  Braga  uma  idéa  que 
sem  querer  nos  parece  injusta.  Diz  elle:— «A  abandonada  re- 
ligiosa tem  alma  peninsular;  queria  ver  sangue  em  castigo  de 
tamanha  traição.  EUa  ameaça-o  com  o  pvnhalo. 

Com  o  que  ella  o  ameaça,  suppondo  que  sinceramente  o 
ameaça,  é  com  a  vingança  dos  seus.  Certo,  pode  bem  dizer- 


300 


Vivi  longamente  num  abandono  e  n'uma  idola- 
tria que  me  faz  horror,  e  os  meus  remorsos  per- 
seguem-me  com  um  furor  insupportavel. 

Sinto  vivamente  a  vergonha  dos  delidos  que  o 
senhor  me  fez  commetter,  e  não  tenho,  ai  de  mim! 
a  paixão  que  me  impedia  de  conhecer-lhes  a  enor- 
midade í  * 

Quando  será  que  o  meu  coração  deixará  de  ser 
dilacerado? 

Quando  será  que  me  verei  livre  d'est6  tormento 
cruel? 

E  comtudo,  creia  que  não  lhe  desejo  mal,  ao  se- 
nhor, e  que  me  resolveria  a  consentir  que  fosse 
feliz. 

Mas  se  tem  uma  alma  bem  formada,  como  o  po- 
derá ser? 

Quero  escrever-lhe  outra  carta  para  lhe  mostrar 
que  estarei  talvez  mais  tranquilla  dentro  em  pouco. 


se,  como  o  illustre  eseriptor: — «o  instincto  fidalgo  dos  Alco- 
forados  renascia«.  Mas  esse  instincto  ou  essa  fidalguia  Ucão 
usava  punhal,  usava  espada,  já  o  observamos. 

1  «Quão  perigosos  sejam  os  annos  da  mocidade,  &  quão  ex- 
postos a  ruins  espirituaes,  o  mesmo  Deos  o  publicou  no  sa- 
grado Texto  quando  disse  que  não  havia  de  mandar  outro  di- 
luvio á  terra :  Porque  os  sentidos,  &  imaginação  do  género 
humano  são  inclinados  para  o  mal  desde  a  sua  mocidade.  Da- 
vid também  falando  com  o  Senhor,  lhe  dizia :  Dos  delictos  de 
rainha  mocidade,  &  minhas  ignorâncias  vos  não  lembreis  Se- 
nhor, mostrando  que  estes  annos  são  de  ignorância  cheyos, 
&  muy  sngeita  a  delictos  a  mocidade».  {Desp.  do  Esp.) 


301 


Como  hei  de  regalar-me  em  poder  lançar-lhe  em 
rosto  o  seu  procedimento  injusto,  quando  elle  me 
não  mortificar  já  tão  vivamente;  em  llie  mostrar  que 
o  despreso;  que  falo  com  profunda  indiíTerença  da 
sua  traição;  que  esqueci  todos  os  meus  prazeres  e 
todas  as  minhas  dores,  e  que  não  me  lembro  do 
senhor,  senão...  quando  quero  lembrar- me! 

Reconheço  que  me  leva  grandes  vantagens,  e  que 
me  fez  uma  paixão  que  me  enlouqueceu;  —  mas 
também,  pouco  deve  envaidecer-se  por  isso. 

Eu  era  moça,  era  crédula,*  tinham-me  encerrado 
desde  creança  n'este  convento;  não  vira  senão  gente 
desagradável;  nunca  ouvira  as  .lisonjas  que  o  se- 
nhor constantemente  me  dizia;  parecia-me  dever- 
Ihe  os  attractivos  e  a  belleza  que  me  achava,  e  em 
que  me  fazia  reparar;  ouvia  dizer  bem  de  si;  toda 
a  gente  me  falava  em  seu  abono,. ..  e  o  senhor 
tudo  fazia  para  me  despertar  amor. 

Mas,  emfim,  tornei  a  mim  d'este  encantamento; 


1  «...  j'étois  jeune,  j'étois  credule,  on  m'avois  enfermée 
dans  ce  Convent  depuis  mon  enfance. . .» 

Filinto  traduz: — «Eu  moça,  eu  crédula,  encerrada  desde  a 
infância  n'um  mosteira,  habituada  a  ver  gente  desaprazivel, 
nova  nos  louvores  que  me  davas  de  continuo,  julgava  que  a 
ti  devia  os  attractivos  e  a  formosura. . .» 

E  Sousa  Botelho : — «Era  joven,  era  crédula,  tinham-me  en- 
cerrado desde  a  infância  n'este  convento ...» 

Marianna  Alcoforado,  que  já  em  1660,  aos  20  annos,  era 
freira  professa,  naturalmente  professara  ao  16  e  fora  confiada 
ao  convento  muito  antes  ainda. 


302 


grandes  auxílios  me  deu  para  isso,  e  confesso-lhe 
que  tinha  d'elles  uma  extrema  necessidade. 

Devolvendo-lhe  as  suas  cartas,  conservarei  cui- 
dadosamente as  duas  ultimas  que  me  escreveu,  e 
hei  de  relel-as  mais  ainda  do  que  li  as  primeiras 
para  não  tornar  a  recahir  nas  minhas  fraquezas. 
Ai,  como  estas  me  custam  caras,  e  como  eu  seria 
feliz  se  o  senhor  tivesse  consentido  em  que  conti- 
nuasse a  amal-ol 

Sei,  certo,  que  me  occupo  demais  ainda  com  as 
minhas  queixas  e  com  a  sua  infidelidade;  lembre- 
se,  porém,  que  a  mim  própria  prometti  um  estado 
mais  tranquillo,  e  que  hei  de  conseguil-o,  ou  to- 
marei contra  mim  uma  resolução  desesperada  que 
poderá  saber  sem  grande  pezar!. . . 

Mas  nada  mais  quero  do  senhor. 

Sou  uma  doida  em  repetir  as  mesmas  coisas  tan- 
tas vezes. 

É  mister  que  o  deixe  e  que  não  pense  mais  em 
si. 

Creio  até  que  não  tornarei  a  escrever-lhe. 

Tenho  alguma  obrigação  de  lhe  dar  conta  da  mi- 
nha vida? 


BIBLIOGRAPHIA 


L    E    T    T    R    E    S 

DA  M  O  U  R 

D*UNE 

RELIGIEUSE 

Efcritcs  au 

jCHEVALIER   de   C 

Officitr  Fritnais  en 
Portugal. 


A    COLOGHE,- 

Chcz  Picrre  du  Martcaa, 
cl9 19  €  Lzzx. 


1)  Lettres/ PORTVGAISES/TEADVITES/EN  FBAJS- 

ÇOISJ 

(vinheta  representando  um  cesto  de  flores) 

A  PABíSjChez  Clavde  Barbin,  au/PalaiSj  snrlle 

second  Pen-on/de  la  sainte  Chapelle. /m.dc.lxíx./ 

Avec  Privilege  du  Roy./ 

(In-ia."  3  ff.  pr.  182  ps.) 

Exemplar  da  Bibliotheca  Nacional  de  Paris  (Res.  Z.  989), 
encadernado  a  vermelho,  com  applicações  em  doirado,  e  a 
seguinte  designação  na  lombada: — Lettr/Portv/ 

Segundo  amáveis  communicações  dos  respectivos  biblio- 
theearios,  existem  também  exemplares  nas  Bibl.  Pub.  de 
Dijon  e  Centr.  Vittorio  Emanuele,  de  Roma. 

O  prefacio,  em  itálico,  diz  assim: 

«Ao  leitor. — Encontrei  os  meios,  com  muito  cuidado  e 
trabalho,  de  obter  (recouuer)  uma,  copia  correcta  datraduc- 
ção  de  cinco  Cartas  Portuguezas,  que  foram  escriptas  a  um 
gentilhomem  de  qualidade  que  serviu  em  Portugal.  Tenho 
visto  todos  os  que  se  teem  por  entendidos  em  sentimentos 
ou  louval-as,  ou  procural-as  com  tanto  interesse  que  jul- 
guei que  lhes  faria  um  singular  prazer  imprimindo-lh  as. 
Não  sei  o  nome  d'aquelle  a  quem  foram  escriptas,  nem  o 

F.  20 


306 


de  (juem  fez  a  traducção  d'ellas^  mas  pareceu-me  que  não 
devia  desagradar-lhes  tornando-as  publicas.  É  difficil  que 
não  viessem  a  apparecer,  era  fim,  com  faltas  de  impressão 
que  as  disfigurassem.» 

Logo  na  pagina  seguinte  começam  as  Cartas,  cuja  ordem, 
posto  que  conhecida,  indicaremos,  aqui,  a  titulo  de  curio- 
sidade. 

Pbemiere/Lettre  —  Considere,  mon  amour,  jusguà  quel 
excez  tu  as  manque  de  preuoyance.  Ah  mal-heureux  I 
tu  as  ésté  trahy,  etc. 

Seconde  Lettre — lime  semble  que  je  fais  le plus grãd tort 
du  monde  aux  sentimès  de  mon  cceur  de  tascher  de 
vous  les  faire  connoislre  en  les  écriuant:  quejeserois 
heureuse  si  vous  en  pouuiez  hiè  iuger  par  la  violence 
des  vostres  I  etc. 

Troisiesme  Lettre —  Qv'est-ce  queje  deuiendray  &  qu'est-ce 
que  vous  voulez  que  ie  fasse  ? 

QvATRiiíSME  Lettre  —  Vostre  Lieutenant  vient  de  me  dire, 
qu'vne  tempeste  vous  a  obligé  de  relascher  au  fíoyaume 
d'Algarne:  etc. 

CiNQViESME  Lettre  —  Ie  vous  ècris  pour  la  derniere  fois ,  & 
f  espere  vous  faire  connoUre  par  la  difference  des  ter- 
mes,  &  de  la  maniere  de  cette  Lettre^  que  vous  m'auez 
enfin  persuadée  que  vous  ne  m^aymiez  plus,  &qu'ainsi 
je  ne  dois  plus  vous  aymer:  etc. 

Como  expozemos  atraz,  cremos  que  na  copia  ou  na  im- 
pressão houve  troca  de  duas  cartas,  a  2.*  e  a  4.* 

Em  seguida  a  esta,  e  em  pagina  innumerada,  lê-se  o  — 
(í Extracto  do  Privilegio  do  Heiy — que  diz  assim: 

—  «Por  Graça  &  Privilegio  do  Rei,  dado  em  Paris,  no 
28°  dia  de  outubro  1608.  Assignado  pelo  Rei  no  seu  Con- 
selho, Margerèt.  É  permittido  a  Cláudio  Rarbin,  Mercador 
Livreiro,  faser  imprimir  um  Li^ro  intitulado,  Lettres  Por- 


307 


tugaises,  durante  o  tempo  éc  espaço  de  cinco  annos.  E  fica 
prohibido  a  todos  os  outros,  imprimil-o  sob  pena  de  qui- 
nhentas libras  de  multa,  de  todas  as  custas,  perdas  e  ga- 
nhos como  é  mais  amplamente  exarado  nas  ditas  Cartas  de 
Privilegio.» 

Seguem-se  as  declarações : 

—  0.  Acabado  de  imprimir  pela  primeira  vez  em  4  de  ja- 
neiro 1669. — Foram  apresentados  os  exemplares.  —  Regis- 
tado no  Livro  da  Communidade  dos  Mercadores  Livreiros 
&  Impressores  doesta  Cidade,  segundo  &  conformemente  ao 
Arresto  do  Tribujial  do  Parlam,ento  de  8  ahril  1653,  com  os 
encargos  e  condições  exaradas  no  presente  Privilegio.  Feito 
em  Paris,  em  17  novembro  1668. — Sovbron,  Syndico.» 

Devemos  ao  nosso  amigo  e  estimado  escriptor,  sr.  Ma- 
rianno  Pina  (Paris),  esta  descripção  do  exemplar  da  Biblio- 
theca  Nacional,  que  solicitámos  da  sua  cavalheirosa  amabi- 
lidade. 

2)  Lettres I d'amour I d\ne  religieiíse / escrites  au/Chevalier 
de  C./Officier  Francois  en/ Portugal. — (Esphera). 
A  Cologne.  Chez  Pierre  du  Marteau.  cioioclxix. 
(In-12.°  50  ps.) 

Exemplar  até  hoje  absolutamente  desconhecido  de  todas 
as  bibliographias,  pertencente  á  bibliotheca  do  sr.  Bernar- 
dino Ribeiro  de  Carvalho.  É  a  ultima  obra  de  um  volume 
encadernado  em  pergaminho  e  que  contém  além  d'ella,  as 
seguintes : 

— Histoire  de  la  vie  de  la  Reyne  Christine  de  Suède. 
(Esphera).  A  Stocholm  —  Chez  Jean  Pleyn  de  Courage. 
Lxxvii — (Com  retrato)— 212  ps. 

— Damon  &  Pythias  ou  le  triomphe  de  TAmour  et  de 
l'Amitie  —  Tragicomedie — A  Amsterdam  —  Pour  Jean  Ra- 
vesteyn  mdclvh  (Dedicatória  assignada  Chappuzeau)  56  ps. 

— Pulcherie.  Comedie  heroique,  par  P,  Gorneille.  Sui- 
vant  la  copie  imprimée. — A  Paris  —  cioicoLxxm  —  71  ps. 

Journal  du  Journal  ou  censure  de  la  censure  &  —  (Es- 
phera)—  A  Utrech  —  Chez  Pierre  Elzevier  —  m.dc.lxx  — 
Ps.  39. 

20  # 


308 


Secondejournaline  de  Mr.  Le  Fevre — (Esphera)  A  Utrech 
—  Chez  Pierre  Elzevier — mdc.lxx. — Ps.  75. 

Uescole  des  maris.  Comedie  de  J.  B.  P.  Molière. .  .  Re- 
presentée  sur  le  Théatre  du  Palais  Royale.  A  Paris — Chez 
Claude  Barbin,  dans  la  grand  Salle  du  Palais,  au  Signe  de 
la  Croix.  M.DC.Lxii — 69  ps. 

—  Tite  et  Titus  ou  critique  sur  les  Berenices,  Comedie. 
(Esphera) — A  Utrecht  —  Chez  JeanRibbius — mdclxxiu — 
48  ps. 

—  La  genereuse  ingraíitude.  Tragi-comédie  pastorale. 
Par  le  sr.  Quinault.  Suivant  la  copie  imprimée — A  Paris 
cioiDCLxii — 74  ps. 

Este  precioso  volume  foi  comprado  pelo  sr.  Ribeiro  de 
Carvalho,  em  janeiro  de  (889,  ao  livreiro  J.  Rodrigues, 
que  dias  antes  o  comprara  a  um  desconhecido  sem  lhe  co- 
nhecer o  valor. 

O  prologo  d'esta  edição  das  Cartas  éegual  ao  da  edição 
Barbm,  com  esta  alteração  importantíssima,  porém : 

— Le  nom  de  celuy  auquel  on  les  à  écrites,  iíst  Monsikur 
LE  Chevalier  de  Chamilly,  &  le  nom  de  celuy  qui  en  a  fait 
la  traduction  est  Cuilleraque. —  Éuma  formosa  edição,  em 
typo  elzevir,  das  5  cartas  somente. 

Fica  pois  assente  que  os  nomes  do  destinatário  e  do  tra- 
ductor  se  revelaram  publicamente,  logo  em  1669. 

3)  Lettres I "portugaises I traduites I en  françois./Seconde  edi- 
tion. 

A  Paris,  chez  Claude  Barbin,  etc.  m.d.c.lxix. 
(In- 12.°  182  ps.) 

Exemplar  na  Bibliothêca  de  Copenhague. 

Citada  por  Sousa  Botelho,  que  a  considera  uma  simples 
reimpressão,  posto  seja  differente  do  da  edição  inicial,  o  or- 
namento do  frontispício.  Mas  esta  reimpressão  das  cinco 
cartas  da  freira  portugueza,  que  foi  a  que  conheceu  o  ab- 
bade  de  Sainte-Léger,  foi  accrescentada  com  uma  collecção 
nova  que  é  a  seguinte : 


309 

4)  Lettres  portugaises/Seconde  partie./ 

A  Paris,  chez  Claude  Barbin,  etc.  m.d.c.lxix. 
(In-lâ."  151  ps.) 

Exemplar  na  Bibliotheca  Nacional  de  Paris. 

Tem  este  prefacio,  positivamente  indicativo  de  que  as 
sete  cartas  que  compõem  esta  segunda  parte  nada  teem  com 
as  cinco  da  religiosa  que  constituíram  a  edição  inicial. 

—  «O  ruido  que  fez  a  traducção  das  cinco  Cartas  portu- 
guezas  suggeriu  o  desejo  a  algumas  pessoas  de  qualidade 
de  traduzir  algumas,  novas,  que  lhes  cahiram  nas  mãos. 
As  primeiras  tiveram  tanta  procura  que  deve  receiar-se, 
com  justiça,  expor  esta  ao  publico,  mas  como  são  de  uma 
mulher  da  sociedade  (femme  du  monde),  que  escreveu  n'um 
estylo  diíFerente  do  de  uma  religiosa,  acreditei  que  esta  dif- 
ferença  poderia  agradar,  e  que  porventura  a  obra  não  é  tão 
desagradável  que  não  me  agradeçam  de  alguma  forma  que 
as  dê  ao  publico.» 

O  privilegio  tem  a  data  de  28  de  outubro  de  1668, — é 
o  mesmo  da  edição  original  (n." !) — e  o  acabado  de  impri- 
mir-se  pela  primeira  vez,  a  de  20  de  agosto  de  1669.  Como 
geralmente  acompanha  a  reimpressão  ou  segunda  edição  das 
cinco  cartas  é  provável  que  a  data  da  publicação  d'esta  fosse 
a  mesma,  isto  é,  sete  mezes  depois  da  edição  inicial. 

Dissemos  já  que  não  consideramos  como  perfeitamente 
averiguado  que  estas  sete  cartas  sejam  apoeryphas,  como 
em  geral  se  consideram.  Mas  que  o  editor  não  pensou  em 
fazel-as  passar  como  da  religiosa  dizem-n'o  ellas  tão  clara- 
mente como  o  prefacio  que  acabamos  de  traduzir,  que  não 
calla  também  que  foi  o  êxito  das  primeiras  que  suggeriu  a 
publicação  das  segundas,  aproveitando  o  titulo  e  o  privilegio. 

5)  Lettres  /  d'une [  religieusejportugaise  -1  Traduites/en  fran- 

çois./ 

A  Cologne,  chez  Pierre  du  Marteau. 
(^-12.°  58  ps.) 

Sem  data.  Citada  por  Sousa  Botelho.  Contém  as  cinco 
Cartas  da  religiosa  e  o  mesmo  prefacio  da  edição  original 


310 


de  Baabin,  de  que  é  uma  reproducção,  feita  muito  provavel- 
mente no  mesmo  anno,  antes  da  «segunda  parte»  do  livreiro 
parisiense,  sendo  porém  muito  curiosa  a  omissão  dos  nomes 
denunciados  na  edição  datada  (n."  2). 

Sousa  diz : — «Tive  a  fortuna  de  adquirir  em  Copenhague, 
um  exemplar  da  edição  in-12.''  de  Pedro  du  Marteau,  de 
Colónia,  sem  data,  que  creio  ser  daquella  edição  anterior* 
que  desappareceu  e  consequentemente  a  primeira  de  quan- 
tas se  teem  feito  d'esta  obra.» 

Ha  n'isto  uma  confusãa  fácil  de  corrigir  com  as  próprias 
indicações  de  Sousa. 

Saint-Leger  dissera  na  edição  de  1806: — «A  mais  antiga 
edição,  que  implica  comtudo  uma  anterior,  que  desappare- 
ceu, pois  que  não  podemos  enconlral-a  em  parte  alguma,  é 
a  de  Cláudio  Barbin,  1609,  in-12. "  de  182  paginas,  cara- 
cteres grandes,  dizendo  no  titulo.  . .  Segunda  edição. y> 

Simplesmente  essa  edição  anterior  era  a  do  mesmo  Bar- 
bin (n.°  1)  que  Sousa  descreve  mais  adeante  e  que  Saint- 
Leger  não  conheceu,  parecendo  até  não  ter  examinado  a 
própria  edição  que  cita  ou  o  exemplar  d'ella  que,  na  fé  de 
Barbier,  diz,  com  razão,  existir  na  Bibliotheca  Nacional  de 
Paris.  Devemos  accrescentar  que  é  certamente  por  um 
d'aquelles  lapsos,  tão  vulgares  na  sua  edição,  que  Asse  diz 
ter  Sousa  assignalado  á  de  Marteau  a  data  de  1665,  o  que 
seria  absurdo.  Sousa  observa  que  o  exemplar  que  desco- 
briu tem  junto  a  Segunda  parte  (n.°  6). 

6)  Lettres / d\ne/religieuse/portugaise ./ Traduites/en  fran- 
çois./Seconde  partie./ 
A  Cologne^  chez  Pierre  du  Marteau. 
(In-12.°  47  ps.) 

Sêm  data,  como  o  numero  anterior,  nos  mesmos  cara- 
cteres e  formato  e  junto  com  ella  no  exemplar  de  Sousa.  E 
a  segunda  parte  de  Barbin,  (n.°  4)  com  o  mesmo  prefacio. 
É  pois  no  titulo  d'esta  publicação  e  apesar  da  declaração 
terminante  do  prefacio,  que  começa  a  extraordinária  con- 
fusão das  cinco  cartas  da  freira  com  as  attribuidas  a  uma 
«senhora  da  sociedade.» 


311 

7)  Lettres  portugaises  traduites  en  françois. 

Amsterdam.  Chez  Isaac  Van  Dych. — 1669. 

(12.0) 

Citada  por  Brunet  (5/  ed.)  que  a  suppõe  impressa  em 
Bruxellas.  Costuma  entrar  nas  collecções  elzeverianas. 
Contém  apenas  as  cinco  cartas  da  freira. 

8)  fíéponses  aux  Lettres  portugaises,  traduites  en  françois. 

A  Paris.  Chez  J.  Baptiste  Loyson,  etc  — 1669. 
(In-12-2p.  2ff.  pr.— 92-46) 

Exemplar  na  Bibliotheca  Nacional  de  Paris.  Citado  por 
Brunet,  Asse  e  outros.  Tem  o  seguinte  prefacio : 

—  «Ao  leitor. — A  curiosidade  que  tiveste  de  ver  as  cinco 
Cartas  portuguezas  escriptas  a  um  gentilhomem  de  volta  de 
Portugal  a  França,  persuadiu-me  de  que  não  serias  menos 
curioso  de  ver  as  respostas  d'elle;  cahiram-me  nas  mãos, 
da  parte  de  um  dos  seus  amigos  que  me  é  desconhecido; 
assegurou-me  este  que,  estando  em  Portugal,  obtivera  as 
copias,  escriptas  na  lingua  do  paiz,  de  uma  abbadessa  de 
um  mosteiro,  que  recebia  aquellas  cartas  e  as  retinha  em 
vez  de  as  entregar  á  Religiosa  a  quem  se  dirigiam.  Não  sei 
o  nome  de  quem  lh'as  escrevia  nem  o  de  quem  fez  a  tra- 
ducção,  mas  creio  não  lhes  ser  desagradável  fazendo-as  pu- 
blicas, pois  que  as  outras  o  são  já.  As  pessoas  que  apreciam 
este  género  de  escripta  não  as  teem  desapprovado.  Seja 
como  for,  se  não  são  tão  galantes  como  as  outras,  são  por 
egual  commoventes.  Asseguraram-me  que  o  gentilhomem 
que  as  escreveu  voltou  para  Portugal.» 

O  privilegio  indica  que  são  traduzidas  pelo  sr.Z).F. 2).  iJ/. 
Segundo  Asse,  a  cessão  feita  pelo  auctor  tem  a  data  de  3  de 
fevereiro  de  1669,  um  mez  depois,  por  conseguinte,  da  pu- 
blicação, ou  de  terminada  a  impressão,  da  edição  original 
das  cinco  cartas  da  freira,  por  Barbin ! 

Sousa  Botelho  não  conheceu  esta  edição  das  Respostas, 
e  erra  querendo  corrigir  Barbier,  quando  considera  a  de 
1671  como  a  primeira. 


312 


9)  Repouses  anx  lettres  portugaises. 

A  Grenoble.  Chez  Robert  Philippes,  proche  les  RR. 
PP.  Jésuites.— 1669. 
(In-ia."  144  ps.) 

Exemplar  na  Bibliotheca  Nacional  de  Pari.s.  Tem  o  se- 
guinte prefacio: 

—  «Para  satisfação  do  leitor  e  para  minha  própria  justi- 
ficação, creio  que  devo  dizer  duas  palavras  do  desígnio  que 
me  obrigou  a  emprehender  estas  Cartas.  Não  pretendo  es- 
clarecer aqui  o  leitor  sobre  se  as  cinco  Cartas  Portuguezas 
são  verdadeiras  ou  suppostas,  nem  sobre  se  ellas  se  diri- 
gem, como  se  diz,  a  um  dos  assignalados  senhores  do  reino; 
não  é  n'este  assumpto  que  quero  exhibir  o  meu  saber: — 
direi  somente  que  a  ingenuidade,  a  paixão  toda  desartifi- 
ciosa,  que  se  patenteia  n'estas  cinco  Cartas  portuguezas,  a 
poucos  permittem  duvidar  de  que  ellas  tenham  sido  real- 
mente escriptas.  Quanto  ao  intento  que  me  obrigou  a  fazer- 
Ihes  respostas,  sou  muito  franco  para  que  dissimule  o  que 
me  disse  um  dos  melhores  espíritos  da  França.  Logo  me 
representaram  a  grandeza  da  empreza,  a  difficuldade  do 
êxito,  a  temeridade  de  que  me  accusariam  se  o  resultado 
não  fosse  favorável.  Disseram-me  que  uma  paixão  violenta 
inspirara  estas  cinco  primeiras  Cartas,  eque  um  homem  que 
não  estivesse  compenetrado  de  uma  tal  paixão,  nunca  con- 
seguiria responder  com  felicidade  a  essas  Cartas;  que  fora 
uma  mulher  nova  que  as  escrevera,  e  que  na  alma  das  pes- 
soas d'este  sexo  as  paixões  eram  mais  fortes  e  mais  arden- 
tes que  na  de  um  homem,  em  que  são  sempre  mais  tran- 
quillas;  que,  além  d'isso,  fora  uma  religiosa,  mais  capaz  de 
uma  grande  alleição  e  de  um  transporte  amoroso  do  que 
uma  pessoa  da  sociedade;  e  que  eu,  não  sendo  nem  moça 
nem  religiosa,  nem  talvez  amoroso,  não  poderia  secundar, 
nas  minhas  cartas,  estes  sentimentos  que  se  admiram  prin- 
cipalmente nas  primeiras.  Emfim,  lembraram-me  o  intento 
de  Aulus  Sabinus,  que  respondeu  a  algumas  das  epistolas 
héroidas  de  Ovidio,  mas  com  tão  pouco  êxito  que  aquellas 
quasi  não  serviram  senão  para  fazer  realçar  o  esplendor 
(Vestas,  posto  não  fossem  mais  do  que  uma  diversão  do  es- 


313 


pirito  em  que  a  paixão  e  o  coração  nenhuma  parte  tinham. 
Tudo  isto  era  bastante  para  desarmar  uma  coragem  menos 
acalorada  do  que  a  minha :  por  mim  não  me  dei  por  vencido 
com  estas  razões;  vi  bem  que  a  belleza  natural  das  Portu- 
guezas  era  inimitável,  e  que  ellas  podiam  justamente  ser 
chamadas  um  prodigio  de  amor;  acreditei,  comtudo,  que, 
quando  as  minhas  respostas  não  fossem  tão  prodigiosas,  não 
deixariam  por  isso  de  ser  acceitaveis.  Se  não  são  tão  amo- 
rosas e  tão  apaixonadas,  que  importa?  comtanto  que  haja 
n'ellas  algum  fogo?  Estimo  mais  que  me  tomem  por  um  ho- 
mem de  espirito  do  que  por  um  homem  amoroso.  Em  todo 
o  caso,  que  se  imagine  que  as  minhas  respostas  são  tão  pouco 
supportaveis  que  não  as  fiz  também  senão  para  melhor  imi- 
tar aquellas  de  que  a  dama  se  queixa  na  4.*  carta,  p.  22, 
onde  as  nomeia  por  cartas  frias  e  cheias  de  repetições,  e  na 
carta  5.',  em  que  se  lamenta  dos  impertinentes  protestos  de 
amizade  e  das  amabilidades  ridículas  com  que  o  seu  amante 
enche  a  sua  ultima  carta.  Certo  é  esta,  na  minha  opinião,  a 
menor  graça  que  possam  conceder-me.  Se  comtudo  se  con- 
siderar na  grandeza  do  intento,  não  me  censurarão  inteira- 
mente por  não  ter  tido  melhor  êxito.  Ao  contrario,  talvez 
louvem  a  minha  empreza.  As  razões  que  vão  expostas  no 
começo  d'este  prefacio,  e  que  acho  invenciveis,  servirão  me- 
nos mal  para  me  abrigar  dos  ataques  da  critica,  para  não 
dizer  da  inveja.  De  resto,  o  leitor  talvez  se  admire  de  ver 
seis  Cartas  que  não  respondem  senão  a  cinco,  mas  advirto-o 
de  que  a  primeira  das  Cartas  portuguezas,  falando  de  uma 
carta  que  o  amante  escrevera  já,  antes  da  sua  partida,  en- 
tendi que  não  podia  dispensar-me  de  fazer  uma  neste  sen- 
tido. Não  havia  de  deixar  passar  um  assumpto  tão  bello 
para  escrever  sem  aproveital-o.  É  tudo  quanto  tenho  a  di- 
zer. Adeus.» 

Com  bons  fundamentos.  Asse,  seguindo  «uma  tradição 
quasi  constante»,  suppõe  essas  respostas  posteriores  ás  do 
editor  Loyson,  embora  publicadas  no  mesmo  anno. 

10)  Lettres  portugaises  traduites  en  françois. 
A  Paris,  chez  Claude  Barbin. — 1670. 

(In-12.'') 


314 


Exemplar  da  Bibliolheca  da  Academia  de  Rostock,  se- 
gundo communicação  do  bibliothecario  Dr.  Ad.  Hofmeister. 

11)  Repouses  aux  Lettres  portugaises 

Paris,  chez  Cl.  Barbin.-^1670. 
(In-12.° 

Exemplar  da  Bibliotheca  da  Academia  de  Rostock.  Se- 
rão as  Respostas  publicadas  por  Loyson  (n.°  8)  ou  as  de 
Philippes  (n.°  9)?  Creio  que  até  hoje  era  perfeitamente  des- 
conhecida esta  edição  de  Barbin.  Suppomos  que  deve  será 
collecção  do  livreiro  de  Grenoble,  pois  que  n'este  mesmo 
anno  Loyson  publicava  a  seguinte  edição  da  sua,  de  que 
tinha,  como  vimos,  privilegio. 

12)  Repenses  aux  lettres  portugaises  traduites  en  françois. 

Paris.  —  J.  B.  Loyson. — 1670. 

Exemplar  na  mesma  Bibliotheca. 

13)  Repouses  aux  lettres  portugaises  traduites  en  françois. 

A  Paris,  chez  Jean  Baptiste  Loyson,  au  cmquième 
Pillier  de  la  grand  salle  du  Palais,  à  la  Croix  d'Or. 
1671.  Avec  Privilége  du  Roy. 

Exemplar  da  Bibhotheca  de  Cassei. 

14)  Réponses  aux  Itttres  d^amour  d'une  religieuse  par  le 

Chavalier  de  C***  ojficier  françois  en  Portugal. 
A  Cologne.  —  Chez  Pierre  du  Marteau. — 1671. 

Citado  por  Barbier.  São  as  respostas  de  Loyson. 

15)  Lettres  portugaises  traduites  en  françois.  Troisième  édi- 

tion. 

A  Paris,  chez  Claude  Barbin.— 1672. 
(In- 12.°  182  ps. 

Exemplares  na  Bibliotheca  Nacional  de  Paris  e  na  Bi- 


315 


bliolheca  de  Stuttgart.  Comprehende  somente  as  cinco  car- 
tas originaes.  A  3.*  edição  deveria  ser  a  do  nosso  n.°  10. 
Será  esse  numero,  porém,  uma  segunda  edição  da  sf^^wnda 
parte  apenas,  ou  das  Cartas  de  uma  «dama  da  Sociedade»? 

16)  Lettres  portugaises.  Seconde  partie. 

A  Paris,  chez  G.  Barbin. — 1673. 
(In-ia.o  151  ps.) 

Exemplar  na  Bibliotheca  Nacional  de  Paris. 

17)  Five/Iove-letters/from  a/nun/to  a/cavalier./Done  out  of 

French  into  English./ 

London/Printed  for  Henry  Brome  at/the  Gun  at  the 
West-end/of  St.  Pauis.  1678./ 
(In-lâ."  117  ps.) 

—  Licensed/Dec.  28/1677//?o  L'Estrange./— 

Exemplares  na  Bibliotheca  Nacional  de  Lisboa  e  na  do 
Museu  Britannico  (Londres.) 

Tem  o  seguinte  prefacio: 

—  «Ao  leitor.  —  Deves  acceitar  esta  traducção  muito  ge- 
nerosamente, porque  o  auctor  d'ella  arriscou  a  sua  repu- 
tação para  te  obsequiar.  Arriscou-a,  digo,  até  na  simples 
tentativa  de  transladar  tão  formoso  original.  Este  é,  em 
francez,  uma  das  mais  artísticas  obras  talvez,  no  seu  géne- 
ro, que  existam.  Bastam  as  graças  peculiares  e  as  facilida- 
des d'aquella  língua  em  assumpto  á'amour^  que  não  podem 
passar-se  para  outra  lingua  sem  esforço  e  aíFectação.  Foi, 
parece,  uma  intrigue  de  amor  travada  entre  um  ofíicial 
francez  e  uma  freira  em  Portugal.  O  cavalleiro  esqueceu 
a  amante  e  voltou  para  França.  A  senhora  expõe  o  episo- 
dio em  cinco  cartas  de  queixa  que  mandou  atraz  d'elle,  e 
estas  cinco  cartas  aqui  estão  á  tua  disposição.  Encontrarás 
n'ellas  a  viva  imagem  de  uma  paixão  extraordinária  e  in- 
feliz, e  de  que  uma  mulher  tanto  será  de  carne  e  sangue 
n'um  convento  como  n'um  palácio.» 


316 


18)  Lettres  d\ne  religieuse,  écrites  au  chevalier  de  C*** 

ofjicier  (rançais,  édition  nouvellement  augmentée  de 
celles  du  dit  chevalier. 
A  Cologne;,  Ghez  P.  du  Marteau  1678. 
(In-12) 

Citado  por  Nyon  {Cat.  de  la  Vallière),  Saint  Leger, 
Sousa,  etc.  Comprehende  as  cinco  cartas  da  freira  e  as  res- 
postas  do  editor  Loyson. 

Sousa  Botelho  diz : 

— «...  pode  notar-se  também  que  é  a  primeira  em  que 
se  designa  o  official  (M.  de  Chamilly)  sob  o  nome  de  che- 
valier de  C***». 

Vimos  já  que  não  é  exacto  (n."'  2  e  14). 

19)  Lettres  portugaises  traduites  en  (rançais. 

A  Tournay . . . 

Citado  por  Saint  Leger,  nawoí.  hist.  da  edição  de  1806, 
como  «quasi  semolhante  á  de  Barbin.  (1669). » 

20)  Lettres  I  Portugaises  I  avccjles  Responses,!  traduites /en 

(rançois. 

A  Lyon/Chez  Claude  Muguet,  rue/Merciere  au  bon 
Pasteur ./m.  dg.  lxxix.  avec  Permission./ 

(In- 16) 

A  noticia  d*esta  edição  foi-nos  communicada  pelo  obse- 
quioso bibliothecario  communal  de  Verona,  onde  exite  um 
exemplar. 

21)  Lettres  portugaises  avec  les  Responses,  traduites  en 

(rançois. 

A  Lyon,  chez  Thomas  Amaulrv,  1680. 
(In-12  — H6pag.) 

Exemplar  da  Bibliotheea  Nacional  de  Paris.  São  as  cinco 
cartas  alternadas  com  as  respostas  de  Loyson. 


317 


22)  Lettres  d^amour  d*une  religieme  portugaise  écrites  au 

chavalier  de  C.  Edition  nouvelle  augmentée  de  celles 
du  dit  chevalier. 

A  Gologne.  Chez  P.  du  Marteau,  1681. 
(In-8.°) 

Citada  deficientemente  por  Brunet.  O  dr.  Guill.  Heyd, 
conservador  da  Bibliotheca  Real  de  Stuttgart  communica- 
nos  a  existência  n'aquella  bibliotheca  de  um  exemplar  en- 
cadernado com  uma  obra  de  Tenain: — v-La  religieme  in- 
teressée  &  amourense» . — Gol.  1707 — 8." 

23)  Seconde  partie  des  Lettres  portugaises,  traduites  en 

françois. 

A  Lyon,  chez  Th.  Amaulry,  1681. 
(In-12  — 119pag.) 

Exemplar  da  Bibliotheca  Nacional  de  Paris.  São  as  sete 
cartas  da  «mulher  da  sociedade»,  e  . .  as  cinco  respostas 
ás  da  religiosa,  de  Loyson. 

24)  Douze  lettres  d^amour  d^ne  religieuse portugaise,  écri- 

tes au  chevalier  de  C*. 
La  Haye,  1682. 

(In- 12) 

Citado  por  Techener  (Cat.  de  1869). 

Asse  diz:  —  «Parece  ser  a  primeira  edição  em  que  as 
doze  cartas  e  as  onze  respostas  se  encontram  reunidas  mas 
confundidas». 

25)  Lettres  portugaises  /  avec  /  les  responses  /  traduites  /  en 

françois./ 

A  Lyon/Chez  Fr.  Roux,  etc.  Cl.  Chize/MDCLxxxv. 
(In-12) 

Exemplar  nas  Bibliotheca  Nacional  de  Lisboa  e  Nantes. 

Prefacio  da  edição  original  de  1669,  as  cinco  cartas  da 

religiosa,  acompanhadas  das  seis  respostas  da  collecção  Fi- 


318 


lippes.  No  fim  o  Consentement,  em  data  de  28  de  maio  de- 
1685.  Com  o  mesmo  volume,  a  seguinte : 

26)  Seconde  partie/des  lettres  / portugaises  /  traduites  /  en 

françois. 

A  Lyon/Ghez  Fr.  Roux. . .  Cl.  Chire/MDCLXxxvi. 

O  prefacio  é  o  mesmo  da  segunda  parte  da  edição  de 
Barbin,  substitui ndo-se  porém  o  periodo  em  que  se  declara 
que  as  sete  cartas  são  de  «uma  mulher  da  sociedade»,  pelo 
seguinte : 

— «Mas  como  ellas  são  quasi  do  mesmo  caracter  entendi 
que  esta  conformidade  poderia  agradar  e  que  porventura 
a  obra  não  é  tão  desagradável»,  etc.  O  resto  como  o  prefa- 
cio original. 

Precisamente  o  contrario  do  que  declarava  Barbin ! 

27)  Lettres I d^amour I d\ne I religieme I portugaise.l Ecrites 

au/Chevalier  de  C./Officier  F.  en  Portugal. /Enríchies 
&  augmentées  de  plusieurs/nouvelles  Lettres  fort  ten- 
dres  &  passio-friées  de  la  P.  F.  à  M.  le  Baron  de  B./ 
Derniére  edition./ 
A  la  Haye./Chez  Abraham  de  Hont  et  Jacob  van  EI- 

linkhuysen/Marcbands  Libraires  sur  la  grande 

Sale  de  la  Cour./M.  dg.  lxxxvhi. 
(In-8.°— 191  pag.) 

Exemplar  do  sr.  Ferreira  das  Neves  Sobrinho  (Lisboa). 
Deve  ser  a  edição  citada  por  Barbier  em  nota  a  St.  Leger, 
na  edição  de  1806. 

O  mesmo  prefacio  da  edição  inicial  de  Barbin  (n.°  1) 
salvo  o  periodo  em  que  este  diz  não  saber  o  nome  do  des- 
tinatário e  do  traductor,  periodo  substituído  por  este : 

—  «O  nome  daquelle  a  quem  foram  escriptas  (as  Cartas), 
é  M.  o  C.  de  G.  e  o  nome  daquelle  que  fez  a  traducção  é 
C.  pareceu-me  que  não  devia  desagradar-lhes,»  etc. 

Começa  pelas  sete  cartas  da  segunda  parte  ou  da  i  se- 
nhora da  sociedade»  seguindo-se-lhes  as  cinco  da  religiosa, 


319 


sendo  por  isso  a  primeira  d'estas  a  huitième/lettre/  da  col- 
lecção,  sem  declaração  alguma! 

A  pag.  (inn.)  85  começa  outra  collecção  com  o  seguinte 
titulo  que  occupa  essa  pagina : 

—  Hesponses / du/  Chevalier  de  C./aux/Lettres/d^amour/ 
d'tine  Réligieuse  en/ Portugal/ Edition  nouvelle./ 

Esta  collecção  abre  pelo  prefacio  das  respostas  do  editor 
Loyson  (n."  8)  com  a  simples  alteração  de  que  onde  este 
diz:  —  «as  cinco  Cartas  portuguezas » , — lê-se: — «as  doze 
Cartas  Portuguezas,»  —  á  parte  duas  ou  três  outras  modi- 
ficações insignificantes. 

Seguem-se  numeradas  seguidamente  de  —  Premiere  let- 
tre, —  a — Onsième  lettre, — primeiramente  as  cinco  res- 
postas do  editor  Loyson,  e  depois  as  do  editor  Philippes, 
até  pag.  191  que  termina  com  a  palavra  Fin,  sem  que, 
n'este  exemplar  pelo  menos,  se  sigam  as  — plusienrs  nou- 
velles  Lettres  fort  tendres,  etc. — do  titulo  inicial.  Estas  ul- 
timas cartas  deveriam  ser  as  da  presidente  Ferrand  que 
Saint  Léger  erradamente  diz  terem  sido  juntas  «pela  pri- 
meira vez»  ás  Cartas  portuguezas  na  edição  de  1707,  e  que 
Barbier  diz  seguirem-se  em 32  pag.  de  numeração  separada. 

28)  Lettres  d'amour  d'un8  réligieuse  portugaise,  écrites  au 
chevalier  de  C*  officier  en  Portugal. — Derniêre  edi- 
tion. 

A  la  Haye,  chez  Abraham  de  Hont  et  Jacob  Van  El- 
len  Kuysen,  1689. 
(In-12.°  191  ps.) 

Exemplar  da  Bibliotheca  Nacional  de  Paris.  As  sete  car- 
tas de  uma  «senhora  da  sociedade»,  seguidas  das  cinco  da 
religiosa,  alternadas  com  as  onze  respostas  de  Loyson  e  de 
Philippes. 

E.  Asse,  depois  de  fazer  a  observação  que  citámos  em 
relação  á  edição  de  1682,  caeno  erro  commum  de  affirmar 
que  esta  de  1689  é  «a  primeira  que  reuniu  as  doze  carias 
portuguezas.»  Vimos  já  que  não  é,  como  também  não  é  a 
primeira  que  designa  o  destinatário  pela  inicial  C,  segundo 
outro  erro  geral. 


320 


29)  Lettres / d'amour / dfune /  religieuse /portugaisejescrites 

au/Chevalier  de  C./Ófficier  François  en  Portugal./ 
Dérniere  Editiorij  augmentée  de  sept  Let-/tres  avec 
letirs  fíéponses,  qui  n^ont/point  encore  paru  dans  les 
Impressions/precedentes ./  (Esphera) 

A  la  Haye,/Ghez  Corneille  de  Graef,/Marchand  Li- 
braire  sur  la  Grand'Sale/de  la  Cour,  1690. 
(In-ia."  192  ps.) 

Exemplar  do  sr.  J.  M.  Nepomuceno.  Fiando-se natural- 
mente na  indicação  do  editor,  errou  Sousa  Botelho  dizendo 
que  n'esta  edição  —  «pela  primeira  vez  se  imprimiram  jun- 
tas as  doze  cartas  como  pertencendo  todas  á  religiosa. » — 
Errou  também  na  transcripção  do  período  relativo  aos  no- 
mes, no  prefacio,  que  é  o  da  primeira  edição  datada^  de 
Marteau,  com  a  variante  das  —  «douzeLettres». — Esse  pe- 
ríodo diz  pois : — «O  nome  d'aquelle  a  quem  foram  escriptas 
é  Monsieur  le  Che^alier  de  Chamilly,  &  o  nome  d'aquelle 
que  fez  a  traducção  é  Cuilleraque.y» — As  doze  cartas  ter- 
minam a  ps.  84,  começando  com  a  8.*  as  da  Freira,  em 
ps.  41. 

Seguem-se : 
—  RéponsesIdulChevalier  de  C./aux  Lettres/d'amour/d\ne 
Religieuse  en/ Portugal/ Edition  nouvelle./ 

Paginação  continuada.  O  prefacio  de  Loyson,  sem  alte- 
ração do  período: — «Não  sei  o  nome  d'aquelle  que  as  es- 
creveu nem  de  quem  fez  a  traducção»! 

30)  Lettres  portugaises,  avec  les  repouses  traduites  en  fran- 

çois. 

Lyon,  chez  Fr.  Roux  et  Glaude  Ghire. — 1693. 
(In-12.°) 

A  noticia  d'esta  edição  foi-nos  communicada  pelo  sr.  bi- 
bliothecario  municipal  de  Bolonha. 

31)  Five  love-letters  from  a  nun  to  a  Cavalier.  Done  outof 

French  into  English  by  Sir  R.  L'Estrange' 


321 


London.  1693. 
(In-ie.") 

Exemplar  no  Museu  Britânico.  A  primeira  edição  é  cer- 
tamente a  do  nosso  n."  17. 

32)  Letires  d^amour  d'nne  Beligieuse  Portugaise,  écrites 

aii  chevalier  de  C**  ofpcier  François  en  Portugal. 
A  La  Haye,  1693. 

(In-l^.") 

É  uma  das  edições  citadas  no  Catalogus  Libronim  a 
Commissione  Aulica Prohibitorum. Nindobonàe,  Typis  Joan. 
Thom.  de  Trattner,  1765.  Andava  atrazado  o  tal  Índice  ex- 
purgatorio  do  Conselho  Aulico . . . 

Como  a  maioria  dos  nossos  números,  esta  edição  é  des- 
conhecida dos  commentadores  das  Cartas. 

33)  Five  love-letters  writen  by  a  Cavalier  in  ansiver  to  lhe 

five  love  letlers  xcritten  to  him  bíj  a  nun. 
London.  1694. 
(In  12.°) 

Exemplar  do  Museu  Britânico.  É  certamente  a  traduc- 
ção  das  respostas  de  Loyson.  Ao  amável  director  d'aquelle 
Museu  devemos  a  noticia  do  n."  31  e  d'este. 

34)  Letires  I  Porlugai&es I avec I les  /  Réfomes I  traduites I en 

François. I 

A  Lyon/Chez  Jacques  Lion/1695/ 
(In-12.°) 

Dá-nos  noticia  d'esta  edição  o  sr.  bibliothecario  da  Bi- 
bliotheca  Publica  de  Dijon.  E'  das  comminadas  no  Índice 
expurgatorio  do  Conselho  Aulico :  —  Catalogus  Libronim 
etc. 

35)  Lettres/portugaises/avec/les  réponses/iraduites/en  fran- 

çois./ 

A  Lyon/Chez  Sebastien  Roux,  rue  de/la  Barre,  pro- 

F.  21 


32á 

ehe  le  Pont  du  Rone/M.  dc.  xcvi. 
(In-12.°— llGpag.) 

Possuímos  este  exemplar,  offerta  do  sr.  J.  Henrique  Ul- 
rich  (Lisboa).  Prefacio  da  edição  inicial,  apenas  com  o  se- 
guinte additamento  no  primeiro  periodo:  —  «com  as  Res- 
postas pelo  mesmo  Gentil-homemn. 

São  as  cinco  cartas  da  freira  alternadas  com  as  seis  res- 
postas da  edição  Philippes.  Junto  com  a  mesma  obra  e  ten- 
do-a  acompanhado  muito  provavelmente  na  publicação,  está 
a  seguinte: 

36)  Lettres  portugaises/avec/les  réponses/tradidtes  enfran- 

çois.i'òeconde  partie./ 

A  Lyon,/Chez  Sebastien  Roux,  rue  de  la  Barre,  etc. 
M.  nc.  XCVI. 

(In-lS."  119  ps.) 

O  mesmo  prefacio  de  Fr.  Roux  e  Cl.  Chize,  de  1686 
(n.°  26)  que  como  dissemos  é  o  da  edição  inicial  de  Barbin 
com  uma  substituição  que  lhe  altera  diametralmente  a  idéa. 
São  as  sete  cartas  de  uma  «mulher  da  sociedade»,  seguin- 
do-se-lhes  de  ps.  47  em  deante  as  cinco  respostas  de  Loy- 
son.  A  quinta  por  erro  typographico  vae  designada  no  co- 
meço como  seconde  lettre. 

37)  Lettres  d'amour  d'une  rcligieuse  portugaise  Ecrites  aa 

Chevelier  de  C*.  ofjicier  François  en  Portugal.  En- 
richies  et  augmentées  de  plusieurs  nouvelles  Lettres, 
fort  tendres  et  passionnées  de  la  Président  F.  á  Mr. 
le  Baron  de  B. — Dernière  Edition. 
La  Haye,  chez  Abraham  de  Hondt,  Marchand  Li- 
braire  sur  la  grande  salle  de  la  Gour,  á  la  For- 
tune. J/DGXCVI. 

Exemplares  na  Bibliotheca  de  Besançon  e  Cassei,  aos 
amáveis  conservadores  das  quaes  devemos  a  noticia  d'esta 
edição. 


323 


38)  Lettres  d^amour  d'une  Religieuse  portugaise,  écrites  au 

Chevalier  de  G*  oficier  françois  en  Portugal;  der- 
nière  edition  augmentce  de  sept  lettres  avec  leurs  re- 
pouses qui  n'ont  pas  encore  paru  dans  les  impressions 
precedentes. 

S.  1.— 1696. 

(In-12.°  209  ps.) 

Exemplar  na  Bibliotheca  Nacional  de  Paris,  citado  por 
Asse. 

O  titulo  é  idêntico  á  edição  de  Haya,  por  Graef,  em  1690 
(n.»  30). I  :^_, 

39)  Lettres/ d'^amour /d' une/ Religieuse/portugaise/ecrites  o?t 

Chevalier  de  C* ./Ojficier  François  en  Portugal. /En- 
richies  &  augmentées  de  plusieurs  nouvelles  Lettres, 
fortt  endres  et  passionnées  de  la  Président  á  Mr.  Ba- 
ron  de  B./erniere  edition./ — 
A  la  Haye,/Chez  Jacob  Ellinckhuyseen,/Marchant  Li- 

braire  sur  la  grande  Sale/de  la  Gour,  au  Dau- 

phin./M.  DC.  xcvii. 

(1  vol.  — 12.°— 310. 

Exemplar  da  bibliotheca  do  sr.  A.  de  Carvalho  Monteiro. 
Prefacio  da  primeira  edição  de  Barbin  com  a  correcção  da 
de  Pedro  du  Marteau :  —  «O  nome  d'aquelle  a  quem  foram 
escriptas  é  Mr.  le  Chevalier  de  Chamilli,  &  o  nome  d'aquelle 
que  fez  a  traducção  é  Guilleraque ...» 

As  12  Cartas,  começando  as  da  freira^  a  ps.  47  com  a 
8.',  até  94.  Seguem-se  as  —  Reponees/du/Chevalier  de  G./ 
aux  lettres/d'amour/d'une/religieuse/en  Portugal/Nouvelle 
Edition./Com  o  prefacio  inicial  incluindo  a  declaração:  — 
«Não  sei  o  nome  d'aquelle  que  as  escreveu  nem  quem  fez 
a  traducção.»  ete. 

Em  face  do  frontespicio  uma  gravura, — Harreivyn  fecit 
— representando  no  primeiro  plano  uma  freira  escrevendo. 
Emblema  em  circulo :  duas  mãos  entre  nuvens,  uma  segu- 
rando um  coração  e  outra  com  uma  lente  fazendo  incidir 

21  # 


324 


os  raios  do  sol  sobre  aquelle:  Em  volta  a  legenda:  —  Cest 
ainsi  que  1'amour  salume  dam  le  coeur.  Ao  fundo,  á  es- 
querda, atravez  uma  larga  janella  navios  francezes  afas- 
tam-se  da  praia  d'onde  parte  um  pequeno  barco.  A  direita 
a  freira  e  Chamilly,  n'um  quarto  de  cama  sentados,  ella, 
no  leito,  e  elle  n'um  sopbá,  ao  lado. 

E'  a  primeira  edição  em  que  apparece  uma  gravura  allu- 
siva  á  religiosa.  Na  nossa  primeira  edição  só  podemos  guiar- 
nos  pela  citação  de  um  exemplar  no  Ellis  X  Elveygs  Cat. 
of  old  BookSi  n.°  61,  sob  a  designação  de  Alcnforada  (Ma- 
riane),  1887. 

Na  nossa  bibliographia  anterior  introduziu-se  errada- 
mente, com  a  data  de  1797,  sob  o  n.°  60,  um  exemplar 
d'esta  edição,  da  bibliotheca  de  Mannheim  (Schloss). 

40)  Lettres  Portugaises,  avec  les  réponses  traduites  en  fran- 

çois. 

Lyon,  chez  Jean  Viret,  J697. 

(In-12.°) 

Esta  edição  é-nos  communicada  pelo  sr.  bibliothecaria 
mun.  de  Bolonha. 

41)  Becueil/ de/ lettres  galantes/et  amourenses/d' Heloise  a 

Abailordf  /  d'une  religieiíse  portngaise  /  au   Cheva- 
lier***/Avec  celles  de  Cleante  &  de  Belise,/&  leur 
Béponse /etc. 
Amsterdam.  Chez  François  Roger,  etc.  mdcxcix. 

Exemplar  na  Bibliotheca  Nacional  de  Lisboa. 
De  paginas  121  (inum.)  a  294: 

=  Lettres  /d'Amour  /  d''une  /Beligieuse/portugaise/écrites 
au/Chevalier  de  C***/officier  françois  en  Portugal. /Avec 
les  Beponses  da  dit  Chevalier  en/suite  des  Lettres  de/ladi  e 
Beligieuse./ 

O  prefacio  da  edição  inicial  de  Barbin,  substituido  o  tre- 


325 


•cho  relativo  aos  nomes  do  destinatário  e  do  traductor,  por 
este: 

—  «O  nome  d'aquelle  a  quem  foram  escriptas  é  Monsieur 
le  Chevalier  de  Chamilly^  e  o  nome  d'aquelle  que  fez  a  tra- 
ducção  d'ellas  é  Guilleraque.» 

42)  Lettres/d^amour/d\ne/religieuse/portugaise/écrites  auf 

Chevalier  de  C./officier  Francois  en  Portugal J Aveç 
les  Repouses  du  dit  Chevalier  en/suite  de  chacune  des 
Lettrcs  de/ladite  ReKgieuse./Imprimées  cette  Année.f 
S.  1.  n.  d.  12.°— 248  pas. 

Pela  disposição  typographica  do  titulo  deve  ser  uma  ti- 
ragem da  2.''  parte  da  edição  precedente.  Encontro  o  apon- 
tamento d'ella,  mas  não  me  recordo  quem  m'o  oífereceu 
ou  como  o  obtive. 

43)  Lettres  d'amour  d^ne  Religieuse  Portugaise,  traduites 

du  Portugais. 
LaHaye  — 1701. 

(In-12.°) 

Exemplar  no  Museu  Britannico. 

44)  Lettres  d^amour  d^une  Religieuse  portugaise^  écrites  au 

chevalier  de  C*,  efficier  francois  en  Portuqal,  en- 
richiées  et  augmentées  de  plusieurs  nouvelles  lettres 
fort  tendres  et  passionées  de  la  Presidente  de  F*  a  M. 
le  Baron  de  B*;  derniere  édition. 
La  Haye,  Abraham  de  Hondt.  1701. 
(In-12.°  310  ps.) 

Citada  por  Asse. 

45)  Five  love  lettres  from  a  nun  to  a  Cavalier,  etc. 

London,  1701. 

(In-16.°) 

Exemplar  no  Museu  Britannico. 


326 

46)  Lettres  portugaises. 

A  la  Haye,  Jacob  Van  Ellinckuysen — 1707. 
(In-12.°  309  ps.) 

Citada  por  Saint-Léger,  que  diz  que  n'ella  se  juntaram 
pela  primeira  vez  as  cartas  da  Presidente  Ferrand  ao  barão 
de  Breteuil,  e  accreiscenta  ainda  que  contém  pela  primeira 
vez,  também,  as  12  cartas  em  vez  de  5  e  as  11  respostas 
«í/m  chevalier  C***y> 

Vimos  já  que  uma  e  outra  coisa  é  inexacta. 

47)  Lesplusbelles/leítres/françoises/surtoutes  sortes/ de  su^ 

jetsJTirées  des  meillenrs  Auteurs,  avec  des  Notes, j 

par  P.  Richelet ,/ Quatrième  édition 

A  la  Haya  —  Chez  Louis  et  Henri  van  Dole,  etc. — 

M.DCC.Vm 

(2  vols.) 

Exemplar  na  Bibliotheca  da  Academia  Real  das  Sciencias 
(Lisboa). 

No  primeiro  volume,  em  seguida  a  paginas  124,  começa 
a  collecção  das  Lettres  passionées,  encontrando-se  n'ellaas 
cinco  cartas  da  freira  portugueza,  com  os  seguintes  titu- 
los; 

1."  (ps.  130)  —  A  Monsieur  le  C*/Absence  insupportable/ 

2."  (ps.  143)  — il  Monsieur  le  C. 

3.^  (ps.  149)  —  ^  Monsieur  le  C** 

4."  (ps.  154)—^  Monsieur  le  C.  de  C*** 

5.'  (ps.  165)  —  A  Monsieur  le  C.  de  C*** 

A  redacção  foi  revista  no  pensamento  de  a  tornar  mais 
correcta  como  modelo  epistolar  francez,  sendo  na  ultima  o 
nome  de  Dona  Brites  substituído  pelo  mais  euphonico,  de 
Emile.  A  primeira  edição  d'esta  obra  é  de  1698,  chez  Mi- 
chel  Brunet,  sendo  provável  que  n'ella  e  nas  duas  que  se 
lhe  seguiram  viessem  já  as  cartas  da  freira  portugueza.  Não 
pudemos  ver  nenbuma  d'essas  edições.  Posto  que  a  obra  te- 
nha uma  noticia  dos  auctores  das  cartas  de  que  se  compõe, 


327 


nenhuma  indicação  ou  allusão  se  faz  á  procedência  das  car- 
tas da  freira,  e  o  mesmo  succede  na  noticia  elogiosa  que  faz 
do  livro  o  Journal  des  Savants^  d'aquelle  anno. 

48)  Nouveau  recucil  cmtenant. .  .  les  lettres  d\ne  religieuse 

portugaise  écrites  au  Chevalier  de  C***  ofpcier  f ran- 
çais en  Portugal,  a,vec  les  réponses  du  dit  chevalier  en- 
suite  de  chacune  des  lettres  de  la  dite  religieuse. 
Bruxelles— 1709. 
(In- 12.°) 

Citada  por  Langlet  e  Saint  Léger.  Este  ultimo  diz  que 
ella  «contem  também  a  vida,  os  amores  desventurados  e  as 
cartas  de  Abeilard  e  de  Heloisa»,  e  segundo  informação  que 
recebemos  do  sr.  conservador  da  Bibliotheca  de  Nantes, 
onde  existe  um  exemplar,  as  cartas  da  freira  occupam  de 
ps.  209  a  362  da  collecção. 

49)  I^ouveau/recueilj/contenant/la  vie,  les  amoursjles  in- 

fortunes,/et  les  Lettres  d'Abailard  &  d'Heloise:/Les 
Lettres  d^une  Religieuse  Portugaise  &du  Chevalier***/ 
celles  de  Cleante  et  Belise./Avec  VHistoire  de  la  Ma- 
trone  d^Ephese. 
A  Bruxellas,  Chez  François  Foppens,  au  Saint-Es- 

prit.  —  M.DCC.XIV. 

(1  vol.  In-12.°— 479). 

Exemplar  do  sr.  Carvalho  Monteiro.  Frontispicio  apreto 
e  vermelho.  A  ps.  209: — Lettres/ d' amour/d'une/ Religieuse/ 
Portugaise, /écrites/au  Chevalier  de  C***/Officier  François 
en  Portugal. /Avec  les  Réponses  de  ce  Cavalier/ensuite  de 
chacune  des  Lettres  de  cette  Religieuse.  Até  ps.  362. 

Inclue  as  7  e  as  5  cartas,  começando  estas  na  8."  Pre- 
facio das  edições  iniciaes  com  a  declaração  do  destinatário: 
—  Monsieur  le  Chevalier  de  Chamilly,—  e  dotraductor: — 
Guilleraque. 

50)  Lettres/d'amour/d'une/religieuse  portugaise /Ecrites  au 

Chevalier  de  C./Ojficier  François  en  Portugal. /Enri- 


328 

chies  &  augmentées  deplusieurs  nouvelles/LetireSj,  fort 
tendres  &  passionées  de  la/ Président  F.  à  Mr.  le  Ba- 
ron  de  D./Nouvelle  edition/. 

A  la  Haye,/chez  Les  Fréres  van  Dole,  Mar/chands 
Libraires,  dans  le  Pooten./M.DCc.xvi. 
(In-12.°  373  ps.) 

Possuímos  um  exemplar  d'esía  edição,  que  é  das  mais 
cuidadas.  Frontispicio  a  preto  e  vermelho,  precedido  de 
uma  bella  gravura  assignada:  D.  Coster  fecit.  A  gravura 
representa  uma  formosa  religiosa  sentada  a  uma  mesa  e  em 
altitude  de  suspender  a  escripta  de  uma  carta,  para  meditar. 
No  panno  da  mesa  um  emblema  allusivo  aos  raios  do  sol, 
queimando  atravez  de  uma  lente  um  coração.  Duas  mãos 
entre  nuvens  seguram,  uma  a  lente,  a  outra  o  objecto  in- 
cendiado. Rodeia  o  emblema,  que  é  como  se  vê  o  mesmo 
da  gravura  de  Harrewyn,  da  edição  de  1697,  egual  Xq^qu- 
da:=<iC'*esí  ainsi  que  1'amour  s'alluine  dans  le  cceury>.  Ao 
fundo  e  á  esquerda  abre-se  uma  galeria  ou  balcão  deixando 
ver  o  mar  e  um  grande  navio,  com  a  bandeira  das  flores 
de  lirio,  que  se  afasta, —  á  direita  uma  alcova,  onde,  junto 
de  uma  religiosa  sentada  á  beira  de  um  leito,  ajoelha  um 
homem  em  attitude  de  protestar-lhe  amor. 

O  prefacio  é  o  da  edição  inicial  de  Barbin,  com  a  substi- 
tuição da  edição  primeira  de  Marteau. 

Até  paginas  114,  seguidamente,  doze  cartas,  sendo  as  pri- 
meiras as  sete  da  «senhora de  sociedade» ,  e  da  8."  em  deante 
as  da  freira  portugueza.  Seguem  se  as  duas  coUecções  re- 
unidas das  respostas  de  Loyson  e  Philippes,  até  paginas  254, 
erradamente  numerada  como  454,  e  com  o  seguinte  fron- 
tispicio : — Repouses jdu  Chevalier  de  C ./auxleítres/d^a77iour/ 
d\me/religieiise/en  Portugal./ Nouvelle  edition. 

O  prefacio  d'esta  parte  é,  sem  alteração,  o  da  collecção 
de  Loyson. 

Seguem-se : —  (íNouvelles/lettres/d'amour, /Fort  tendres, 
&  fort  Passionnées/De  la  Presidente  F./à  Mr.  le  Baron  de 
B.y>  Nas  duas  ultimas  paginas  um  soneto  de  Chapelle,  e 
outra  pequena  composição  poética  epigraphada:  sur  une 
absence. 


329 


51)  Nouveaii  recueil  de  lettres  contenant  la  vie,  Irs  amours, 

les  infortunes  et  les  lettres  d^Héloise  et  d*Abélard;plu- 
sieurs  lettres  galantes  et  amoureuses,  avec  l'histoire 
de  la  Matrone  d^Ephèsvj  les  lettres  d'ammir  d'une 
religieuse  portugaise,  écrites  au  chevalier  C***,  ofíi- 
cier  [rançais  en  Portugal  et  les  réponses  dudit  Che- 
valier, à  la  suit  des  lettres  de  ladite  religieuse  et  cel- 
les  de  la  presidente  Ferrand,  sous  les  noms  de  Cléante 
et  de  Bélise. 
Anvers — 1734. 
(2  vols.) 

Citada  por  Saint-Léger. 

52)  Nouveau / recueil, / contenant/la  vie,  les  amours, /les  in- 

fortunes,/les  lettres/d'Ahailard,/et  i'Helo'ise,/Et  plu- 
sieurs  autres  Lettres  Amoureuses, /tirées  des  meil- 
leurs  Auteurs./Avec  VHistoire  de  la  Matrone  d'Ephe- 
se./ Divise  en  deux  Tomes.  etc. 
A  Anvers. /Chez  Samuel  Le  Noir,  Marchand/Librai- 
re,  1738. 

2  vols.  12.°— í)  inn.  232-228. 

Exemplar  do  sr.  Carvalho  Monteiro.  O  2.°  vol.  intitula-se : 

—  Nouveau/Recueil/de  Lettres  Galantes/de  Cleaníe/et/de 
Belise;/ avec /les  lettres  d'amour/d'une  Religieuse  Portugaise, 
écrites/au  CÁevalier  de  C,***  officier  Fran-/çois  en  Portu- 
gal./Et  les  Réponses  du  dit  Chevalier  ensuite  de/chacune  des 
Lettres  de  ladite  Religieuse./ 

Tem  a  mesma  data  do  primeiro,  e  como  elle,  a  preto  e 
vermelho  o  frontispicio.  Um  aviso  —  lAu  lecteur»  —  enca- 
rece o  merecimento  das  cartas  contidas  no  volume,  não  se 
referindo  porém,  evidentemente  ás  da  freira,  mas  á  grande 
collecção  por  que  começa  de — «Lettres  galantes  de  Mada- 
me***»—  (não  menos  de  72). 

Na  pagina  que  deveria  ser  83  começam  as  portuguesas 
com  este  novo  frontispicio : 

—  Lettres/d'amour/d'une/religieuse/povtugaise/écrites/au 


330 


Chevalier  de  C***/Ofpder  François  en  Portvgal./Avec  les 
Béponses  cludit  Chevalier  ensuite/de  chacune  des  Lettres  de/ 
ládiíe  fíeligieuse./ 

Aviso — «Au  lecteur,» — com  ligeira  variante,  o  de  Bar- 
bin,  mas  com  a  expressa  declaração  do  destinatário  —  i/ow- 
sieur  le  Chevalier  de  Chamilly, —  e  do  traductor — Guil- 
leraque. — 

Reúne  as  12  cartas  e  as  respostas,  começando  as  da  freira 
na  VIII. 

53)  Lettres / d' Amour / d\>ne / fíeligieuse / Portvgaise /écrites 
aujChevalier  de  C./officier  François  en  Portugal/ fíe- 
vneSj,  corrigées,  &  avgmentées  de plus/sieurs  nouvelles 
lettres,  &  de  diffe/rentcs  Pièces  de  Poesie / Nouvelle 
edition/ 

A  la  Ílaye/Chez  Antoine  van  Dole/M.DCC.XLU. 
(2  vols.  12."  408-408  ps.) 

Exemplares  na  Bibliolheca  Nacional  de  Lisboa,  Biblio- 
theca  Municipal  do  Porto  e  de  Carva  ho  Monteiro. 

Frontispício  a  vermelho  e  preto.  No  começo  de  cada  vo- 
lume a  gravura  de  Coster,  da  edição  dos  Irmãos  van  Dole, 
de  1716.  Dedicatória: — «A  Madame  J.  C.  W.***» — por 
António  van  Dole,  em  1  de  dezembro  de  1751.  Até  paginas 
266  do  primeiro  volume  as  doze  cartas  (cinco  da  freira  e 
sete  da  «senhora  da  sociedade»)  com  as  respostas  uma  a 
uma. 

54) : 

Anvers,  cbez  Samuel  le  Noir,  1747. 

Citada  por  Saint-Léger,  que  não  reproduz  o  titulo.  Deve 
ser  reedicção  da  de  1738  do  mesmo  impressor,  n.°  51. 

55)  Lettres  portngaises  en  vers  par  M."^  d^Oh** 
Lisbonne,  1759. 
(In-8.°) 

Citada  por  Barbier,  Sousa,  etc. 


331 


É  uma  imitação  em  verso  da  1/  e  4."  carta,  pelo  mar- 
quez  A.  L.  de  Ximenes.  Foi  impressa  em  Paris — chez  N. 
B.  Duchesne, — e  não  em  Lisboa.  O  sr.  bibliothecario  de  Bo- 
lonha communica-nos  a  existência  de  um  exemplar  n'aquella 
bibliotheca. 

56)  Lettres  poringaíses  en  vers  par  M."^  d* Oh** 

Franeíort  s/Meno  — 1760. 
(In-8) 

Indicada  por  Barbin  {Dic.  des  ouv.  anon.  1874)  como 
nova  edição  da  imitação  antecedente,  acompanhando  as 
*  Qnatre  parties  dujoury>  do  abbade  de  Bernis. 

57)  Letlres/d^une  chanoincsse/de  Lisborine/a  Melcour./Offi- 

cier  françois,/precédees  de  qnelques  réflexíons./ 
A  la  Haye,  etc.  m.dcc.lxx. 
(In-8.°117ps.) 

Bibl.  do  sr.  J.  M.  Nepomuceno. 

É  a  imitação  em  verso  de  Dorat.  N'um  aviso  junto  no 
fim  do  exemplar  que  examinei,  Delalain  dizendo  que  tem 
na  sua  livraria  as  obras  de  M.  D.  (M.  Dorat)  em  6  peque- 
nos volumes,  acrescenta  que  fez  extrahir  exemplares  das 
Lettres  d\ne  chcmoinesse  em  papel  de  Hollanda  para  os  que 
quisessem  juntal-os  aos  Baisers. 

58)  Lettres/d\ne  chanoinesse/de  Lisbonne/A  Mercour^/ofji- 

cier  françois,/sidvies  de  fEpitre  intituléejMa  Philoso- 
qhiejet  de  quelqiies  poesies  fngitives./Seconde  edifion. 
A  la  Haye,/dc  se  trouve  à  Paris,/Chez  Delalain  etc./ 

MDCCLXXI. 

(ín-8.°  228  ps.) 

Possuímos  um  exemplar.  É  a  imitação  em  verso,  em  16 
cartas,  de  Dorat,  precedidas  das  suas — «Beflexions  préli- 
minairesD, —  e  seguida  de  outras  composições,  entre  as 
quaes  a  Epitre  d\n  Cure,  que  lhe  foi  attribuida.  Com  bel- 
las  composições  de  Eisen  e  Marillier,  gravadas  por  Massard 
e  Ghenat. 


332 


59)  LeUres I  d'une  chanoinesse/de  Lisbonne./  A  Melcour./ 

ojficier  françois;/  suivies/  de  Vepitre  intitulée/Ma  phi- 

losophieJEt  de  quelques  Poesies  Fugitives.f 

A  Paris,/et  se  vend  a  Mons,/Chez  Henri  Hoyois,  im- 

primeur  &  Libraire,/rue  de  la  Chef,  vis-à-vis  du 

Pataeon .  — m.  dcc  .  lxxv. 
(In-8.°— XXXVI  — 152) 

Exemplar  no  Museu  Britannico  e  na  biblictheca  de  Car- 
valho Monteiro. 

Abre  com  uma — «Lettre  d'un  philosjphe.»  —  não  apon- 
tada no  Índice,  seguindojse  depois  as — «Reflexions  préli- 
minaires,»  —  de  Dorat.  É  a  imitação  em  verso,  deste,  como 
previramos  na  primeira  edição  da  Soror. 

60)  Lettres I  d'amour I d'une I  Religieuse I portugaíse,  lécritesj 

aii  Chevalier  de  C./Officier  François  en  Portugal;/ 
Revues,  corrigées,  &  augmentées  de  nouvelles/Letires, 
&  de  differentes  Pieces./Nouvelle  édition./ 
A  Londres,/Ghez  C.  G.  Seyffert,  Libraire. 

M.DCC.LXXVH. 

(2  vols.  In-12.''— 2o2-237.) 

Exemplar  de  A.  Carvalho  Monteiro. 

Carta-dedicatoria  innumerada, —  «a  Madame,  Mad.  J. 
C,  W***» — exactamente  a  mesma  de  António  Van  Dole 
(ed.  de  1742  etc.)  mas  sem  data  nem  assignatura,  é  claro  I 
O  mesmo  prefacio  ou  «Avertissement  du  libraire»,  e  até  os 
—  «quelques  lambeaux»  —  das  Poesies  Francoises  do  abbade 
Regnier  Desmarais. .  . 

No  primeiro  volume  as  12  cartas  cada  uma  com  uma 
das  Respostas.  Em  seguida  á  ultima  da  freira,  ou  á  ps.  160, 
as — «Nouvelles/lettres/d'amour,/fort  tendres  &  fort  pas- 
sionnées,  de  la/Présidente  F./a  Mr.  le  Baron  de  B./» — as 
poesias,  etc. 

0  2."  vol.  com  titulo  egual  ao  primeiro  é  uma  miscel- 
lanea  de  cartas  e  poesias,  duas  composiçães.  —  Le  Voyage 
de  Visle  d'Amour  —  e  outras  sensaborias. 

Diz  Saint  Léger :  —  «É  um  farrago  de  obras,  de  fragmen- 


333 


tos  de  poesia  de  Regnier  Desmarais,  ele.  tudo  quanto  ha 
de  peiores  versos,  de  mais  chatas  e  ridiculas  semsaborias, 
que  não  são  dignas  de  impressão;  uma  viagem  a  uma  ilha 
do  Amor  que  merecia  ser  submergida,  eglogas,  madrigaes, 
estancias  epitaphios,  etc.» 

61)  Lettres  de  tendresse  et  d'amour,  contenant  les  Lettres 
amoureuses  de  Julie  à  Ovide,  par  M.  D.  Ai***,  avx- 
guelles  on  ajoint  les  reponses  d'Ovide  à  Julie  par  M. 
C***,  suivies  des  Lettres  galantes  d'une  chanoinesse 
portugaise. 

Amathonte  et  Paris. —  Cailleau  (s.  d.) 
(2  vols.  In-lâ.") 

Citada  por  Saint-Léger  que  lhe  fixa  a  data  de  1778,  e 
por  Barbier  que  em  parentheses  dá  as  seguintes  elucida- 
ções. 

—  M.  D.  M***  =  Charlotte-Antoniette  de Bressey,  mar- 
quise de  Leray-Marnézia. 

—  M.  C***  =  A.  C.  Cailleau. 

e  para  as  cartas  da  Chanoinesse  portugaise: 

—  «traduzidas  do  portuguez  de  Marianna  Alcoforada,  re- 
ligiosa, pelo  conde  de  Lavergne  de  Guilleragues.» 

Saint-Léger  observa,  a  propósito  d'esta  edição,  o  seguinte: 

—  «Permittiram-se  corrigir  as  Cartas  Portuguezas,  diz-se 
n'um  prefacio  que  sobre  o  próprio  original  que  nunca  se 
encontrou,  desbastando  o  que  se  chama  galimathias  duplo. .. 
Posto  que  elle  (Cailleau)  pareça  bastante  instruído,  não  diz 
uma  palavra  acerca  do  histórico  d'estas  Cartas,  e  para  não 
conservar  o  estylo  do  traductor,  que  foi  quem  viu  o  origi- 
nal, substituo  phrases  a  seu  gosto  que  julga  mais  claras  para 
os  leitores  que  não  tiverem  o  espirito  da  religiosa.»  Isto  si- 
gnifica que  a  edição  de  Cailleau  pouco  menos  é  do  que  uma 
imitação  ou  de  que  uma  contrafeição. 

É  curioso  também  que  Sousa  Botelho,  que,  assim  como 
Saint-Léger,  não  diz  porque  attribue  a  Subligny  a  traduc- 
ção,  note  que  Cailleau  a  attribua  a  Guilleragues  —  «sem  di- 
zer em  que  se  funda  para  isso.»  Naturalmente  fundava-se 
na  tradição  única  e  constante  transmittida  pelas  edições  an- 


334 


teriores,  em  nenhuma  das  quaes  appareee  o  nome  de  Su- 
bligny. 

62)  Leítres/d^une  chanoinesse/de  Lisbonne/a  Melcourjoffi- 

cier  français,/suivies  de  1'épitre  intitulée/Ma  Philo- 
sophiejet  de  quelques  poésies  fugitives/par  M  Dorat. 
A  Paris/Chez  Delalain,  etc.  mdcclxxx. 
(In-8.°  96-44-86  ps.) 

Possuímos  um  exemplar  d' esta  edição  da  imitação  de  Do- 
rat. 

As  mesmas  gravuras  de  Eisen  e  Massard,  já  um  pouco 
cançadas,  da  edição  de  1771.  A  principal  representa,  junto 
a  um  luxuoso  leito^  um  Amor  que  deixou  cahir  um  facho, 
e  soror  Marianna,  sob  a  figura  de  uma  formosa  mulher,  cho- 
rosa e  aíílicta,  em  desalinho,  um  dos  seios  descoberto.  Ao 
fundo,  atravez  de  uma  janella,  vé-se  um  navio  que  se  afasta. 
A  imitação,  ou,  mais  propriamente,  a  composição  de  Dorat, 
abre  por  uma  vinheta  representando  a  religiosa  sentada  a 
uma  mesa,  interrompendo  a  escripta  para  contemplar  um 
retrato.  No  fim  das  LeWres^  outra  vinheta  emmoldurada  em 
flores,  figura  um  Amor  conversando  com  uma  freira  nas 
grades  conventuaes. 

Muito  extravagantes  os  nomes  substituídos  por  Dorat. 
Ghamilly  vimos  já  que  é  Melcour,  continuando  comtudo  a 
ser  officier  français;  Marianna  passa  a  chamar-se  Euphra- 
sie,  e  Dona  Brites  é  Dona  Mélés! . . . 

63)  Lettres/d^une  chanoinesse/de  Lisbonne/A  Melcour,/ O fji- 

cier  françois,/sumes  de  VÉpitre  intitulée/Ma  Philo- 

sophiejet  de  quelques  poésies  fugitives  ./Nouvelle/édi- 

tion. 

A  Paris,/Ghez  Delalain,  rue  de  la  Gomédie  Fraçoise./ 

M.  DCG.LXXXn. 

(1  vol.,  136  ps.) 

Exemplar  do  sr.  A.  Garvalho  Monteiro.  É  a  imitação  em 
verso  de  Dorat,  etc,  sem  gravuras. 


335 

64)  Briefwechsel  einer  Porlugiesischen  nonne  mit  dem  Kit- 

ter  von  Chamilly. 
Rotenburg  and  der  Fielle,  1788. 
(In-8.°) 

Exemplar  no  Museu  Britannico. 

65)  Lettres  portugaises. 

Paris,  Gliez  Delance. — 1796. 

(In  2  vols.  12-xxxiv,  125,  140  ps.) 

Exemplar  na  Bibliotheca  Nacional  de  Paris.  As  li  car- 
tas, começando  pelas  7  da  «senhora  da  sociedade»  e  prece- 
didas por  uma  noticia  histórica  e  bibliographica  que  na  edi- 
ção de  1806  se  diz  ser  do  abbade  Mereier  de  Saint-Léger, 
assim  como  se  declara  que  esta  primeira  edição  de  Delance 
lhe  fora  confiada  ou  incumbida  pelo  sr.  Aubin.  O  que  é 
curioso  é  que  Saint-Léger,  considerando  todas  as  doze  car- 
tas como  authenticas,  constitue  com  as  sete  da  «senhora  da 
sociedade»  uma  primeira  parte,  e  com  as  cinco  uma  se- 
gunda parte,  ao  contrario  precisamente  da  publicação  ini- 
cial, observando  comtudo  o  seguinte:  —  lA  primeira  parte 
(a  d'elle)  não  foi  obtida,  segundo  toda  a  apparencia,  senão 
posteriormente,  mas  diííerentemente  das  respostas  suppos- 
tas,  ella  apresenta  muitos  caracteres  de  identidade,  de  es- 
tylo,  de  originalidade  de  fundo,  para  que  se  duvide  de  que 
é  também  authentica.» 

66)  Lettr es] portugaises. INouvelle  éditionJAvec  les  imita- 

tions  en  vers/par  Dorat. 
Paris — De  Timpr.  de  Delance  — 1806. 
(In-8.°  183  ps.) 

Possuímos  um  exemplar  d' esta  edição,  em  vel.  sup.  Pre- 
cedida de  um  Avertíssement  de  Vimprimeur,  da  notice  his- 
torique  et  bibliographique  do  abbade  Mereier  de  Saint-Léger 
(da  edição  de  1796),  com  notas  de  Barbier,  e  das  Refle- 
xions  préliminaires,  de  Dorat.  Contém  doze  cartas,  segui- 
damente as  sete  attribuidas  a  uma  «senhora  da  sociedade» 


336 


e  as  cinco  da  freira,  e  depois  as:  —  Imitations/en  vers/des 
lettres  precedentes, ipar  Dorat. 

Segundo  o  avertissement  da  edição  do  anno  seguinte 
(1807);,  esta  de  1806  foi  publicada  em  agosto,  em  12.°  pa- 
^  pel  velino  e  em  8.°  papel  velino  superfino,  sendo  rapida- 
mente esgotada.  O  Journal  de  VEmpire  deu  noticia  elo- 
giosa, mas  em  parte  errada,  d' esta  edição. 

67)  Leítres/portugaises./Troisième  éditionjavec  les/imita- 

tions  en  vers  par  Dorat. 

Paris — De  la  impr.  de  Delance. — 1807. 

(In-12.°— 183ps.) 

Possuimos  um  exemplar  d'esta  edição.  É  a  reproducção 
da  edição  de  Delance,  de  1806. 

68)  Letters/from  a/Portuguese  Nun/to/an  Ofjicer/in  ihe/ 

french  army. 

Translated  by/W.  R.  Bowles,  Esq. 
London  :/Printed  for  S.  A.  and  W.  Oddy,  27  Oxford- 
Street;/and  C.  La  Grange,  Nassau-Street,  Dublin./ 
T.  Giilet,  Printer,  Crown-court./1808. 
(1  vol.  8.°  peq.  xvi-125) 

Exemplar  de  Carvalho  Monteiro.  Gravura  em  cobre  em 
face  do  frontespicio,  representando  a  freira  interrompendo 
uma  carta  para  contemplar  o  retrato  de  Chamilly: — Craig 
dei.  —  Machenzie  se. —  e  por  legenda  a  passagem  de  uma 
das  Cartas  relativa  ao  retrato; — London,  Published  by  S. 
A.  &  H.  Oddy.  Fev.  20.  1808.  Um  pequeno  prefacio  elo- 
gioso das  Cartas,  e  uma  —  historical  introduction  —  baseada 
sobre  o  trabalho  de  Saint-Léger.  As  doze  cartas,  começando 
na  8."  as  da  freira. 

69)  Lettres/de/tendresse  et  d'amour,/contenant/les  Lettres 

de  Julie  à  Ovide,  et  d^Ovide  à  Julie ;  suivies  des  Let- 
tres Galantes  d'une/Chanoinesse  Poiiugaisej  des  Let- 
tres de/Babet  et  des  réponses  de  son  Amant ;  des/ Let- 
tres d'amour  d^une  Dame  Philosophej/des  Lettres  de 


337 

la  Presidente  de  Ferrand  au/Baron  de  Berteuil;  et  de 
celles  d^Héloise/et  d^Abeilard. 

—  A  Paris/ — Chez  Léopold  Collin.  Libraire,  rue/ 
Gille-Coeur./— 1808. 

(In-12.0— 2vols.) 

Exemplar  de  Carvalho  Monteiro.  As  Cartas  portuguezas 
occupam  com  as  de  Boursault  (Babet  et  des  réponses,  etc.) 
o  2."  volume.  Em  avertissement,  um  extracto  do  prefacio 
do  abbade  de  Saint-Léger. — A  collecção  comprehende  as 
12  cartas,  começando  as  da  freira,  com  a  vni, 

70)  Lettres  / from  a/Portuguese  Nun/to/an  officer/in  the/ 

french  armyj Translated  by/W.  B.  Bowles,  Esq./  Se- 

cond  edition./ 

London  :/Prmted  for  Sherwood,  Neerly,  and  Jones,/ 

Paternoster  row./1817. 

(T.  Davison,  etc.) 

(1  vol.  6.0— 128) 

Exemplar  de  Carvalho  Monteiro.  Com  a  mesma  gravura 
da  primeira  de  Bowles.  As  12  cartas. 

71)  Cartas  de  uma  religiosa  porta gueza. 

—  Obras  completas  de  Filinto  Elysio. — Tomo  x. — 
Paris  na  officina  de  A.  liobee. — 1819.  Ps.  430  a 
494. 

É  a  traducção  por  Francisco  Manuel  do  Nascimento,  das 
doze  cartas,  começando  na  8.*  as  cinco  da  freira  portu- 
gueza.  Filinto  além  de  não  pôr  a  menor  duvida  á  authen- 
ticidade  portugueza  d'essas  Cartas,  parece  considerar  tam- 
bém como  authenticas  as  respostas  de  Loyson,  pois  em  nota 
á  carta  em  que  a  religiosa  se  queixa  de  que  o  amante  lhe 
não  escreva,  diz : 

—  «Escreveo,  e  mui  ternamente:  mas  a  abbadessa  que 
recebeo  essas  cartas  nunca  as  quiz  entregar  á  Religiosa  que 
estas  escrevia.  Existem  as  cartas  do  oflicial  francez,  e  an- 
dão  juntas  ás  primeiras.» 

F.  22 


338 


72)  Lettres/poi'tugaises./Nouvelle  édition,/revue/et  corrígée 
sur  la  première./ 

A  Paris,/Chez  Kleffer,  libraire  éditeur,/rue  d'enfer- 
Saint  Michel,  n.°  2./Novembre  1821./ 
(In-12.''— xxi-131) 

Exemplar  de  Carvalho  Monteiro,  etc.  As  12  cartas,  co- 
meçando as  da  freira  com  a  8/ 

Sousa  Botelho  diz  d'esta  edição; —  «inverteu-se  a  ordem 
das  cinco  cartas,  sem  rasão  alguma  e  contra  toda  a  proba- 
bilidade; na  primeira  edição  ellas  devem  ter  sido  datadas  e 
dispostas  segundo  as  datas.» 

Bem  se  vê  que  Sousa  nunca  examinou  a  primeira  edição. 
Não  tendo  podido  também  no  nosso  primeiro  trabalho,  exa- 
minar a  edição  de  Kleffer,  apontámol-a  apenas  pelas  in- 
dicações succintas  recebidas  então  das  bibliothecas  publi- 
cas de  Paris  e  de  Nantes.  Posteriormente,  porém,  adque- 
rido  na  venda  da  livraria  Rebello  da  Fontoura  (Londres) 
pelo  sr.  Carvalho  Monteiro,  um  exemplar  d'esta  edição,  fo- 
mos agradavelmente  surprehendidos  por  ver  que  a  inver- 
são accusada  por  Sousa  Botelho,  era  exactamente  a  mesma 
a  que  chegáramos  também  pelo  estudo  critico  das  Cartas : 
—  passando  a  suposta  segunda,  a  ser  a  quarta,  e  esta  para 
o  logar  d'aquella  I  E  não  é  exacto  que  esta  inversão  se  fi- 
zesse, como  diz  Sousa,  «sem  rasão  alguma».  No  seu  Avis 
au  ledeur,  a  edição  Kleffer,  expressamente  diz  o  seguinte : 

—  «Tinha-se  por  tal  forma  desfigurado  estas  cartas,  con- 
fundindo-as  com  outras,  sob  o  titulo  de  Cartas  d'amor  ou 
Amorosas,  em  collecções  de  tão  mau  gosto,  de  tão  deplo- 
rável escolha,  com  tantas  faltas  de  senso  e  de  typographia, 
que  era  restituir-lhes,  d'alguma  maneira,  a  celebridade  que 
merecem,  separal-as  desse  montão  de  cousas  insípidas  em 
que  haviam  estado  por  tanto  tempo  enterradas.  Um  editor 
fel-o  já,  mas  não  tendo  podido  encontrar  a  edição  primi- 
tiva, deixou  subsistir  um  grande  numero  de  alterações  e  de 
omissões.  Nem  sequer  reparou  que  a  maior  parte  das  car- 
tas estavam  transpostas,  o  que  quebrava  o  fio  dos  successos, 
na  verdade,  muito  simples,  que  se  encontrava  n'esta  obra. 
Na  falta,  mesmo,  de  successos,  a  differença  de  sentimentos 


339 


feí^/a  bastado  para  mostrar  que  estas  cartas  não  estavam 
dispostas  na  sua  ordem  natural. »  Pena  é  que  a  mesma  ob- 
servação critica  não  tivesse  feito  separar  as  cartas  da  freira, 
das  outras  sete.  Fizeram-se  ainda  outras  alterações,  no  pró- 
prio texto.  Assim  a  primeira  carta  de  Marianna  começa: — 
«Considere,  mon  coeur. . . »  em  vez  de —  «Considere,  mon 
amour ...» 

Sousa  attribue  também  a  data  de  1823,  á  edição  de  Kle- 
ffer.  Será  erro  typographico  ou  edição  nova? 

73)  Lettres/portugaises/ Nouvelle  édition, /conforme  a  la  1" 

(Paris,  Cl.  Barhin,  IQG9), /avec/ Une  notice  biblio- 
graphique  sur  ces  lettres. 
Paris,/Chez  Firmin  Didot,  etc.  1824. 
(In-8.0— 227  ps.) 

Possuimos  um  exemplar,  offereeido  por  Sousa  Botelho, 
ignoramos  a  quem,  encadernado  em  marroquim  e  que  cor- 
responde a  uma  tiragem  especial  em  melhor  papel,  segundo 
o  confronto  com  outros  exemplares.  Um  d'estes  que  perten- 
ceu á  bibliotheca  de  Fontoura,  (J.  E.  G.  Rebello  da),  ven- 
dida ao  livreiro  de  Leipzig,  K.  W.  Hiersemann,  e  que  per- 
tence hoje  a  Carvalho  Monteiro,  tem  a  gravura  da  edição  ou 
collecçãp  de  que  adeante  falaremos,  de  Lopes  de  Moura,  de 
1838.  É  esta  a  celebre  edição  do  Morgado  de  Matheus,  de 
quem  é  a  longa  e  interessante  noticia  bibliographica.  Inno- 
cencio  da  Silva  (Dic.  Bibl.)  nunca  a  viul . . .  Consta  so- 
mente das  cinco  cartas  authenticas,  texto  francez  e  traduc- 
ção  portugueza. 

74)  Lettres I from I a  portuguese  nun/to/an  officier I in j the 

french  army./Translated  by/W.  fí.  Éowles,  Esq./ 
London  i/Published  by  Thomas  North,/64,  Paternos- 
ter  row./1828. 
(T.  Davison,  etc.) 

(1  vol.  6.°— xv-128). 

Exemplar  de  Carvalho  Monteiro.  Reproducção  da  edição 
de  1808  incluindo  as  doze  cartas,  e  a  gravura. 

22  # 


340 

75)  Letires /portugaises. / Nouvelle  édition, / conforme  a  la 

première/ (Paris,  eíc.  Barbin,  1669)./ 
Paris,/Au  bureau  de  la  Bibliolheque  Ghoisie,/Rue  du 
Coq-Saint-Honoré,  n.°  13/1829. 
(1  vol.  8.°— 54  ps.) 

Exemplar  de  Carvalho  Monteiro.  Com  uma  —  Noticesiir 
les  lettres  portugaises. — feita  evidentemente  sobre  a  de 
Sousa. — «Seguimos  na  nossa  edição  o  texto  dado  pelo  sr. 
de  Sousa,  que  o  colleccionou  com  grande  cuidado  sobre  a 
edição  primitiva  de  1669.  No  receio  de  que  alguma  falta 
lhe  escapasse,  servimo-nos  também  de  muitas  edições  an- 
tigas que  temos  colhido». 

76)  Cartas I d' Heloisa  e  Ahailard, /traduzidas  por j Caetano 

Lopes  de  Moura,  /  traductor  das  obras  de  Walfer 
Scott,/ seguidas  das  Cartas  Amorosas ld'umai' religio- 
sa portuguezajrestituidas  á  lingita  materna /por  D. 
José  Maria  de  Sousa, /Morgado  de  Matheus,/augmen- 
tadas  com  as  imitações  de  Borat  e  outras, /e  traduzi- 
das do  francez  por  Filinto  Elysio  e  Caetano  Lopes 
de  Moura./ 

Paris,/Na  Liv.  port.  de  J.  P.  Aillaud/&  1838. 
(6.°— 2  vol.— 275— 268). 

Possuímos  um  exemplar  d'esta  edição.  O  2."  volume 
compõe-se  de  duas  parles,  na  primeira  até  pag.  59,  as  cinco 
cartas  da  freira,  traducção  de  Sousa  Botelho  (n.°  73),  na 
segunda  até  pag.  159, as  doze  cartas  da  traducção  de  Fi- 
linto Elysio  (n.°  71).  A  segunda  parte  segue-se: 

—  Imitação/das/ Cartas  amorosas /D'uma  religiosa  Por- 
tugueza/por  Dorat, /traduzida  livremente  do  francez, /por 
Caetano  Lopes  de  Moura. /Pa)  te  segunda.  Note-se  que  a  se- 
gunda parte  termina  a  paginas  159  pela  seguinte  indica- 
ção:—  «Fim  da  primeira  parte».  Um  embrogliol 

Este  segundo  volume  abre  por  uma  estampa  represen- 
tando uma  freira  moça,  muito  mal  desenhada,  por  signal, 
epor baixo  lé-se: — D.  M.  A. /Religiosa  do  Convento/de.  . ./ 
em  Beja. —  Parece  que  ainda  em  1838  era  muito  indiscreto 


3H 


dizer-lhe  claramente  o  nome:  D.  Marianna  Alcoforado.  É 
que  Lopes  de  Moura  não  ignorava,  talvez,  como  outros, 
muito  depois  d'elle,  que  existia  ainda  uma  familia  Alcofo- 
rado em  Beja.  N'uma  pequena  prefação  em  que  se  consi- 
dera como  primeira  edição  das  Cartas  a  de  Pedro  do  Mar- 
teau,  de  Colónia,  sem  data,  diz-se  também: — «Esta  reli- 

giosa  vivia  pelos  annos  de  1663  (!)  n'um  convento  de  Beja. 
'  cavalleiro  com  que  se  correspondia  era  M.  de  Chamilly, 
mais  conhecido  com  o  titulo  de  conde  de  Saint-Léger,  o 
qual  com  effeito  militava  n'essa  epocha  em  Portugal.» 

77)  Cartas  de  uma  religiosa  portugiieza.  Versão  de  Lopes 

de  Mendonça. 

A  Semana,  jornal  litterario,  vol.  ii  — 1852 — Lisboa. 

(Art.  Epistolographia). 

É  uma  tradueção  incompleta,  pois  ficou  na  4.*  carta  das 
cinco  da  religiosa.  A  publicação  foi  feita  nos  n.°'  44  (maio, 
ps.  494),  43  (junho,  ps.  503),  46  (junho,  ps.  514)  e  48 
(junho,  ps.  538).  É  precedida  de  uma  introducção. 

78)  Lettres/portugaises/nouvelle  editionj  conforme  alai  .^"j 

(Paris,  Cl.  Barbin.  16G9)/avec  une/notice  bibíiogra- 
phigue  sur  ces  Lettres. 

Paris/Bureau  de  la  Bibliotheque  Choisie  etc.  1853 
(Impr.  de  Guirandet  et  Juaust  &) 
(1  vol.— In-8.°  ps.  95) 

É  uma  reproducção,  menos  o  texto  portuguez,  da  edição 
de  Sousa. 

79)  Letlres/d'amour/Chefs-d'ceuvre  de  style  épistolaire/choi- 

sis/dans  les  plus  grands  écrivains/etc. 
Novvelle  edition. 
Paris  (Typ.  Georges  Chamerot) 
S.  d. 

A  paginas  50 : 

Lettres/d\ine/religieuse/porlugaise/traduites  enfrançais/ 


342 


Com  o  prefacio  da  edição  de  Barbin  (1669)  As  cinco  car- 
tas. 

Cremos  que  esta  edição  é  de  1858,  e  de  Lemer. 

80)  As  cartas  da  religiosa  portugueza. 

—  Estudos  da  Edade-Média,  por  Theophilo  Braga 
(Porto)  1870— ps.  183  a  215. 

É  um  estudo  critico,  e  não  uma  traducção  ou  edição  nova, 
mas  contém  a  traducção  de  muitos  trechos. 

81)  Cartas/da/religiosa  portugueza/ Mariantia  Alcoforado/ 

{Novamente  reproduzidas  em  livgua  portugueza)/ 
Lisboa/Typ.  do  Diário  de  Annmicios,  etc.  1872. 
(^-8.0  — 32  ps.) 

Com  uma  pequena  introducção.  São  as  cinco  cartas,  e  o 
traductor  foi  Domingos  José  Ennes. 

82)  Letlres  du  xvii.*  etdu  xvni.^  siècle/Lettres portugaises/ 

avec  les  réponses/Leltres  de  iW."*  Aissé/suivies,  etc. 
par  Eugène  Asse,  etc. 

Paris  (impr.  Viéville)  Charpentier  et  C*  1.  e.  1873 
(In-8.»  423  ps.) 

Com  uma  Notice  sur  la  religieuse  portugaise  et  le  marquis 
de  Chamilly.  Na  Revue  Pol.  et  Litteraire,  de  abril,  1873, 
ps.  969,  Maxime  Gaucher  faz  uma  deliciosa  causerie  sobre 
esta  obra,  começando  por  observar  que  não  acha  razão  para 
reunir  as  cartas  da  Religiosa  portugueza  e  as  da  Menina 
Aissé,  senão  a  de  umas  e  outras  poderem  formar  um  vo- 
lume de  formato  Charpentier.  E  desculpando  Chamilly,  para 
o  qual  aquelles  amores  não  haviam  sido  mais  do  que  um 
eaprice  de  garnison,  conclue  assim: —  «Supposons  lesdeux 
ames  brúlant  àTunisson  d'une  flamme  éternelle,  nousper- 
dions  quelque  cris  de  passion  les  plus  vrais,  les  plus  beaux, 
les  plus  déchirants  qui  se  soient  jamais  échappés  d\n  cceur 
qui  se  brise». 


343 


83)  Encyclopedia  Intructiva  e  Amena.  —  N.°  10  —  3. "sem 

— Os  dramas  celebres  do  Amor — iv.  ps.  106-126. — 

A  Religiosa  Portugueza. — 

(A).  Pinheiro  Chagas.  Lisboa,  1874. 

Não  é  uma  traducção,  mas  um  estudo  critico.  Contém, 
comtudo,  a  traducção  de  largos  trechos  das  Cartas. 

84)  (Les  peíits  chefs-d' mivres) — Leítres/portugaises/Pu- 

bliées  sur  Vedition  originale/avec  une  noticie prélimi- 
naire/par  Alexandre  Piedagnel. 
Paris.  Libr.  des  Bibl.  etc.  mdccclxxvi 

(In-8.° — vrii  —  93  —  1  notes — Imp.  par  D. 
Jouaust  pour  la  coll.  des  Chefs-d'oeuvre. 

MDCCCLXXV). 

Em  duas  partes,  sendo  a  primeira  a  das  cinco  cartas,  e 
a  segunda  a  das  sete  de  «uma  senhora  da  Sociedade.» 
D'esta  edição  houve  uma  tiragem  especial  de  30  exemplares 
em  China  e  30  em  Whatman. 

85)  Almanach  do  Bombeiro  por tnguez  para  1879. —  Porto, 

1878.  Ps.  168:  —  Cartas  portnguezas. 

Um  pequeno  artigo  compilando  algumas  das  escassas  in- 
formações existentes  ao  tempo.  É  do  nosso  amigo,  sr.  dr. 
Paiva  e  Pona. 

86)  Portugal. — Diccionario  Histórico,  etc.  por  J.  A.  d'01i- 

veira  Mascarenhas  e  Dr.  R.  Clemente  d'Abreu. — 
Lisboa,— 1880— Ps.  122  -.—Alcoforado  (Marianna). 

Largo  extracto  do  artigo  de  Pinheiro  Chagas  nos  Dramas 
de  amor. 

87)  Era  Nova,  revista  do  movimento  contemporâneo.  1." 

anno,  n.°  5,  novembro.  193 in.  a201  ps. —  As  Car- 
tos  du  Religiosa  Portugueza. 


344 

Artigo  assignado :  Theophilo  Braga. 
Lisboa,  1880. 

É  uma  reproducção  melhorada  do  n.°  80. 

88)  La  jeunesse/du/maréchal  de  Chamilly/notice/sur/  Noel 

Bputon  SÇ  Sa  famitle/de  1636  a  lÚÚl/par  E.  Bcau- 
voisj 

Beaune/ímpr.  Arthur  Batault/1885 
(ín-8.°) 

Extracto  das  «Mémoires  de  la  Société  d'Histo\re  etc.  de 
Beaune,  an.  1885  ps.  2o5  et  suiv.»  O  Cap.  ô.Sntitula-se: 
Les  Letlres  portugaises.  É  o  trabalho  a  qual  alludimos  na 
1.*  parte  ou  introducção  do  nosso  trabalho: — uma  piedosa 
e  infeliz  tentativa  de  lavar  da  memoria  de  Chamilly  a  sap- 
posta  mancha  das  Cartas.  Ao  nosso  amigo  sr.  Lino  d' As- 
sumpção devemos  a  primeira  noticia  e  um  exemplar  d'este 
trabalho  que  foi  o  que  definitivamente  nos  moveu  á  liqui- 
dação da  questão.  Aqui  lhe  reiteramos  os  nossos  agradeci- 
mentos. 

89)  O  Manuelinho  d'Evora — Folha  politica,  litteraria,  etc. 

—  folhetim.— Anno  vii  (1887).  N."»  330,  361,  352, 
353  e  354. — Marianna  Alcoforado/ A  Religiosa  Por- 
tugueza. 

É  a  reproducção  do  escripto  do  sr.  Pinheiro  Chagas 

(n.'>83). 

90)  Luciano  Cordeiro /  Soror  Marianna /a  freira  portu- 

gueza./ 

Lisboa/Livraria  Ferin,  etc.  (Typ.  da  Academia  Real 

das  Sciencias  de  Lisboa) 

(In-8.°gr.  — 335eerr.) 

ín  fine: —  «Acabou  de  imprimir-se  este  volume  no  dia  7 
de  agosto  de  1888.» — Compõe-se  de  seis  parles:  í.  O  es- 
tado da  questão.  II  Alcoforado  e  Chamilly.  III  Os  amores 


345 


da  religiosa.  IV  As  Cartas.  V  Bibliographia.  VI  Documen- 
tos. 

Foi  de  1000  exemplares  a  edição,  do  êxito  da  qual  fa- 
lam os  editores  no  começo  da  presente.  Por  occasião  ou 
acerca  d'ella,  publicaram-se  em  diversos  periódicos  largos 
artigos  criticos  relativamente  á  Freira  por Ivgueza  e  ás  Car- 
tas; a  maior  parte  dos  quaes  foram  reunidos  e  republicados 
no  Jornal  da  Noite,  e  podemos  citar  os  seguinte  de:  — 
Conde  de  Ficalho,  (no  fíeporter) ,  Joaquim  de  Araújo  (Pri- 
meiro de  Janeiro),  Theophilo  Braga  (Democracia),  Moniz 
Barreto  (fíeporter),  A.  de  Campos  Júnior  (Esquerda  Dy- 
wasíica),  Borges  d'Avelar  (Commercio  Portiiguez),  Sousa 
Viterbo  (Joi^nal  da  Manhã),  Sampaio  (Bruno — Jornal  da 
Manha),  Pedro  Victor  Sequeira  (Correio  da  Manhã),  Júlio 
César  Machado  (Repórter),  Guiomar  Torresão  (lllustração 
Portugueza),  Visconde  de  Benalcamfor  (Commercio  do  Por- 
to), Maria  Amália  Vaz  de  Carvalho  (Jornal  do  Commercio), 
António  de  Serpa  (Gazeta  de  Portugal),  Rodrigues  de  Frei- 
tas (Commercio  do  Porto),  Armelim  Júnior  (Commercio  de 
Portugal),  F.  Clementiuo  de  Sousa  (O  Direito),  Pinheiro 
Chagas  (lllustração  Portugueza),  Marianno  Pina  (lllus- 
tração. Paris),  etc.  Publicaram-se  também  noticias  e  tre- 
chos mais  ou  menos  desenvolvidos  no  Diário  de  Noticias, 
Imparcial,  Correio  de  Noticias,  Jornal  da  Manhã,  (Porto), 
Folha  do  Povo,  Dia,  Jornal  de  Noticias,  (Porto),  Commercio 
de  Portugal,  Debates,  Correio  da  Noite,  fíeporter.  Actuali- 
dade (Braga),  fíevolução  de  Setembro,  Correio  do  Norte, 
(Braga),  Século,  Correio  de  Portugal,  Jornal  das  Colónias, 
Colónias  Portuguezas,  Novidades,  Occidente,  fíevve  nou- 
velle  (Paris),  etc. 

Todas  essas  apreciações  coincidiram  em  considerar  como 
definitivamente  resolvida,  d'esta  vez,  a  questão  das  Cartas  e 
a  sua  authenticação  histórica. 

Que  seja  permittido  ao  auctor  agradecer  mais  uma  vez, 
aqui,  a  generosa  e  honrosissima  amabilidade  que  fartamente 
o  compensou  do  seu  trabalho,  e  declinar  toda  a  não  sonhada 
gloria  d'esta  consagração,  aos  pés  da  doce  e  apaixonada 
imagem  da  pobre  freira  portugueza. 


346 


91)  Chronica  de  Valentina  (D.  Maria  Amália  Vaz  de  Car- 

valho)—  Lisboa  &  MDcccxc. 

Ps.  1  —  Soror  Marianna,  a  Freira  portugueza,  etc. 

É  o  juiso  critico  publicado  pela  illuslre  escriptora  no  Jor- 
nal do  Commercio,  sobre  a  nossa  primeira  edição.  Contém 
largos  trechos  das  Cartas. 

92)  Les  lettres  d'amour  de  la  religieiíse  portugaise. 

(A.)  Maurice  Paléologues — Revue  de  detix  mondes, 
Lix  année,  3.®  periode,  t.  95 — 15  oct.  1889. 

É  um  artigo  critico  interessante,  apezar  dos  erros  que 
denunciam  o  desconhecimento  dos  últimos  trabalhos,  como, 
por  exemplo,  o  da  supposição  de  que  fosse  o  editor  de  1690 
o  primeiro  a  dar  o  nome  de  Chamilly,  e  o  da  ordem  que 
attribue  ás  cartas^,  na  idéa  aliás  justa  de  que  não  é  a  ver- 
dadeira, a  geralmente  adoptada. 

93)  Poemas  portuguezes.  (Luiz  Osório) — Lisboa,  etc.  1890. 

Pp.  235:  Soror  Marianna. 

É  um  poemeto  em  dois  bellos  sonetos  que  não  queremos 
deixar  de  registar  n'esta  lista,  até  pelo  ligitimo  desvaneci- 
mento de  ter  sido  inspirado  pela  nossa  Soror. 

94)  The  love  letters  of  a/portuguese  nun/being  the  letlers 

written  by  Marianna /Alcoforado  to  Noel  Boxiton  de 
Cha/milly,  count  of  St.  Lcger  {later /mar quis  of  Cha- 
milly) in/the  year  li5QS/translated  by/R.  H./ 
New-York/Cassell  publishing  Gompany/  etc. 
(Copyright,  1890  by  Cassell  etc— TheMershon  Com- 
pany  Press.  Rahway,  N.  J.) 
(In-12.°  — 148) 

Formosissima  edição  de  que  M.°"'  Regina  Maney,  teve  a 
amabilidade  de  nos  oíTerecer  nm  exemplar.  A  traducção  é 
de  uma  senhora  americana,  Josephine  Lazarus,  que  escreve 
e  assigna  a  introdncção.  Sente-se  bem,  n'esta,  a  alma  e  a 


347 


comprehensão  affectiva,  delicada,  da  mulher.  Julgou  ella 
que  as  Cartas  nunca  tinham  apparecido  em  inglez;  como 
vemos,  enganou-se,  mas  a  sua  traducção  não  é  por  isso 
menos  apreciável.  A  traducção  foi  feita  sobre  a  edição  de 
Alexandre  Piedagnel,  da  qual  se  aproveitou  o  prefacio  e  a 
nota  bibliographica.  Não  tinha  noticia  dos  últimos  trabalhos. 


Não  temos  por  completa  esta  lista,  é  claro.  Muitas  indi- 
cações de  outras  edições  encontramos,  que  por  não  ter  po- 
dido authenticar  não  incluimos  aqui.  As  obras  que  mais  ou 
menos  desenvolvidamente  se  referem  ás  Cartas  são  innu 
meras. 

Com  quanta  verdade  podiamos  fechar  esta  parte  do  nosso 
trabalho  com  as  palavras  do  illustre  escriptor,  sr.  Pinheiro 
Chagas,  a  respeito  da  Heloisa  portugueza: 

—  «Se  a  tua  memoria  so  eclipsou,  que  importa?  O  que 
havia  mais  nobre,  mais  ardente,  mais  sublime  na  tua  vida, 
era  o  teu  amor,  e  o  teu  amor  sobrevive.  Rosa  do  claustro, 
foi  essa  paixão  o  perfume  das  tuas  folhas,  e  esse  perfume, 
conservado  preciosamente  nas  luas  fervidas  cartas,  como 
em  frasco  de  oiro  cinzelado,  atravessou  intacto  os  séculos, 
tí  vem  ainda  hoje  deleitar  os  que  se  debruçam  sobre  as  lou- 
cas paginas  que  soltaste  involuntariamente  ao  vento  do  fu- 
turo». 

Ou  então,  aproveitando  uma  phrase  de  Fr,  Caetano  do 
Vencimento,  a  respeito  da  homonyma  da  nossa  pobre  freira, 
e  com  bem  mais  verdade: 

—  <tNão  pode  a  morte  que  tudo  acaba,  nem  o  tempo  que 
tudo  faz  esquecer,  consumir  o  corpo  e  a  memoria  da  Vene- 
rável Madre  Marianna.r» 


Acrescentaremos  a  esta  lista, —  que  a  bem  dizer  é  uma 
homenagem, — a  indicação  de  algumas: 


348 


OBRAS  DE  ARTE 

— Gravura  em  cobre,  por  Harrweyn,  doscripta  acima, 
sob  n.°  39,  na  edição  de  Jacob  van  Ellinckhuyseen,  de 
Haya,  1697. 

— Gravura  em  cobre,  de  Coster,  descripta  acima,  sob 
n.""  50  e  53,  edições  dos  van  Dole,  1716,  1742,  etc. 

Damos  d^ella,  aqui,  uma  magnifica  phototypia  am- 
pliada de  Camacho. 

— Gravuras  em  cobre,  de  Ch.  Eisen  e  Massard,  descri- 
ptas  acima,  sob  n.°*  58  e  62.  Imitações  de  Dorat,  1771, 
1780. 

— Gravura  em  cobre,  de  Graig  e  Maekenzie,  descriptas 
acima,  sob  n  °'  68,  70  e  74.  TraducçÕes  inglezas  de  Bo- 
wles,  1808,  1817,  1828. 

— Gravura  em  cobre,  sem  indicação  do  auctor,  parecen- 
do, porém,  de  procedência  ingleza.  Descripta  acima,  sob 
n.°  76.  Edição  de  Aillaud,  1838. 

— Quadro  a  óleo,  pela  menina  D.  Emilia  Santos,  disci- 

fula  de  Malhoa,  e  neta  do  grande  mestre  de  capella  Manuel 
nnocencio  dos  Santos.  Uma  notável  revelação  artistica.  O 
quadro,  de  grandes  dimensões,  não  está  concluido  ainda.  É 
talvez,  até,  uma  inconfidência  denuncial-o.  Representa  a 
Soroi\  no  seu  quarto,  suspendendo  a  escripta  de  uma  das 
Cartas,  e  fitando  saudosamente  o  retrato,  ao  qual  diz,  tal- 
vez:— lO  official  que  deve  levar-te  esta  carta,  pela  quarta 
vez  me  manda  dizer  que  precisa  partir.  Gomo  está  apres- 
sado I . . . » 

— Phototypias  de  Camacho  (1890).  As  da  presente  edi- 
ção: 

— Fac-simile  do  rosto  da  edição  datada  (1669)  e 

desconhecida,  de  Pedro  du  Marteau; 
— Fac-simile  do  termo  de  óbito  de  Marianna  Alco- 
forado ; 
— Entrada  do  convento  da  Conceição; 
— Janella  de  Mertola,  no  convento  («o  miradouro 

d' onde  se  vêem  as  portas  de  Mertola»); 
— Fac-simile  ampliado  da  gravura  de  Coster. 


349 


— Composição  lithographica  de  Julião  Machado  (1890).) 
— Lithographia  da  Companhia  Editora. — O  cartaz  da  pre- 
sente edição :  uma  verdadeira  composição  artistica. 

— Recordaçõiís  de  Soror  Marianna. — Beja  e  o  Convento 
da  Conceição. — Photographias  de  Camacho  (1890). 

Tendo  ido  comigo  a  Beja,  para  me  auxihar  na  presente 
edição,  o  illustre  artista  teve  a  feliz  idéa  de  formar  este 
bello  álbum,  que  contém  as  seguintes  estampas: 

— Convento  da  Conceição. — Porta  do  refeitório; 
— Id. — Capitulo; 
— Id. — Coro  de  cima; 
— Id. — Claustro; 

— Id. — Porta  da  egreja,  passadiço  e  tribuna  da  in- 
fanta; 
— Id. — Egreja  e  restos  dos  Paços  dos  Infantes; 
— Da  estrada  de  Mertola  (ao  longe  divisam-se  as 

Portas  do  mesmo  nome  e  o  convento); 
— Da  estrada  de  Serpa  (junto  do  Cruzeiro  de  S.  Pe- 
dro, a  que  alludimos  a  ps.  166); 
— O  Castello  (exterior); 
— Interior  do  Castello  e  torre  de  Menagem; 
— Santa  Maria  da  Freira  (onde  foi  baptisada  Ma- 
rianna Alcoforado); 
— Santo  André,  fora  dos  muros. 


NOTA  FINAL 

Muito  desejáramos  incluir  nesta  edição  os  documentos 
da  primeira.  Mas  o  numero  e  a  extensão  considerável  dos 
que  teríamos  de  accreseentar-lhes  engrossaria,  além  das 
proporções  convenientes,  o  presente  volume,  o  que  é  faeil 
de  ver  pelas  indicações  summarias  d'esses  documentos,  nas 
notas  que  acompanham  o  texto.  Mas  não  desistimos  de  pu- 
blical-os,  todos,  um  dia. 


Acabou  de  imprimir-se  este  volume 
no  dia  10  de  janeiro  de  1891 


OUTEAS  OBEAS  DO  MESMO  AUCTOE 


A  Sienliora  Duqueza  (Seroes  manue- 
linos)       lOO  réis 

Marinlia  e  Colónias 500     » 

EM  PREPARAÇÃO 

A  !ieg;unda  Daqiieza. 
Ignez  de  Castro. 


FERIN  óí  C.%  EDITORES 


UNIVERSITY  OF  CALIFÓRNIA  LIBRARY 

Los  Angeles 

This  book  is  DUE  on  the  last  date  stamped  below. 


RECD  LD-URL 

ÍSl    OCT3ll9T3( 
OCT  2  1 1973 

.,^M'  21  /5S5 


tíEC'0  U)-Uttl 


Form  L9-Serios4939 


P09191,       AiSí" 


SOUTHERN  REGIONAL  UBRARYFA^^^^ 


AA    000  659  382    6